Odete odeia o Brasil e Celina usa bordado do Cariri, analisa antropólogo que estuda super-ricos
Michel Alcoforado fala de "Vale Tudo", justiça tributária e dados de pesquisa que resultou no livro “Coisa de rico: A vida dos endinheirados brasileiros”, que ganha lançamento em Fortaleza nesta quarta (8)
Das representações em obras televisivas às notícias sobre fortunas adquiridas ou perdidas na vida real, os ricos exercem fascínio inegável no Brasil. Nova prova disso é a repercussão do livro “Coisa de rico: A vida dos endinheirados brasileiros”, do antropólogo e escritor carioca Michel Alcoforado.
Figurando em listas dos mais vendidos da Nielsen-PublishNews, o trabalho virou fenômeno ao dissecar a relação do Brasil com a ideia de riqueza. Em turnê pelo País, o autor chega ao Ceará — 6º estado em número de bilionários, segundo a Forbes — para lançar a obra no Shopping Iguatemi, em Fortaleza, com bate-papo com a cearense Socorro Acioli e sessão de autógrafos.
A pesquisa de Michel começou em 2010 e, de lá para cá, ele passou a frequentar circuitos de elite e acessar de perto as opiniões, disputas e noções dos integrantes das classes abastadas. A partir do mergulho neste universo, o antropólogo fala ao Verso sobre temas como os desafios para a taxação de grandes fortunas, a verossimilhança da novela “Vale Tudo” e os embates entre tradicionais e novos ricos.
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“Rico de estimação” e falsa percepção de mobilidade social
“No Brasil, a gente não tem nenhum ódio de rico. Tem um fascínio gigantesco”, atesta o pesquisador, por telefone. A afirmação se dá em comparação à realidade europeia. “O que acontece na sociedade francesa e outras é um completo repúdio em relação ao comportamento das elites”, aponta.
“Você entra em qualquer livraria da França e tem mesas e mesas de livros de sociólogos, cientistas políticos, economistas falando: ‘Que absurdo ter gente rica como esses que temos aqui, olha como eles acirram a desigualdade na sociedade francesa’”, relaciona.
Um aspecto que ajuda a justificar o comportamento do brasileiro ante aos abastados, elabora Michel, é o que ele chama de “rico de estimação”. “Sabe quando você era pequeno e a tua família tinha um tio rico?”, explica.
“Aquele que a família se organiza para ver o que come, para onde viaja, onde as crianças dele estudam, qual o carro, o que trouxe de viagem para a gente. Isso, de certo modo, funda um certo comportamento em relação às elites que não é só de admiração, mas também de entendimento do que as elites estão vivendo, para a gente querer viver também”
No Brasil, defende o pesquisador, a percepção do que é bom, valorizado e alvo do querer passa pelo “filtro” desse rico mais próximo e concreto — cuja realidade, então, parece mais alcançável.
“Eu brinco que o que está em jogo é uma certa admiração alinhavada por uma crença de que todo mundo pode ficar rico”, aponta. Não no nível de um Jorge Paulo Lemann, empresário com patrimônio de R$ 88 bilhões e terceiro brasileiro mais rico, ressalta Michel.
“Isso você tem consciência, eu também, de que é impossível. Mas o teu rico de estimação, que é próximo a você, tem uma vida melhor do que a tua e você acha que é uma possibilidade”, segue.
Para o antropólogo, porém, a “percepção de mobilidade social” do brasileiro é irreal: “A gente acha que dá para enriquecer — trabalhando, jogando na bet, na Mega da Virada. Acha que dá para fazer outra coisa”.
“Vale Tudo” e os “tipos brasileiros de ser rico”
A ideia de “subir na vida” é norteadora para “Vale Tudo”, atual novela das nove da TV Globo. Remake da trama original de 1988 criada por Gilberto Braga, a obra apresenta diferentes visões da ascensão social.
Creditando-a como “verossímil” em relação ao que vivenciou na pesquisa, Michel aponta que a obra apresenta “três tipos brasileiros de ser rico”. “Você tem a arrivista à la Maria de Fátima (Bella Campos), que consegue dinheiro, mas não tem acesso à performance, ao (modo de se) comportar, ao gosto”, inicia.
Ponto central da representação no folhetim, porém, está na diferença entre as irmãs Odete Roitman (Débora Bloch) e Celina Junqueira (Malu Galli). A primeira, diz, “é a típica rica que odeia o Brasil e acha que todas as referências de produção de diferença estão fora do País”.
Já a segunda, conforme análise do antropólogo, faz o gesto inverso: olha o popular e o tradicional e “valoriza a recontextualização deles como marcador de diferença”. “Celina só usa marca brasileira, usa vestido com bordados do Cariri cearense, valoriza a renda, porque está preocupada em valorizar o local”, exemplifica.
Nos dois casos, as personagens ostentam marcadores de diferenciação social, o que por sua vez se difere de outra popular representação de bilionários — a da premiada série “Succession” (2018-2023).
Com a obra estadunidense, que acompanha a intrincada disputa pelo comando das empresas da família Roy, se popularizou o conceito de “quiet luxury” — no qual abastados usam peças de luxo, mas de maneira mais discreta e sóbria.
“O quiet luxury aqui nunca funcionou e não funcionará porque a gente precisa contar aos outros o que está usando, para os outros acreditarem que a gente é rico”, aponta, ressaltando o reconhecimento social como necessário nas relações.
“(O luxo) sussurra para quem precisa ser sussurrado. Não tem um rico que compra um cashmere Loro Piana (grife italiana) com a expectativa de que ninguém o reconheça. Ele compra achando que os amigos dos clubes fechados reconhecerão. O manobrista, o segurança, a moça no ônibus, não. Só vai reconhecer quem precisa”, sustenta.
A verossimilhança de “Vale Tudo” se dá também na relação conflituosa entre as três personagens já citadas. Ainda que Odete e Celina não sejam de família rica, ambas já estão sedimentadas no universo abastado.
Fátima, por sua vez, é representante do arrivismo social contemporâneo. É a “grande disputa”, aponta Michel, “entre os ricos tradicionais e os novos-ricos”. “Acontece no País inteiro — sei que acontece do mesmo modo aí em Fortaleza — o ‘bairro do novo-rico’ e o ‘bairro do rico tradicional’”, ilustra.
“Um fica dizendo que o outro não tem dinheiro, só nome. O outro diz que o outro tem dinheiro, mas não tem gosto”, resume. O embate, segue, revela “relações diferentes com o tempo e com a produção da diferença”.
“Enquanto os ricos tradicionais ficam olhando para trás, para o passado, como forma de conexão com a vida de maneira geral, os novos-ricos olham para o futuro, (para) como aceleram o processo de transformação para dar conta de inventar um novo ‘eu’ que seja mais adequado, conectado e adaptado às rodas as quais estão se submetendo depois da ascensão”
Ricos são os outros
A dissecação dos super-ricos do Brasil empreendida por Michel foi publicada há dois meses, no último dia 8 de agosto. De lá para cá, o debate da chamada justiça tributária encontrou não apenas tração, mas conquistas relevantes na seara política.
A isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil foi aprovada na Câmara dos Deputados no último dia 1º por unanimidade. Atrelada a ela, para compensar, ficou instituída taxação de até 10% em quem tiver rendimentos tributáveis acima de R$ 600 mil ao ano (ou R$ 50 mil/mês).
Caso o projeto de lei que prevê ambas as medidas seja aprovado no Senado e sancionado pelo presidente Lula (PT) até dezembro, ele fica válido a partir de 2026. Na pesquisa para o livro, Michel observou que os ricos são a favor de taxações do tipo, mas não se veem como alvos.
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Em suma: para os ricos, ricos são os outros. “Isso faz com que a gente ache que o outro tem que ser taxado, não a gente”. “Gente que ganha mais de R$ 28 mil por mês faz parte do 1% mais rico da sociedade brasileira e, em qualquer lugar do mundo, seria taxado. Só que aqui a gente não acha que essa pessoa é rica, mas que ela tem uma ‘vida boa’”, observa.
Lançamento luxuoso
O lançamento de “Coisa de Rico” em Fortaleza contará com um bate-papo entre Michel e a escritora cearense Socorro Acioli — “um luxo, não estou nem acreditando que ela aceitou”, ri-se.
Promovido pela livraria Leitura e pela editoria Todavia, o evento ocorre na Praça do Artista, espaço do Shopping Iguatemi. Após a conversa, ele e ela estarão disponíveis para autógrafos.
“Socorro é capaz de movimentar multidões em Fortaleza e em outras partes do Brasil, então ficamos com medo de não conseguir botar dentro da livraria”, partilha o escritor.
Ao convidar o público para a programação, ele brinca: “As pessoas têm que ir pela oportunidade de encontrar uma conversa com Socorro Acioli, essa sim uma gênia. Eu vou estar ali na oportunidade de ser entrevistado por ela”.
Afora as motivações citadas, Michel ressalta a importância de levar o livro além do eixo Rio-São Paulo. “Semana passada estava no Recife, essa semana em Fortaleza, produzindo conexão com leitores de outras partes do Brasil e quero ouvir, encontrar e trocar com as pessoas”, torce.
Lançamento “Coisa de Rico” em Fortaleza, com Michel Alcoforado e Socorro Acioli + sessão de autógrafos
- Quando: quarta-feira, 8, às 19 horas
- Onde: Praça do Artista, no Shopping Iguatemi (av. Washington Soares, 85 - Edson Queiroz)
- Gratuito.
- Mais informações: @michelalcoforado e @leituraiguatemi