Livros infantis contam histórias do Passeio Público, Mara Hope e Edifício São Pedro
Escritas por autores cearenses, obras unem literatura leve e divertida a reflexões importantes sobre ancestralidade e memória

Conhecer a história de uma árvore centenária e sua herança ancestral. Admirar a paisagem urbana e se deparar com os destroços de um gigante que – primeiro por logística, depois por afeição – se tornou parte da cidade. Caminhar pela Praia de Iracema e preservar até as ausências na memória. A poética que faz parte do cotidiano de Fortaleza inspirou três autores cearenses a eternizarem histórias da Capital em obras de literatura infantil, recém-publicadas de forma independente.
Lançados no mês passado, na Bienal Internacional do Livro do Ceará, “O Passeio do Baobá”, de Vinícios Ferraz, “Mara Hope: uma Esperança”, de Janayde Gonçalves e “Pedro, Quase Invisível”, de Alê Oliveira, utilizam elementos lúdicos para refletir sobre temas como ancestralidade, educação ambiental, memória e amizade.
Em comum, os livros partem das experiências dos escritores e de seu amor por Fortaleza para alavancar, de forma leve e divertida, valores importantes nos pequenos, com narrativas que trazem histórias já conhecidas sob um novo prisma – indicado não só para as crianças, mas também para jovens e adultos.
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Literatura infantil afro-referenciada
Foi em 13 de abril deste ano, data que celebra o aniversário de Fortaleza, que o escritor, mediador de leitura e pesquisador cearense Vinícios Ferraz apresentou aos leitores seu mais novo livro, “O Passeio do Baobá”.
Inspirada na árvore plantada por Senador Pompeu no Passeio Público – também conhecido como Praça dos Mártires –, no Centro, a obra é, segundo o autor, “um canto de amor à Fortaleza” e à árvore que conta parte importante da história da Capital.
No livro, o baobá é protagonista e observador da Cidade, e repassa aos leitores o que enxerga: desde as alegrias das festas de Carnaval à desigualdade social que impera no território.
Um elemento essencial na narrativa é a representatividade negra e a reverência à memória negra e indígena do Ceará, ponto presente tanto no texto quanto nas ilustrações feitas pela artista Carla Freitas. O baobá, árvore originária do continente africano, é utilizado como ponte entre presente e passado, contemporaneidade e ancestralidade.
“A cidade de Fortaleza, assim como o estado do Ceará, também é território negro, embora o historicamente tenha negado isso em muitos momentos da nossa história. Então, sempre tive interesse em produzir uma literatura infantil e juvenil afro-referenciada, ou referenciada na cultura indígena do Ceará”, ressalta Vinícios.
Por considerar que diversos elementos relacionados à história negra do Ceará e do País são comumente apagados, o autor decidiu utilizar elementos estéticos que conversam com a curiosidade infantil como ponte para aprendizados importantes, tais como a educação patrimonial e a preservação do meio ambiente.
A base para todos esses aspectos, conta o autor, é a educação antirracista, a partir da valorização da cultura e da história afro-brasileira e da afirmação dessa memória. Exemplo da importância desse debate é o fato de que, no próprio Passeio Público, não há menção sobre a origem africana do baobá, pontua Vinícios.
Para o autor, obras como “O Passeio do Baobá” tem como objetivo diminuir esse apagamento. “É uma literatura que afirma a diversidade da cultura brasileira em todos os seus elementos. E que [almeja que] as crianças negras se percebem e se observam nessa literatura, em meio aos seus personagens”, pontua o escritor.
Aprovado pelo Edital das Artes de Fortaleza por meio da Lei Paulo Gustavo, o livro de Vinícios Ferraz já está disponível para leitura em algumas bibliotecas comunitárias e municipais da Capital, bem como na Biblioteca Estadual do Ceará (Bece). Quem desejar adquirir um exemplar pode contatar o autor por meio do e-mail viniciosferraz@gmail.com ou pelo telefone (85) 99634-1088.
Publicado em edição trilíngue, ele também será enviado a instituições educacionais e bibliotecas de outros países, como Estados Unidos, França, Itália e países africanos de língua portuguesa.
Mara Hope e os naufrágios que contam Fortaleza
Moradora da Praia de Iracema, a jornalista, escritora e professora Janayde Gonçalves sempre teve uma relação próxima com o Mara Hope, navio petroleiro que encalhou na orla da Capital em 1985 e, desde então, se fundiu à paisagem urbana.
Remadora, chegou perto desse e de outros naufrágios – como o Amazônia, encalhado em 1981 e já invisível em meio às ondas – muitas vezes, pelo esporte e por curiosidade; além disso, contava histórias elaboradas para o filho Amyr, 9, e a enteada Sara, 7, sobre os gigantes de aço.
Impulsionada pelo interesse, a autora de livros infantis decidiu compartilhar com outras crianças as histórias que já contava em casa. Assim nasceu a coleção “Relíquias”, que conta com quatro histórias sobre naufrágios de Fortaleza: “Os cristais do Amazônia” e “Mara Hope: uma Esperança”, já publicados, e “O Velho Beny” e “Barquinho Mulher”, no prelo.
Lançado no mês passado, Mara Hope: uma Esperança tem ilustrações dos artistas Edwaldo Júnior e Jones Oliver e faz do gigantesco navio o próprio narrador de sua histórias, desde o surgimento do petroleiro até a transformação em ponto turístico.
“O Mara Hope tem essa beleza enorme. Ele é muito grande e se tornou realmente um presente para a paisagem da cidade, e muitas pessoas que têm histórias com ele”, explica a autora, que vê na história uma metáfora de que “algo bom pode acontecer, mesmo numa situação inusitada” e considera o navio “uma celebridade”.
Para Janayde, refletir sobre os naufrágios é também refletir sobre a própria história da Cidade, o que pode ajudar as crianças a aumentarem “o repertório cultural sobre a paisagem da sua cidade”.
A obra, no entanto, pode ser destinada a um público mais amplo: leitores de 8 a 80 anos, segundo a escritora. Atualmente, é possível adquirir o livro com a própria autora ou pela plataforma Hotsmart.
"Um prédio não é só um prédio"
Pesquisadora de arte e memória urbana há mais de uma década, a escritora, professora e jornalista Alê Oliveira começou a se debruçar sobre a história do Edifício São Pedro – inaugurado na Praia de Iracema em 1951 e demolido em 2024 – em 2015. Junto à orientanda Virna Benevides, elaborou textos acadêmicos sobre o plano de demolição e o abandono da obra, que considerava proposital.
Alguns anos depois, quando seu primeiro filho, Jonas, nasceu, começou a dividir a escrita acadêmica com a elaboração de textos infantis, forma que encontrou para começar a se comunicar melhor com crianças. Em 2022, decidiu unir as duas paixões na história "Pedro, Quase Invisível", cujo protagonista, baseado no icônico edifício alencarino, começa a nutrir grande amizade com uma pequena erva daninha.
Fábula sobre um "gigante de concreto" que tem sentimentos, a obra só foi publicada após a demolição do São Pedro – após a conclusão do texto, Alê engravidou do segundo filho e acabou não conseguindo publicar antes, como gostaria. Decidiu, no entanto, que publicaria a obra após o ocorrido como um manifesto não só pelo prédio histórico, mas como reflexão sobre a especulação imobiliária e como ela afeta a memória das cidades.
As ilustrações, feitas pela própria autora, foram feitas manualmente, com carvão, e também são parte essencial da narrativa. As letras foram criadas pelo designer Daniel Vasconcelos.
Por que o carvão? Porque o carvão é efêmero. Se você pega e passa a mão em cima daquela daquele desenho, daquela ilustração, ela vai se apagar, ela vai borrar, assim como acontece com a memória da cidade. Então, era simbólico trabalhar também com essa ilustração efêmera.”
“É um livro mais contemplativo, pensado para que a leitura seja uma leitura lenta. É como se fosse um caminhar lento, meio perdido, na cidade de Fortaleza”, completa. Apesar da temática densa, o livro infanto-juvenil é, primordialmente, um livro sobre amizade, destaca a autora.
“Ele é muito lúdico, é um livro de fruição, é um livro divertido. Ele não tem um objetivo de ser um livro pedagógico. Ele toca nessas questões da memória, mas ele vai tocar de uma forma prazerosa, leve, divertida e, às vezes engraçada, às vezes também triste, mas sem o objetivo de ensinar – é mais no sentido de criar uma experiência mesmo”, explica Oliveira.
Jonas, hoje com 5 anos, foi o primeiro leitor da obra. Alê conta que o filho, que mal conheceu o edifício histórico, ficou emocionado e especialmente tocado no momento em que o prédio explode – em entrevista, a autora brinca que, nesse livro, não há cuidado com spoilers.
Para ela, essa experiência demonstra o impacto que o livro pode ter nos pequenos: provocar uma sensação de afeto e pertencimento que, mais a frente, pode ser decisiva para impedir que outros prédios sejam demolidos e a história da Cidade, apagada.
“Foi lá no sensível, lá naquela relação de que aquele prédio também faz parte da história dele, mesmo que seja uma memória não vivenciada, né? Porque a memória não é só aquilo que a gente vivenciou, mas a memória dos nossos antepassados também é a nossa memória”, explica.
O livro pode ser adquirido pelo perfil da editora no Instagram e também está à venda na Livraria Substânsia, no Dragão do Mar.