Livro cearense 'Aldeota', vendido como raridade na internet, volta às prateleiras em reedição da UFC
Obra de Jáder de Carvalho (1901-1985) que expôs a elite fortalezense é considerada central para a literatura do Ceará do século XX

Seja pelo “diagnóstico” que faz da formação socioeconômica do Ceará e do Brasil, pela “inventividade” na forma literária ao borrar fronteiras entre ficção e jornalismo ou pela narrativa envolvente e com ares de saga que acompanha o enriquecimento ilícito do protagonista Chicó, o livro “Aldeota” é considerado o “grande romance” da literatura cearense do século XX.
Apesar da importância histórica e artística, a obra lançada em 1963 pelo escritor e jornalista Jáder de Carvalho (1901-1985) se tornou raridade, com exemplar da 1ª edição chegando a figurar até hoje em sites de venda de livros por R$ 1 mil.
Mais de 60 anos depois do lançamento original e mais de duas décadas desde a primeira reedição, ocorrida em 2003, “Aldeota” retorna ao público e ao debate em nova edição pela Editora UFC, com lançamento oficial previsto para maio na Universidade Federal do Ceará.
Veja também
"Serviço à moral política e social"
Retomada em 2023, a Editora UFC, como destaca a vice-diretora, escritora e professora Juliana Diniz, “tem buscado selecionar obras literárias de relevância na produção cearense, na intenção de devolvê-las aos leitores em edições cuidadosas e bem acabadas”.
“A obra de Jáder de Carvalho despontou como uma das prioridades. Os exemplares das edições anteriores se tornaram raros e de difícil acesso, ao mesmo tempo em que se manteve o interesse no livro e na relevância do autor para a história do jornalismo cearense”, aponta.
Tal relevância, explique-se, vem de diversos fatores que ajudaram a demarcar o lugar da obra na literatura do Estado — apesar de repercussões negativas em relação ao romance quando do lançamento.
Isso porque, como explica Tiago Coutinho — professor de jornalismo da Universidade Federal do Cariri e autor de um dos posfácios da reedição atual de “Aldeota” —, o livro mistura ficção e jornalismo para denunciar ilegalidades na formação das elites de Fortaleza.
Em "Aldeota", prestei o maior serviço à moral política e à moral social do Estado, trazendo aos olhos do povo, do governo e das autoridades, os sonegadores de impostos, os ladrões, os contrabandistas que, numa terra paupérrima, de economia que é preciso se ver com binóculo, de tão pequena que é, dão lugar à existência de um bairro aristocrático como é a Aldeota
Exposição das elites fortalezenses
A obra acompanha a saga de Chicó desde a década de 1920 até o início dos anos 1960, indo da infância do protagonista em São Mateus (atual Jucás) às passagens dele por Juazeiro do Norte, estados como Piauí e Amazonas e também bairros de Fortaleza.
Em cada paragem, o protagonista cruza com figuras reais, como Padre Cícero, doutor Floro Bartolomeu da Costa e Mestre Pelúsio, além de citar contextos históricos como as presidências de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros ou a Marcha do Pirambu, ocorrida em Fortaleza em 1962.
Em meio aos percursos, acompanha-se o processo de enriquecimento do personagem a partir de atividades de contrabando. “Ao virar uma pessoa milionária ilicitamente, ele adentra na elite fortalezense e a gente começa a ter acesso a outros personagens”, inicia Tiago.
Em um arrojo de forma, o livro varia entre uma narração em terceira pessoa e outra com os escritos do diário de Catarina, esposa de Chicó.
Ela é uma personagem muito relevante para a forma literária do romance. O livro, talvez, não seria possível sem ela, porque ela está acompanhando o marido e é testemunha dos processos de intimidade dele. É por meio dela que a gente vai descobrir todo o processo dos contrabandos e roubos
As reações negativas e controvérsias ligadas ao livro na época do lançamento se dão porque as figuras da elite participantes de esquemas ilícitos na ficção foram, também, inspiradas em pessoas reais.
“Porém, Jáder não os coloca com os verdadeiros nomes. Ele faz alguns trocadilhos, (dá) alguns indícios para se descobrir quem são. É como se (o livro) fosse um ‘romance-reportagem’ em que ele utiliza subterfúgios da literatura, da ficção, para poder consolidar a denúncia que está fazendo”, resume o professor.
"Obra incômoda"
As inspirações nos circuitos de poder econômico de Fortaleza não passaram despercebidas no contexto do lançamento e impactaram os caminhos da obra à época. Antes mesmo, o autor já era persona non grata naquele cenário.
Tiago lembra que, em décadas anteriores ao lançamento de “Aldeota”, o escritor havia sido perseguido pelo integralismo — ideologia de extrema-direita nacionalista e fascista —, chegando a ter que fechar por perseguições políticas o jornal “Diário do Povo”, criado por ele no fim dos anos 1940.
“O Jáder teve livros queimados em praça pública, foi um escritor meio maldito, um jornalista não quisto por parte das elites. Uma das coisas interessantes é que o livro foi impedido de circular tranquilamente”, contextualiza.
A “crítica/denúncia contundente às elites econômicas da cidade”, como aponta Juliana, pode explicar a ausência ao longo dos anos de novas edições da obra.
“O livro se tornou uma obra incômoda para muitos justamente por seu projeto de expor a origem nem sempre legítima de fortunas de Fortaleza”, segue a professora e vice-diretora da Editora UFC.
Vanguarda, fuga de maniqueísmo e paralelos com o hoje
Apesar dos valores políticos e históricos, Tiago afirma defender “cada vez mais” o livro pelo “grande valor literário”, questão ecoada no posfácio assinado pelo professor-adjunto de Literatura da Uece Batista de Lima:
(...) mesmo com alguma voz dissonante que vê em "Aldeota" uma reportagem, ou um panfleto, ou ainda, um livro de sociologia, o que se constata é que a maioria dos estudiosos dessa obra mantém-no como um marco na literatura cearense
Como Tiago ressalta, as escolhas por misturar o factual e a ficção, por exemplo, lembram o “novo jornalismo”, que tem no estadunidense Truman Capote um dos principais expoentes.
No entanto, “A Sangue Frio”, obra central do autor dos EUA, foi lançada somente em 1966, três anos depois de “Aldeota”. “A gente tem um mecanismo de vanguarda”, ressalta Tiago.
O professor ainda destaca a ausência de maniqueísmos nas construções narrativas. “No Jáder, não tem didatismos de ‘mocinho’ e ‘vilão’. Chicó é um cara trabalhador por boa parte do livro e aos poucos você vai percebendo a transformação da personagem”, exemplifica.
Juliana também alarga a visão sobre a importância da obra, creditando-a tanto “por suas qualidades artísticas, como inventividade, qualidade de estilo, originalidade de enredo, como por seu conteúdo”.
“O modo como o autor apresenta a saga do personagem principal nos permite compreender de forma profunda todo um panorama social e político da formação da sociedade cearense na primeira metade do século XX”, atesta.
Tal olhar histórico e panorâmico encontra plena ligação com questões, figuras e contextos atuais. “A Fortaleza de 2025 não parece, em muitos aspectos, tão diferente da cidade retratada no romance”, aproxima Juliana.
Práticas culturais arraigadas, hierarquias persistentes, desigualdade social e insensibilidade com os desvalidos, a confusão entre público e privado, o tráfico de influência muitas vezes banalizado são algumas das mazelas denunciadas. Há todo um diagnóstico sobre a formação da sociedade fortalezense que ainda é extremamente útil para entendermos o que somos
Acompanhe a Editora UFC
- Instagram: @editoraufc
- Site: www.editora.ufc.br/pt/