Edifício São Pedro: da moda à literatura, como o prédio se eterniza por meio da arte cearense

Edificação resiste num sem-número de trabalhos e protagoniza reflexões capazes de unir cultura, arte, senso crítico e memória

Escrito por Ana Beatriz Caldas e Diego Barbosa , verso@svm.com.br
Legenda: Edifício São Pedro integrou material de divulgação do álbum "Fortaleza" (2015), do Cidadão Instigado
Foto: Foto: Marcio Távora/ Arte: Renan Costa Lima

O Edifício São Pedro continuará. Não é previsão nem metáfora. A arte tratará de eternizá-lo para além da paisagem que não existirá mais. Da estamparia de moda ao audiovisual, passando pela música e a literatura, muitos são os trabalhos tocados por cearenses capazes de inscrevê-lo num lugar de memória permanente e, portanto, imune a demolições. 

O Verso conversou com quem se dispôs a homenagear a edificação entre letras, tecidos, partituras e filmagens. Independentemente da linguagem, há em comum a vontade de unir cultura, senso crítico e documentação, inspirando e fazendo pensar. São bandeiras erguidas a favor da permanência – se não no horizonte concreto, ao menos no legado iconográfico.

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Foi essa a intenção do cineasta e videomaker Reinaldo Jorge Menezes e Silva ao lançar o documentário “Iracema Plaza Hotel”. A produção de 2020 adentra o interior do São Pedro fruto de uma curiosidade de infância. “Desde pequeno, ele despertava minha atenção. Eu nunca havia entrado, então só imaginava o que se passava no interior”, divide.

Décadas depois, o outrora menino foi além: decidiu se aventurar na estrutura mesmo ainda fechada ao público. Boa parte do que encontrou é apresentado no documentário, com pouco mais de 24 minutos. Nele, Reinaldo entrelaça contexto histórico e depoimentos de pessoas que tanto estudam o Edifício quanto efetivamente vivem nele.

“É a tentativa de cristalizar um símbolo da cidade, da orla de Fortaleza, já que ele foi o primeiro prédio da Beira-Mar. Foi ali que se iniciou o mercado hoteleiro. O Edifício São Pedro, portanto, é histórico e tem uma beleza arquitetônica única. Eu sabia que, obviamente, pelo estado em que ele se encontrava, não permaneceria por muitos anos ali”.

Não à toa, o amargor ao receber a notícia da demolição, na última segunda-feira (4). Ficaram apenas as lembranças. “Ao olhar para ele, lembro muito do meu pai. Ele era a pessoa que me levava naquela parte da cidade para conhecer. Morou na região da Beira-Mar, então tinha essa relação com a praia e com esses pontos – Ponte Metálica, Edifício São Pedro…”.

Foi também a curiosidade por lugares abandonados que levou a motion designer Rebeca Prado a decidir contar a história do São Pedro através de quem viveu e frequentou o lugar, tanto nos anos "de ouro" quanto no período mais recente e difícil.

O documentário "Lastro - Memórias do Edifício São Pedro", disponível gratuitamente no YouTube, é um projeto de conclusão de curso que ultrapassou os muros da universidade e se tornou um importante registro das memórias do primeiro prédio da orla de Fortaleza.

"Pensei no São Pedro porque via a necessidade de falar um pouco da falta de memória que Fortaleza tem, não só com ele, mas de forma geral. O fortalezense não tenta preservar seus espaços", aponta Rebeca.

A designer acredita que o prédio simboliza a dualidade que Fortaleza vive: por um lado, forte apelo pela preservação das edificações históricas da Capital; por outro, descaso. "Um sentimento que tenho hoje é de uma espécie de luto. Querendo ou não, acho que a maioria das pessoas não queria esse desfecho pro prédio, esse ícone de 70 anos morrer desse jeito", lamenta.

Músicas para o navio urbano

Do audiovisual para a música, São Pedro traduzido em partituras e acordes. O disco “Futuro e memória” é exemplo. Tocado por Rogério Franco e Dalwton Moura, o projeto coletivo foi lançado em 2018 e reúne quase 40 músicos da terra e o cantor paulista Zé Luiz. No miolo, uma homenagem musical, mas também um espaço para atiçar a criticidade.

“O São Pedro é um prédio em ruínas e, paradoxalmente, muito mais vivo do que os que estão ao redor. Ele tem essa personalidade que arrebata a vista. Sequestra o nosso olhar no bom sentido, de chamar atenção para um navio atracado na Praia de Iracema, simbolicamente cercado por outros prédios amorfos, sem essa mesma característica”, partilha Dalwton. 

Legenda: Capa do disco "Futuro e Memória", de Rogério Franco e Dalwton Moura
Foto: Divulgação

Segundo ele, a construção em ruínas aponta para o futuro, uma vez que incorpora, por meio da memória, uma arquitetura ousada, entre o belo e o estranhamento. Arrebatadora. Não sem motivo, a escolha de uma fotografia dela para compor a capa e o encarte do disco – com 14 cartões e um pôster. O equipamento exato entre futuro e memória.

“Tanto se diz que Fortaleza não tem memória – o Castelo do Plácido derrubado pra dar lugar a um supermercado, como relata a música do Ednardo; o Farol do Mucuripe que também espera cair; e há quantas décadas o São Pedro também vivia isso... Então foi para chamar atenção pra isso, relacionando com cinco gerações de música da nossa cidade”.

Defesa sonora e encorpada a favor de políticas públicas de incentivo ao patrimônio e à identidade cultural da cidade. A mesma tônica de Fernando Catatau. A relação do cantor, compositor e instrumentista com o São Pedro é permeada por idas e vindas. O início dessa conexão se deu no começo dos anos 1990, quando ainda fazia parte da banda Companhia Blue e fez uma sessão de fotos de divulgação no local. 

Depois passou a visitar amigos que trabalhavam no prédio – uma das salas comerciais havia se tornado um escritório de arquitetura. “Lembro que tinham armários que eram passagens secretas e que davam em outros aposentos e que as laterais eram todos apartamentos residenciais”, comenta.

Legenda: Capa do primeiro álbum solo de Fernando Catatau, lançado em 2022, foi feita nos destroços do São Pedro
Foto: Jamille Queiroz

Alguns anos depois do primeiro contato com a edificação, foi morar em São Paulo, onde viveu por 15 anos. Mas a saudade da capital cearense foi tanta que fez com que o artista lançasse, junto aos colegas da banda Cidadão Instigado, o álbum Fortaleza (2015), feito “num turbilhão de emoções”. Ao pensar no pôster de divulgação do trabalho, apenas uma imagem veio à cabeça do multiartista.

“Fiquei pensando sobre qual símbolo que mais representava a cidade para mim naquele momento, e foi aí que me veio a ideia de ter o São Pedro no pôster do disco. É um edifício que, para mim, sempre foi um símbolo de resistência da cidade”, destaca.

Em 2022, um outro São Pedro se fez presente na obra de Fernando, dessa vez em estado de deterioração ainda mais avançado. “Escolhi novamente o São Pedro para fazer a sessão de fotos do meu álbum solo. Todas as fotos foram feitas dentro dele, já em estado de abandono e depredação”, conta. 

Catatau relata estar triste por saber que não haverá mais oportunidade de visitar e celebrar o edifício, e que a notícia da demolição foi “um baque”. “O São Pedro era pra ser um centro cultural ou museu, algo que fosse para a população cearense usufruir. Poder entrar nele e se orgulhar de tê-lo, porque ele é lindo e era pra ser nosso”.

Entre a roupa e a pele

Na multiplicidade de homenagens ao São Pedro, cabe também a moda – proposta abraçada por marcas como a Negro Piche. Dentre as tantas estampas do catálogo, está aquela intitulada “Fortalezas”. Seja em camisa de botão, kimono, saia ou macaquinho, traz impressa as retas inconfundíveis do edifício em meio a outros equipamentos de Fortaleza.

“A estampa foi criada no intuito de eternizar lugares culturais e locais de afeto da cidade. O Edifício São Pedro traz as duas coisas: ele é um prédio que representa a cultura arquitetônica da época e é um local de memória para várias gerações de formas diferentes”, explica o empresário Iury Aldenhoff, sócio-fundador da loja.

Para ele, a demolição da estrutura reafirma o quanto a Capital “tem facilidade de destruir prédios antigos e apagar a memória”. Iury diz isso enquanto recorda os primeiros anos do bairro que comporta a edificação. 

Legenda: Estampa "Fortalezas", da marca cearense Negro Piche, traz o Edifício São Pedro como um dos ícones representados
Foto: Divulgação

“Frequento a Praia de Iracema desde criança. Atualmente tenho 27 e sempre que passava pelo São Pedro ficava admirando, sonhando com as possibilidades do que o prédio poderia se tornar – centro cultural, polo de gastronomia e lojas locais fortalecendo a cultura do estado. Passar e ver tudo armado para a demolição é de encher os olhos de lágrimas”.

Ainda nas tramas do tecido, o São Pedro também foi eternizado pela BABA, marca que costuma incluir cores, traços, paisagens e elementos icônicos da história do Ceará nas coleções. Em uma estampa exclusiva da ilustradora Auxi Silveira, o edifício ganhou novas cores e retomou destaque em meio a uma movimentada Praia de Iracema. 

A ilustração fez tanto sucesso que a camisa com o icônico prédio da orla chegou até artistas de renome nacional, como o cantor Chico Buarque.

O diretor de criação da marca, Gabriel Baquit, conta que incluiu o prédio icônico em duas peças por acreditar que ele faz parte da memória do fortalezense – não só de quem mora perto, mas de quem passa por ali, como ele, e “sequer entende por que ele está daquele jeito”.

A homenagem ao símbolo arquitetônico feita há três anos não previa a demolição, mas já considerava um contexto de desvalorização do patrimônio histórico de Fortaleza. Segundo Baquit, essas demonstrações artísticas ressaltam o relevante papel de quem, na contramão do poder público, visa eternizar lugares como o São Pedro.

“Isso serve para lembrar como a arte, a moda e o design são essenciais para preservar nossa história e nossa memória. Se algumas autoridades não fazem o trabalho delas, pelo menos os artistas estão fazendo”, conclui.

Legenda: Homenagem ao símbolo arquitetônico feita há três anos não previa a demolição, mas já considerava um contexto de desvalorização do patrimônio histórico de Fortaleza
Foto: Estampa de Auxi Silveira

Entre a pele e a roupa

A arquiteta e urbanista Raquel Bernardo, por sua vez, decidiu ir além e levar o edifício São Pedro não só na memória e na vestimenta: tatuou na pele o monumento que considera o cartão de visita definitivo de Fortaleza.

“Nasci e me criei aqui e desde criança era o prédio que mais me chamava atenção. Eu me atentava à hora do caminho em que eu ia conseguir vê-lo pela janela do carro”, rememora. Alguns anos depois, quando começou a cursar Arquitetura, ganhou do amigo tatuador – e também arquiteto – André Barros Leal uma tatuagem que retratava essa conexão com a cidade.

Legenda: Quando começou a cursar Arquitetura, Raquel Bernardo ganhou do amigo uma tatuagem sobre a conexão com a cidade
Foto: Arquivo pessoal

“Meu lamento pelo edifício ser demolido é muito mais pelo que ele poderia ter vindo a ser do que pelo que já foi. E o receio de qual será a próxima memória demolida. Depois de ser salão para a elite da Fortaleza antiga, desde que me conheço por gente, recebia promessas para um novo futuro, novas ideias de ocupação que agora jamais acontecerão”, diz.

“Vou levar o São Pedro na pele, mas o que eu queria mesmo era poder frequentá-lo. Agora tudo que restará dele é o que é agora: memória (e memoriais)”.

Letras para o São Pedro

Por fim, na seara da Literatura, mais tributos. Na capa de “Falando da vida: as canções que teimam resistindo”, por exemplo, uma fotografia do São Pedro ao fim da tarde resguarda emoções. O livro é de autoria do jornalista e pesquisador musical Luã Diógenes e reúne quarenta crônicas nas quais causos, análises, histórias e outros devaneios se mesclam.

O autor partilha como se deu a concepção da capa e por que a escolha pelo São Pedro nela. “A obra estava praticamente pronta e não tínhamos ideia de capa. Um dia, olhando as redes socias, encontrei a foto do Mateus Dantas, fotojornalista, e a imagem me encantou. Era justamente o São Pedro resistindo ao tempo como as canções que eu defendo”.

Legenda: Capa de “Falando da vida: as canções que teimam resistindo", de Luã Diógenes
Foto: Divulgação

Atualmente morando no exterior, ele se diz triste pela notícia da demolição do ícone fortalezense, e traz à tona um trecho de “Avião de papel”, canção de Ednardo, para ilustrar o sentimento. A letra diz: ‘Só não esqueça de voltar pra ver/ o que restou desse lugar que o sol e a chuva e os homens práticos vão modificar’”.

“É dolorido saber que mais um grande patrimônio se desfaz por omissão e ‘desenvolvimento’. Parece estarmos caminhando no sentido contrário do mundo ao colocar o Ed. São Pedro a baixo. Ele se vai junto ao Palacete do Plácido, as longarinas da Ponte Velha e tantos casarões tradicionais. É lamentável”.

No campo da ficção, “Delírio San Pedro”, próximo livro da escritora Socorro Acioli traz referências da edificação. O título será publicado pela Companhia das Letras em 2025 ou 2026. “Comecei a pensar nele em 2007. Trabalho esse texto desde 2009, fiz três versões que joguei fora”, partilha a literata.

Além de a trama acontecer no monumento, tem um menino como protagonista. Vale salientar, porém: a história é inspirada no São Pedro, mas não é a história real do edifício. “É sobre um prédio abandonado na beira do mar”, resume Socorro. O mote para escolher a construção como cenário partiu quando, determinada vez, a autora fez um curso de vela artesanal.

Ao término da formação, uma colega perguntou a alguém onde era possível restaurar cadeiras, uma vez que tinha algumas da família que precisavam passar por esse processo. A família dela possuía um hotel.

“Na hora em que ela falou isso, que a família tinha um hotel, já senti que era o Edifício São Pedro. E ela confirmou que era, me dando mais detalhes sobre processos atuais quanto ao prédio e tal”, diz Acioli, que mostrou ter uma fotografia da artista Hannah Rodrigues como gatilho para a história. “Aí está o personagem, o local, a aura de sonho”.

Nas redes sociais, ela publicou: “Começou a demolição do San Pedro. Acabei de receber uma ligação do meu amado Fausto Nilo. Lamentamos juntos”.

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