5 anos após início da pandemia, leis emergenciais e rede de apoio entre artistas ainda estruturam cultura no CE
Na segunda matéria da série especial sobre os impactos da pandemia na cultura cearense, o Verso reúne as principais medidas emergenciais de socorro aos artistas e qual legado elas deixaram

Quando o relógio marcou o primeiro minuto do dia 20 de março de 2020, a vida dos cearenses se transformou completamente. A partir daquele momento – o início oficial do primeiro decreto de isolamento social no Estado – medidas restritivas inéditas passaram a vigorar, impedindo o funcionamento de diversos setores produtivos e a aglomeração de pessoas para conter o avanço da Covid-19.
Apesar dos cuidados serem necessários e temporários – na época, esperava-se que a crise durasse poucas semanas –, para parte dos setores econômicos, o desespero chegou cedo. Exemplo disso foram os profissionais autônomos, como os trabalhadores da classe artística e das demais cadeias produtivas da cultura, que logo entenderam a dimensão do impacto financeiro das necessárias medidas restritivas.
Por isso, ao perceber que o pesadelo estava longe de ter fim, gestores, produtores e os próprios artistas precisaram se movimentar para garantir a subsistência e a saúde física e emocional de quem faz a cultura acontecer, no Ceará, no Brasil e no mundo.
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Por aqui, medidas como novos editais para projetos de diferentes linguagens e leis emergenciais – principalmente a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc – fizeram a diferença para garantir a continuidade do trabalho desses profissionais, bem como a difusão da cultura.
Apesar de valiosas, as contribuições estatais não foram suficientes para todos, e uma série de movimentos beneficentes e redes de apoio entre os artistas cearenses também foram essenciais na parte mais dura da pandemia.
Com o intuito de dimensionar parte desse impacto na cultura cearense, além de entender as transformações provocadas no setor nos últimos cinco anos, o Verso publica, até a próxima sexta-feira (21), uma série especial de três matérias que reúne memórias e reflexões de artistas e gestores culturais do Estado sobre o período mais desafiador da história recente.
Nesta quarta-feira (19), o especial abordou as transformações nas formas de consumo de cultura no Ceará, com ênfase no mercado de eventos, incluindo experiências da cultura popular e da cena ballroom. Já na sexta-feira (21), a terceira e última matéria da série traz um panorama do impacto da pandemia no cinema cearense e como realizadores audiovisuais do Estado conseguiram impulsionar produções locais mesmo em meio à crise.
Com políticas insuficientes, socorro emergencial partiu dos próprios artistas
Já nas primeiras semanas da pandemia, enquanto gestores de cultura buscavam soluções para reduzir os danos imediatos do isolamento para o cenário artístico cearense, diversos artistas decidiram se auto-organizar em redes de solidariedade, com eventos on-line e arrecadação de recursos que garantiriam a sobrevivência dos colegas.
O compositor, produtor cultural e jornalista Dalwton Moura, atual vice-presidente do Sindicato dos Músicos do Ceará (Sindimuce), recorda com carinho e orgulho de algumas iniciativas, como as lideradas pela coreógrafa Andréa Bardawil, que arrecadou e distribuiu cestas básicas; pelo músico Daniel Domingues, que transformou a própria casa num centro de recepção e distribuição de alimentos, e a bailarina Silvia Moura, “personagem que lutou muito e que se destacou muito nessa batalha”.
“Essas iniciativas aconteceram em diversas frentes e ficou muito claro que tudo que os artistas, os trabalhadores da cultura e produtores técnicos tinham era essa necessidade, essa capacidade de se ajudarem, de se apoiarem”, pontua.
Com a agenda cultural 100% composta por lives, campanhas de doações em dinheiro também ajudaram artistas cearenses a pagarem contas essenciais, como luz e aluguel. “Se instalou uma rede de apoio, uma rede solidária muito forte e que envolveu também a busca de algumas parcerias institucionais”, destaca o produtor. Artistas divulgavam chaves Pix nas apresentações em redes sociais para obter renda e ajudar colegas em situação de vulnerabilidade.
Com a crise se agravando, porém, o efeito da onda de solidariedade teve alcance limitado, e as políticas públicas de auxílio que começavam a ser implementadas também eram insuficientes.
“A gente teve também apoio da Prefeitura com cestas básicas, com essa ação de distribuição de cestas básicas. Depois, houve um edital de auxílio, cujo valor foi inclusive criticado, considerado baixo”, destaca Dalwton. À época, a gestão municipal argumentou que era o valor possível para contemplar o maior número de pessoas.
O Sindicato (dos Músicos) sempre se colocou a favor de ações seguras, dentro da ciência, do cuidado com a saúde. Nós precisávamos, sim, parar, paralisar, e precisávamos de medidas de apoio aos trabalhadores da cultura, não de exposição deles ao vírus e ao risco – infelizmente, perdemos inúmeros colegas para a necropolítica, para a negligência deliberada.
Depois, o edital “Cultura Dendicasa” e um auxílio emergencial em dinheiro, ambas medidas do Governo do Estado, conseguiram complementar os “primeiros socorros” aos artistas. “Mas, no geral, a gente avalia que infelizmente essas medidas foram muito, muito aquém. Era um poço sem fundo, uma realidade muito, muito difícil e essas medidas, embora tenham sido, sim, importantes, infelizmente elas foram muito insuficientes”, lamenta Moura.
Para o artista, a pandemia apenas evidenciou a precariedade vivida pelo setor cultural há décadas, especialmente no Ceará. Mesmo no retorno às atividades presenciais, diversos bares e restaurantes do Estado decidiram pela redução do cachê dos artistas, argumentando que ainda lidavam com perdas expressivas em decorrência da pandemia.
Ainda que houvesse boa vontade por parte da classe artística e de alguns entes privados, é certo que as transformações só começaram a acontecer de fato com a implementação de duas leis emergenciais: a Lei Aldir Blanc, de 2020, e a Lei Paulo Gustavo, de 2022, ambas nomeadas em homenagem a grandes artistas brasileiros vitimados pela Covid-19.
Para além das contribuições artísticas, ambos seriam lembrados, dali em diante, como símbolos da resistência contra o negacionismo e da luta pela cultura. Após partirem de forma trágica, os dois nomes se transformaram, para milhares de artistas brasileiros, em possibilidade de vida.
Lei Aldir Blanc e o primeiro respiro para a cultura
“O primeiro dinheiro que muito trabalhador da cultura viu depois de muito tempo”. É assim que Dalwton Moura descreve o primeiro edital da Lei Aldir Blanc, mecanismo criado em 2020 para que o Governo Federal, por meio dos estados e municípios, repassasse recursos a artistas de todo o País.
Fruto de muitas reuniões e mobilizações on-line, o projeto de lei que deu origem à Aldir Blanc foi uma iniciativa da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), aprovada ainda no início de 2020, que garantiu a destinação de R$ 3 bilhões para gestões estaduais e municipais de cultura de todo o País.
“A mobilização foi tão forte que os deputados e deputadas, mesmo aqueles que não tinham relação com a cultura, não tiveram como se contrapor”, lembra a secretária da Cultura do Ceará, Luisa Cela, que à época era secretária-executiva da Secult-CE. O titular da pasta era Fabiano Piúba, hoje secretário de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura (MinC).
Cela destaca que o primeiro desafio, após a aprovação da lei, foi conseguir que os recursos fossem executados, já que muitos municípios nunca tinham lidado com esse tipo de trabalho. Pela Aldir Blanc, o Ceará recebeu cerca de R$ 140 milhões, sendo R$ 69 mi distribuídos para os municípios e R$ 71 mi destinados ao Governo do Estado, que deveria utilizar o recurso para prover a renda básica para trabalhadores da cultura e na execução de editais.
Antes disso, em abril de 2020, a Secult-CE só tinha conseguido executar um edital pequeno, chamado “Cultura Dendicasa”, que teve aporte de R$ 1 milhão e contemplou 400 projetos artísticos com R$ 2.500 cada. “Era o que a gente tava com condições de fazer”, explica Luisa Cela.
A secretária destaca que, à época, o desafio da pandemia se somou a uma gestão federal negacionista – o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que era contra o isolamento social e, portanto, contra os auxílios para garanti-lo – e que atacava as políticas culturais.
“A postura do Governo Federal chegava ao absurdo de proibir a execução de projetos da Lei Rouanet de forma virtual, porque, para o governo da época, a pandemia não era uma ameaça e o lockdown era um absurdo”, lamenta. Por isso, para Luisa, gestores municipais e estaduais – além dos próprios artistas – foram os protagonistas para chegar às leis emergenciais de apoio à cultura.
“Faço um destaque que, nesse período, nós não tínhamos Ministério da Cultura [extinto em janeiro de 2019, no início da gestão Bolsonaro, e recriado em 2023, no início do Governo Lula] e não tínhamos uma política cultural no Brasil. Então, não havia uma coordenação nacional, como havia um esforço aqui no Estado de fazer para as diversas áreas. Isso foi muito desafiador”, destaca.
Lei Paulo Gustavo: com atraso, medida emergencial se tornou política de recuperação

Após a primeira versão da Lei Aldir Blanc, o Congresso começou a discutir o descontingenciamento do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual, cujos recursos estavam “presos” devido às sucessivas negativas do Governo Federal em executá-los. Foi quando começou-se a discutir a necessidade de liberar esses recursos para estados e municípios.
Assim surgiu a Lei Paulo Gustavo, em homenagem ao ator e comediante que partiu após complicações da Covid-19 em maio de 2021. Apesar de ter sido elaborada em 2021, a medida só foi executada muito após o prazo previsto, em 2023, já num contexto de recuperação do setor cultural.
“A lei foi aprovada no Congresso, Bolsonaro vetou, voltou para o Congresso e o Congresso derrubou o veto. E, mesmo assim, ainda com uma estratégia de contingenciamento de orçamento, o Governo Federal tentou não executar a lei”, lembra Luisa Cela.
“Foi quando entrou o Supremo Tribunal Federal e os estados mais uma vez se articularam”, completa. No fim de 2022, a ministra Cármen Lúcia determinou a obrigatoriedade do empenho dos recursos para execução no início do Governo Lula, em 2023.
A execução da LPG também teve percalços em relação ao cronograma de execução em alguns estados e municípios. Em 2024, movimentos organizados por artistas do Ceará protestaram contra os atrasos constantes na execução dos recursos recebidos pela Secult-CE.
À época, a pasta afirmou ao Verso que alguns dos principais desafios para a execução eram a “ampliação significativa do volume de recursos e quantidade de editais”; alterações de legislações, regras e fluxos; “ampliação das ações afirmativas”; “necessidade de lançamento de um Credenciamento de Pareceristas 2023”, porque o banco de pareceristas da pasta estava “vencido”, além da “mudança da lei de licitações (2023-2024)”.
Em resposta à situação, o Ministério da Cultura (MinC) afirmou que era “favorável” à extensão do prazo de execução de recursos da LPG em todo o País, mas delimitou que ele teria que ser finalizado até dezembro de 2024. Nesta terça-feira (18), porém, a Comissão de Educação e Cultura do Senado decidiu pela extensão do prazo para execução de recursos dos projetos contemplados. Agora, eles podem ser executados até 31 de dezembro de 2025.
O maior desafio até então, aponta Luisa, foi o aumento dos recursos sem o aumento de equipe para gerir esses recursos. “No Ceará, de 2022 para 2023, triplicou o valor investido”, lembra. “Em 2022, a Secretaria da Cultura deve ter investido entre R$ 35 e R$ 40 milhões; em 2023, nós tínhamos R$ 120 milhões”, explica. “Você conseguir, com a mesma estrutura de pessoal, executar um volume de recursos três vezes maior, no mesmo período, é impossível.”
A secretária garante que o impacto da Lei Paulo Gustavo pode ser sentido na Capital, mas é especialmente importante em cidades do interior do Estado, que, pela primeira vez, têm se articulado e estruturado suas próprias políticas culturais.
“Você vê os projetos, as ações culturais, você vê os espaços sendo reformados, os municípios adquirindo acervos, abrindo museus, financiando e reestruturando as bandas de música, cineclubes, publicação de livros”, elenca. Agora, o desafio é aperfeiçoar e complexificar as políticas, destaca, pactuando o que cada ente – município e estado – irá se comprometer a financiar. “E isso requer tempo”, completa.
O legado das leis emergenciais, para a secretária, vai além do socorro primário: passa também por um fortalecimento institucional da cultura como força econômica, bem como viabiliza uma melhor estruturação do Sistema Nacional de Cultura.
“O setor cultural é um setor social e é um setor econômico. Como outro qualquer, precisa de políticas de investimento para acontecer, para sobreviver, para ter dignidade. Acho que a gente começa a entrar em um outro momento – que, repito, exige tempo –, mas a gente começa a entrar em um outro momento e sair de uma situação sempre de emergência, sempre de escassez, sempre de falta”, conclui.
Política Nacional Aldir Blanc e a continuidade da atenção à cultura
Ainda em 2022, a Lei nº 14.399 instituiu a criação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), uma medida inicialmente com 5 anos de duração que visa estruturar o Sistema Nacional de Cultura por meio do repasse contínuo de recursos da União para estados e municípios.
A ideia da política, como cita Luisa, é fazer com que o setor cultural deixe de operar sempre “na emergência”. Com recursos previstos até o fim de 2027, a PNAB destina, anualmente, desde 2023, R$ 3 bilhões a estados, municípios e ao Distrito Federal. Para gestores e artistas, a lei é a grande esperança brasileira para, finalmente, garantir uma política cultural permanente.
“Diferente das outras duas leis, a lei Aldir Blanc e a lei Paulo Gustavo, ela já tem um caráter mais estruturante”, afirma Luisa. Como o mecanismo ainda não é definitivo, os próximos dois anos serão anos “importantíssimos para garantir a perenidade” da PNAB, completa a secretária. “A gente não pode deixar acabar, senão a gente desfinancia novamente o Sistema Nacional de Cultura”, declara.
Medidas emergenciais resgataram força da arte cearense, mas ainda são insuficientes
São muitos os casos que ilustram a necessidade de garantir políticas públicas para o setor artístico, especialmente durante o período de transformação social e cultural que vem ocorrendo desde a pandemia. As soluções permitidas pela execução dos recursos vão de reformas de espaços físicos à possibilidade de circulação de espetáculos, bem como a manutenção de grupos e coletivos artísticos e a proteção do patrimônio imaterial.
Na Capital, exemplo da força e da amplitude das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo é a continuidade do Grupo Bagaceira de Teatro, que completa 25 anos de história neste ano, mas teve sua trajetória ameaçada por várias vezes por falta de investimento adequado.
Ao longo dos anos, o grupo formado por Tatiana Amorim, Isabella Cavalcanti, Ricardo Tabosa, Débora Ingrid e Rafael Martins circulou com diversos espetáculos e ganhou sede própria, a Casa da Esquina, que exigiu novas estratégias de financiamento.
O ator, diretor e produtor Ricardo Tabosa lembra que, com a Casa, veio a necessidade de participar da política de editais, bem como novos desafios e momentos de crise. Mas poucos desses seriam comparáveis à crise pandêmica, que exigiu, mais uma vez, a reinvenção do grupo, que ainda precisou processar a dolorosa perda do amigo e membro-fundador do Bagaceira, Rogério Mesquita (1979-2023).
“Teatro se faz no tempo real, no sincrônico e na presença física. O lockdown nos atingiu fortemente, como a todos os trabalhadores do teatro, com cancelamento de programações e falta de perspectiva”, relembra Ricardo.
Em 2020, com projetos cancelados e sem agendas presenciais possíveis, o grupo realizou ações independentes, como lives e oficinas on-line para arrecadar recursos, mas conseguiu se reerguer de fato após a captação de recursos por meio das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo.
“Tivemos alguns projetos realizados com recursos da Aldir Blanc em 2021 e 2022, que ajudaram a manter tanto o grupo quanto a nossa sede”, ressalta Ricardo. Pela Aldir Blanc municipal, o espetáculo “Interior” realizou uma temporada on-line, ao vivo, pelo Zoom. Já com recursos oriundos do Estado, o projeto “Bagatela” – que trabalhava eixos de criação, mostra e intercâmbios – foi fundamental para a manutenção da Casa da Esquina.
Os projetos só foram possíveis, destaca, porque outros coletivos de teatro se uniram em um esforço conjunto para fazer os recursos, ainda escassos, se tornarem obras de arte.
Um edital da Temporada de Arte Cearense (TAC), executado pela Secult Ceará, foi responsável por reabrir a Casa da Esquina após o isolamento social rígido, em 2022, e promover uma série de atividades, como formações, espetáculos e debates.
“Os desafios foram muitos, especialmente a limitação de recursos e a necessidade de adaptação rápida às dinâmicas de produção na pandemia. Mas, ao mesmo tempo, essas medidas emergenciais abriram caminhos para novas formas de criação e colaboração, fortalecendo ainda mais a rede de artistas parceiros”, destaca Tabosa.
Neste ano, o grupo estreou um novo espetáculo e trouxe novo fôlego à Casa da Esquina. Muito dessa força vêm de recursos da LPG, que fará com que o coletivo possa abrir, a partir deste mês, ações abertas ao público financiadas pela medida.
É sempre importante lembrar que as políticas emergenciais só existiram por pressão da bancada de oposição ao Governo Federal na época. O setor cultural era, inclusive, demonizado pela extrema direita que comandava o País. O rombo já era imenso, e a pandemia só escancarou a realidade ainda mais.
Para o futuro, Tabosa e os demais integrantes do Bagaceira também sonham com a continuidade das políticas, especialmente da Aldir Blanc, que podem trazer a esperada reestruturação do setor. “A Aldir Blanc mostrou na prática que é possível pensar e realizar um formato mais eficiente de descentralizar recursos e alcançar artistas em todo o país. Sendo uma política permanente, ela pode ser constantemente avaliada e melhorada, garante previsibilidade de investimentos e, principalmente: perspectivas aos artistas”, pontua.
Mas o impacto da fruição, circulação e difusão de projetos, lembra, vai bem além de um só segmento econômico e contempla territórios bem maiores que o Ceará. “Não é somente uma questão de sobrevivência dos artistas, mas de garantir à toda a população o direito à cultura”, conclui.