Os Caretas são para Saboeiro o que o carnaval representa para o Brasil e as festas juninas para o Nordeste. Está no DNA da cidade. Quando saem às ruas em ritmo de algazarra e inusitado colorido, crianças, jovens, adultos e idosos revivem um costume passado de geração em geração nesse pequeno município do interior cearense, distante 450 quilômetros de Fortaleza. Mais que manifestação cultural, a tradição revitaliza o território.

O movimento acontece em plena Semana Santa, e inicia cedo. Nos exatos dias em que o credo católico recorda os últimos instantes de Cristo na Terra, dezenas de pessoas colocam máscaras horrendas no rosto e protagonizam um cortejo frenético. Gera susto, mas também encanto. A quantidade de gente tragada para dentro da procissão é a maior prova. Gritos, gingados, palmas da calçada e acenos no ar confundem-se na multidão.

“É a melhor época do ano”, assegura um. “Não tem como ficar parado”, confessa outro. Entre o sagrado e o profano, há beleza e o desejo todo grande de preservar um legado. A Festa dos Caretas de Saboeiro de 2025, não à toa, tornou-se um interessante epicentro: o do povo que, não contente em carregar no sangue a graça de uma cultura, quer fazê-la maior para envolver mais membros. Deixar que o corpo criativo ganhe tentáculos, ocupe tudo.

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Brincantes de Altaneira, Assaré, Aiuaba e Antonina do Norte, além dos nativos anfitriões – correspondendo tanto a população do centro quanto de distritos – reuniram-se na cidade entre 15 e 17 de abril deste ano, sob o terno olhar da estátua de Nossa Senhora da Purificação, padroeira do município, para bradar que a força popular está muito viva. Não arreda pé enquanto houver menino emulando besta, homem virando fera.

“Eles querem mobilizar o lugar onde vivem por meio da cultura. Mas, claro, uma manifestação feito essa não envolve só cultura. Durante o período da festa, atraímos curiosos de outras cidades. Essas pessoas dão mais história e mais movimento para Saboeiro, porque Saboeiro precisa disso, de movimento”, defende Silvana Duarte, secretária municipal de Cultura, Turismo e Esporte. 

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Legenda: Saboeiro como que renasce nesse tempo de máscaras fantásticas e movimentos frenéticos na rua
Foto: Thiago Gadelha

A adesão geral é sentida nos detalhes. Saboeiro como que renasce nesse tempo de máscaras. Pousadas se aquecem, donas de casa colocam quitutes para vender, e até o pôr do sol fica diferente porque é nesse intermédio entre o dia e a noite que os olhares transpassam as janelas. Chegam à rua na ânsia de presenciar o fantástico acontecendo a pouca distância, pedindo para entrar. Ninguém recusa.

Os rostos da tradição

Para falar de quem faz a festa, é preciso aproximar o ouvido e assuntar histórias. Jornadas como a de Paulo Alves de Sousa, o Teijin. Aos 31 anos e pura irreverência, mantém a concentração entre uma risada e outra enquanto aguarda o início do cortejo do grupo de Altaneira, do qual faz parte. No desfile, ele incorpora uma mulher grávida – a “buchuda”, como chamam – personagem que desperta atenção tão logo põe o pé na avenida.

A figura com rosto monstruoso, mas postura faceira, é resultado de investimento e longa preparação. Teijin compra máscara, peruca, vestido, bota e barriga de silicone, tudo para fazer com que a audiência seja capturada para dentro da tradição. Em média, são R$500 em roupas e acessórios.

“Conheci os Caretas com oito anos de idade. Comecei a brincar e estou até hoje. De primeiro, atuava como Careta mesmo. Mas tinha vergonha de pedir alimento, então me tornei a buchuda. Tá com dois anos que sou eleito a melhor buchuda em Altaneira”, conta.

Paulo Alves de Sousa, o Teijin, careta de saboeiro tradição popular
Paulo Alves de Sousa, o Teijin, careta de saboeiro tradição popular
Paulo Alves de Sousa, o Teijin, careta de saboeiro tradição popular
Legenda: A "buchuda" de Teijin, com rosto monstruoso, mas postura faceira, é resultado de investimentos
Foto: Thiago Gadelha

Antes do brincante, ninguém na família saía em cortejo como Careta. Teijin não herdou por sangue a manifestação. Mas, a partir da loucura dos grupos durante as apresentações no local de morada, percebeu que também poderia aderir àquela extravagância toda. É uma das formas de compreender como o costume dos Caretas é repassado e de que modo resiste aos tempos: se não por influência familiar, por meio do próprio convívio entre as pessoas.

“A importância dessa tradição é porque a gente se diverte, diverte as pessoas e ainda disputa com outros grupos. Gasto muito dinheiro pra fazer isso e não tenho nenhum retorno material? Sim. Mas não tem nada, não. O importante é estar com a cultura dentro da cidade”. Quando assim fala, Teijin nem de longe parece o agricultor que, dia após dia, revolve o solo a fim de prover sustento e abundância aos pares.

No sítio sob propriedade dele, crescem milho, feijão, jerimum, melão, melancia e fava. Cedinho, às 5h da manhã, dirige-se atentamente à plantação e, com a sabedoria de quem conhece ouro, capricha em manter tudo em ordem. Confessa ser possível conciliar as duas artes, de agricultor e de brincante. A paixão guia os passos. “Quando a gente morre, não leva terra nem dinheiro. Então, enquanto eu tiver vida e saúde, vou levar pra frente nossa cultura”.

O capoeirista Leandro Mariano, 24, tem gesto parecido. É jovem inquieto em fazer bonito. Sobre o rosto, coloca uma das representações mais emblemáticas da festa de Caretas de Altaneira: a máscara de couro, cravejada de longos pelos. “Demoro de 10 a 15 minutos para fazê-la”, contabiliza em frente ao Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Saboeiro, onde se prepara para ocupar a rua. Antes, ele conta, era diferente.

festa caretas de saboeiro tradição popular cearense
festa caretas de saboeiro tradição popular cearense
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Legenda: Careta de Altaneira, Leandro Mariano põe no rosto uma das assinaturas do cortejo da cidade-natal
Foto: Thiago Gadelha

Altaneira brincava com máscaras de borracha. Mas tão logo souberam das de couro utilizadas em Assaré, incorporaram estas ao próprio fazer artístico. “Ela é bem menos concentrada que a de borracha. Entra ar por dentro, aí a pessoa fica mais confortável. Passamos de 20 a 30 minutos se apresentando, isso faz diferença”. Em uma década de dedicação máxima à expressão popular, elege o Reisado de Caretas como uma das coisas boas da vida.

Mesmo semblante encontrado em Francisca César, a Djacira. Dona de casa de 62 anos, a saboeirense de nascença é envolta por tradições desde criança e não pretende parar tão cedo. Diz que a festa de Caretas é do tempo dos pais, que brincavam a manifestação e não se furtavam de repassar a quem veio depois. “Meus pais, primos, sobrinhos… Eles tudo formaram e formam a brincadeira dos Caretas”, celebra.

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Legenda: Aos 62 anos, dona Djacira é envolta por tradições desde criança e não pretende parar tão cedo
Foto: Thiago Gadelha

Ela também é ativa no movimento, e de maneiras distintas: enquanto apoia as novas gerações a perpetuar o legado popular, nutre por si só diferentes dinâmicas de preservação do que caracteriza a identidade de um povo. Nesse sentido, todo ano está à frente da dança dos Pastorinhos ou Pastoril – manifestação de influência portuguesa que combina teatro, dança, música e canto, geralmente protagonizado por mulheres.

Elas representam pastoras que vão a Belém para adorar o Menino Jesus. No Nordeste brasileiro, o Pastoril se tornou um dos principais espetáculos populares, ao lado de Bumba-meu-boi, Mamulengo e Fandango, por exemplo. “Também participo da Dança de São Gonçalo, trazida a Saboeiro pelos meus avós. Quando eles faleceram, ficou a tradição. Todos os anos tem, faça chuva ou faça sol”, situa, evocando outra tradição folclórica brasileira, um ritual de agradecimento e pagamento de promessas a São Gonçalo de Amarante.

“Acho muito bom ver essas tradições passando de geração em geração, principalmente a dos Caretas. Todas elas acontecem na nossa rua. Ela se chama Ruinha, e recebeu esse nome porque antes tinha bem pouquinha casa. Mas hoje se torna uma rua grande porque tudo o que há de bom, tem e passa por lá.”
Dona Djacira
Brincante de Saboeiro

As raízes do costume

Não se sabe ao certo como a manifestação dos Caretas começou. Os mais antigos afirmam que essa expressão é anterior ao mundo. O mascaramento é tão arcaico quanto o que reconhecemos como humanidade. Portanto, não é exagero referenciá-lo como milenar. Chegou no Ceará por meio das tradições festivas de Reis vindas de Portugal, mas já estava entre nós nas práticas das comunidades ancestrais que aqui habitavam.

É nessa mescla cultural que hoje seguem os nossos Caretas. Quem explica é Rafael Limaverde, artista visual, curador e pesquisador. Soma-se às investigações do estudioso aquelas também realizadas pelo poeta e jornalista Oswald Barroso, e temos um extenso panorama da festa.

No livro “Máscaras - Do Teatro Ritual ao Teatro Brincante” (Independente, 2019), Oswald escreve que as mascaradas de Judas, como são conhecidas as celebrações, aparecem no Ceará com mais abundância no Sul do Estado, sobretudo na região Cariri-Araripe.

Durante a Semana Santa, pela noite, em maior número, e durante o dia, os Caretas saem em grupos por sítios e ruas fazendo grande algazarra, mexendo com as pessoas, assustando crianças e praticando pequenos furtos.

No Sábado de Aleluia, acompanham Judas ao sítio, onde ele será enforcado. Segundo Oswald, no imaginário popular do Cariri-Araripe, os Caretas são tidos como os guardiões do sítio de Judas.

Nas máscaras de corpo inteiro, incorporam espíritos obscuros da floresta. Neles, como nos caretas ibéricos, o “efeito da máscara”, escondendo a cara, revela não um homem possuído pelo cão, mas um homem livre ou um diabo alegre, o que é a mesma coisa.

“Máscaras de Caretas cearenses são confeccionadas com pano inteiriço, retalhado, bordado ou cortado em tiras, com madeira, couro, latão, cabaça, quenga de coco, palha, tecido vegetal de palmeiras, folhas secas, estopas, sacos de algodão, papelão, fios de rabos e crinas de animais, entre outros materiais existentes nas localidades e de fácil obtenção”, detalha Oswald.

O objeto cobre toda a cabeça e é complementada por batas, vestidos ou capotes, muito largos e compridos, tendo ou não uma calça por baixo. Como máscara, alguns Caretas usam o rosto tisnado, a exemplo do Farandulo português – que usa inclusive, como os Mateus, de Reisado, um rosário cômico, feito de pequenos objetos. “São máscaras em muito semelhantes às dos papangus, que depois migraram para o Carnaval”.

Por sua vez, como adereços, os Caretas usam grandes chocalhos (sinos cômicos) e chicotes ou cacetes (varas mágicas) como instrumentos de proteção ou agressão. As máscaras têm por objetivo criar o anonimato, despindo o portador da identidade social e dando espaço no próprio corpo dele para a incorporação dos espíritos (demônios) da floresta ou da comunidade.

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Legenda: Para estudioso, o efeito da máscara revela não alguém possuído, mas um homem livre
Foto: Thiago Gadelha

“São máscaras aterrorizantes neutralizadas pelo riso. Originalmente, não representam personagens históricos ou sociais, apenas figuram entes sobrenaturais. Encarnam espíritos de animais, admirados”, elucida no livro. O jornalista igualmente traça um paralelo entre passado e presente. Diz que, durante muito tempo, o brincante encaretado se vestia escondido dos demais, ninguém podia identificar quem estava dentro do traje. Hoje, contudo, é diferente, e a Festa dos Caretas de Saboeiro prova isso.

Saber que o outro tem conhecimento na participação do evento é motivo de orgulho e evoca coletividade. Nota-se na euforia incontida, sobretudo dos jovens brincantes. O modo de prover a indumentária, contudo, alinha-se ao que foi pesquisado por Oswald em anos anteriores. Muitos buscam o traje no guarda-roupa da mãe. Na zona rural, a preferência é por roupas rasgadas. Como adereço, o chocalho é obrigatório.

Atualmente, a partir das modificações introduzidas pela modernidade, o favoritismo recai em máscaras de borracha, látex, goma, peles e pelos sintéticos, matéria plástica ou pasta de papel machê, compradas na mercearia. Retratam, geralmente, rostos monstruosos, bichos ou tipos sociais.

Quanto à função, fica evidente a existência de duas espécies: a máscara como manifestação dos espíritos cósmicos e da natureza; e a máscara política, como expressão de identidade e força comunitária, voltada para a crítica de costumes e reivindicação social.

Como o Careta se comporta

Outro fator de evidência no livro de Oswald Barroso são os gestos dos Caretas, notadamente percebidos nos brincantes de Saboeiro. Na festa, conforme o pesquisador e sob os olhos de quem acompanhou de perto a dinâmica saboeirense, os populares tiram folga de si mesmos, das próprias amarras e conveniências. Sobressai-se a agitação mais intensa: gritos, saltos, lutas simuladas, furtos rituais, jogos, brincadeiras, licenciosidades, danças lascivas e gestos obscenos. Em suma, comportamento subversivo e riso ambivalente.

“Não têm nada do humor corrosivo da modernidade. Usam a exaustão para obter o transe. Mudam corpo e voz, tornando-se leves, engraçados, bonitos e corajosos. O corpo do indivíduo é o suporte da figura, ou seja, o sujeito tira o Careta de dentro de si, encontra em si mesmo seu Careta. Adereços ajudam a encontrar tal corpo modificado: o andar ritmado pelo grande chocalho e o olhar verticalizado pela pequena abertura da máscara são algumas dessas alterações. Por esse meio, afasta-se do próprio ego, ficando livre para entrar no êxtase”.

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Legenda: Os Caretas da Semana Santa são seres mágicos que cumprem uma missão e depois se vão
Foto: Thiago Gadelha

No Nordeste brasileiro, igualmente salienta, os Caretas de Semana Santa diferem-se dos Caretas de Reisado. Enquanto estes são um folguedo – no qual os Santos Reis brincam encantados em diabos, para enganar a Herodes – a Festa dos Caretas é uma anti-devoção, uma devoção invertida, alegre pelo Judas. Nesse contexto, os caretas são devotos do Judas, o castigam, mas choram por ele. Roubam para dar ao Judas, para prover seu sítio. As máscaras são de desencantamento porque mostram a verdadeira natureza dos seres.

Os Caretas da Semana Santa seres mágicos que vêm cumprir uma missão, para depois se irem. Mas como monstros, são também diabos, aliados de Judas. Por isso são proibidos de frequentar festas e celebrações na Igreja ou próximas a ela. Já os Caretas dos Reisados, assim como Mateus e Catirina, são reis invertidos, personagens burlescos e cômicos, que se metem em presepadas. As máscaras, assim, nesse panorama, são de encantamento. Ocultam os reis que trazem sob elas porque se tratam de reis encantados em caretas.

De certo modo, porém, são também como Diabos, semelhantes aos Caretas portugueses, porque usam máscaras aterradoras e chicotes, saindo a amedrontar crianças e mulheres. “Neste particular, assemelham-se aos Caretas da Semana Santa, também no que diz respeito ao fato de saírem à noite, pedirem prendas e formarem uma família, a família Careta”. Em Saboeiro, cada um desses pontos ganha a vivacidade de algo tão forte quanto inadiável.

Mapear os Caretas

Apenas a profusão de uma cultura com esse porte é capaz de alavancar projetos como Bestiário Nordestino. A ação surgiu em 2016 com a intenção de realizar um amplo registro sobre o fantástico presente na gravura e na literatura de cordel. O mergulho rendeu uma exposição que já conta com oito edições, capitaneada pelo já citado Rafael Limaverde em parceria com o grafiteiro e produtor cultural Marquinhos Abu.

O que começou apenas como proposta, foi além e iniciou uma pesquisa sobre as manifestações culturais que se utilizam do grotesco e do fantástico, principalmente no que diz respeito ao mascaramento. Assim, o projeto passou a registrar grupos de Caretas do Ceará e do Nordeste, com ênfase às agremiações que produzem as próprias máscaras. “Iniciamos os primeiros registros em 2018 e hoje contamos com um amplo acervo em fotos e vídeos. Futuramente lançaremos documentários e publicações”, divide Rafael.

Outro resultado da pesquisa é a criação do site Território de Caretas – contemplado no Edital Patrimônio Vivo 2023 da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. A ideia é que ele seja um “terreiro” interativo, aberto a todos os coletivos de Caretas do Ceará, possibilitando o compartilhamento de informações, localização dos grupos, eventos, contatos e imagens em fotos e vídeos.

Assaré, Potengi, Piquet Carneiro, Umari, Barbalha, Jardim, Juazeiro do Norte, Quixadá, Altaneira e Pedra Branca foram os municípios contemplados pela iniciativa. Abaixo, você vê o mapa gerado pelo projeto no qual é possível conferir os dados provenientes do estudo.

“A manifestação de Caretas tem crescido muito nos últimos anos. Acontecem muitas vezes em localidades bem isoladas, por isso a dificuldade de fazer esse mapeamento exato. O site Território de Caretas pretende auxiliar nesse sentido, permitindo que os grupos se cadastrem e a plataforma funcione como um ponto de encontro”, contextualiza Limaverde.

De acordo com ele, é difícil especificar as características, pois cada grupo tem as próprias, compreendendo diferentes máscaras, rituais e relação com a cidade. O mais interessante dessa expressão é exatamente fatores como multiplicidade e originalidade. Não à toa, o pesquisador lista vários fascínios. Gosta de perceber as transformações dos brincantes quando põem as máscaras. Tornam-se seres que se mostram, ao mesmo tempo que se escondem.

Na imagem, casal observa cortejo dos caretas em Saboeiro
Legenda: Pesquisador ressalta a força dos Caretas por onde eles passam, como nesta imagem de um casal contemplando o cortejo em Saboeiro
Foto: Thiago Gadelha

“Gosto também da força dessa manifestação por onde passa, o rebuliço que faz nas cidades. E, principalmente, é uma experiência profunda de encontros. Pra mim, é umas das mais ricas, diversas e potentes manifestações culturais do País. Quanto mais estudamos esse personagem, menos sabemos sobre ele”, dimensiona.

“A máscara esconde o brincante, mas revela um universo mágico e único em cada território.  Uma tradição envolvente que mistura dança, música, teatro, artes plásticas e espiritualidade”. Saboeiro, por enquanto, não está mapeado pelo projeto, embora não deva tardar – tão logo mais grupos saibam da iniciativa e se cadastrem. É a expectativa geral.

A riqueza de Saboeiro

Dito isto, cabe mergulhar na história desse município capaz de congregar tantos vieses culturais em um mesmo solo. É terra de cabra careta e contador de história. Saboeiro teve origem no início do século XVIII, quando os colonizadores Ventura Rodrigues de Souza e Domingos Rodrigues obtiveram, em 4 de junho de 1718, uma Sesmaria com duas léguas de frente por três léguas de fundo, nos Sítios Santa Cruz e Santo Antônio.

A povoação primitiva, às margens do Rio Jaguaribe, chamou-se Cruz, depois Santa Cruz dos Carcarás e, por fim, Saboeiro. A palavra, de origem tapuia, provém do fruto negro-color da árvore conhecida como “sabonete”. Saboeiro, então, palavra latina, vem de saponarius e significa “vendedor ou fabricante de sabão”. Designa uma planta conhecida por faveira do mato (Samanea multiflora Piier) e outra chamada “saboneteiro” (Sapidus saponária L).

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Legenda: Saboeiro é banhado pelo Rio Jaguaribe e tem Nossa Senhora da Purificação como padroeira
Foto: Thiago Gadelha

As informações estão no livro “História de Saboeiro e as Sete Irmãs na Monarquia e na República”, escrito por Antônio Erlindo Braga e publicado em 2019 pela editora Paka-Tatu. Na obra, também consta que o município está localizado no coração dos Inhamuns, à margem esquerda do Rio Jaguaribe, e tem como um dos pontos mais bonitos o Jaguaribe dos Caldeirões represado. São quase 14 mil pessoas aconchegadas nesse recanto sertanejo.

Além disso, a publicação traz dados curiosos e um tanto pitorescos, tais como:

  • Paris está distante 10.426 quilômetros de Saboeiro
  • Londres está distante 10.883 quilômetros de Saboeiro
  • Tóquio está distante 18. 564 quilômetros de Saboeiro
  • Fortaleza está distante 450 quilômetros de Saboeiro

Não é o único livro a perscrutar a cidade de forma tão específica, porém. Outro volume, “Uma rua marcada pela cor do seu povo” (Independente, 2013), percorre o município a partir do viés de um dos endereços mais complexos do lugar – a rua Fernandes Bastos, ou simplesmente Ruinha. Localizada entre a rua Amélia Lima Braga, o Poço do Serrote e a Grota do Pecado, com uma extensão da rodoviária ao hospital, já foi classificada como a pior rua da cidade.

Quem conta é Magda Pereira, 56. A professora, nascida, criada e residente na Ruinha, contextualiza o apelido do logradouro, demarcado no diminutivo. Isso ocorreu, segundo ela, não devido à curta extensão da rua, mas por ser habitada por pessoas humildes e negras. “Os primeiros habitantes dela foram escravos fugitivos da senzala de um abastado barão da cidade de Icó. Aqueles habitantes eram da família Melquíades, meus familiares”.

Não sem motivo, durante muito tempo pessoas residentes na Ruinha sofreram, conforme Magda, todos os preconceitos que a maioria branca impôs. Eram esquecidos. Apartheid no meio do sertão cearense. Não dispunham de água, calçamento, praça e infraestrutura básica para qualquer logradouro. A situação permaneceu por décadas – os moradores eram, inclusive, culpados por tudo de mau que acontecia em Saboeiro.

Na imagem, a professora Magda Pereira, residente em Saboeiro
Legenda: Nascida, criada e residente na Ruinha, Magda Pereira luta para que a história do logradouro seja valorizada
Foto: Thiago Gadelha

“Quando algo sinistro acontecia, logo os insultos eram dirigidos à Ruinha, mesmo que todas as provas e depoimentos indicassem o contrário. Nas festas do NAC (Nocratão Atlético Clube), era proibido negro entrar. Antes negro não podia pensar em formatura, pois algumas pessoas achavam demais. Era desolador”.

E o que isso tem a ver com a Festa de Caretas? Luta após luta, com coragem e destemor da população, o panorama não apenas mudou, como favoreceu que o grupo de Caretas de Saboeiro tivesse início exatamente entre as casas da Ruinha. “Sempre fomos uma rua muito brincante, tudo a gente inventava lá. Acho que os Caretas surgiram mais com a necessidade de se divertir na rua e, então, dar continuidade à tradição”.

Mesmo assim, o trabalho de conscientização e valorização da Ruinha não para. Magda continua alimentando, sobretudo entre jovens e crianças, o gosto pelas expressões populares e pelo conhecimento da história da cidade, de modo a não permitir que antigas realidades, de opressão e discriminação, voltem à tona.

“Acredito que a Ruinha esteja aparecendo mais, mostrando às pessoas que a gente tem cultura, educação. Minha rua é um canteiro cultural. O fato de a Festa dos Caretas de Saboeiro acontecer aqui é uma forma de valorização. E, se valorizam a rua, valorizam a gente. Também é chance de reunir gente que há tempos não se encontrava. Deixar bem nítido o recado: daquele passado obscuro, ficou a nossa linda cor e o magnífico nome Ruinha”.

Registro de uma identidade

Os Caretas de Saboeiro também inspiram artistas como Negrosoousa. Fotógrafo e pesquisador, dedica-se a registrar o Ceará e as manifestações culturais do território. Todo evento é relevante para ele e, neste ano, Saboeiro esteva na lista. “Acredito que muitos levam a Semana Santa como algo mais íntimo e silencioso, dada a influência católica, mas descobri que a Semana Santa pode ter uma abordagem também vibrante”, introduz.

Legenda: Careta de Saboeiro, na foto principal; no topo, Careta de Aiuaba; na base, Careta de Piquet Carneiro
Foto: Negrosoousa

“Claro que há um respeito aos dias sagrados (na Sexta-feira da Paixão eles não brincam, Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa somente a partir de certos horários), mas isso não impede que haja trajetos e brincadeiras”. Saboeiro, assim, se projeta como cidade democrática, cidade-ponte, onde se respeita todas as tradições. “Vi isso com muito respeito, e admirei muito o fato de a cidade se permitir viver essa experiência”.

No ato de registrar não apenas os Caretas do município, mas também de outros que congregam da expressão, Negrosoousa busca capturar a identidade. Acredita estar nela a resposta inclusive para o futuro. Ao fotografar uma roupa, por exemplo, consegue perceber indicativos intelectuais e analisar do que é feita, como chegou àquele resultado, quem a fez e com que metodologia cada elemento está ali para afirmar uma modo de ser.

“Não somente isso: ao fotografar também quem a veste, com e sem a máscara, posso identificar onde existe a relação dos tempos. Onde está o mais novo, o mais velho, a estética, o traço pessoal, o gênero, detalhes importantíssimos na afirmação de cada composição. Os Caretas são diversos, múltiplos, inúmeros, é um mundo totalmente particular e exclusivo a tudo que se manifesta nesta época do ano”.
Negrosoousa
Fotógrafo e pesquisador

Há três anos no ofício de pesquisador visual e documentarista, o cearense crê que o verdadeiro destaque de toda essa dinâmica está na relação do ser humano com a encantaria. Uma espécie de sagrado folclórico que nos permite trazer o sonho à realidade. É o que confere alegria pois, apesar da brincadeira, há ali espaço para o imaginar, para o fato de que as pessoas precisam estar em contato com a cultura de forma a garantir que a realidade vá além do que se vê, do que se é.

“Você vai encontrar Caretas em outras manifestações culturais, como no Reisado e no Bumba-meu-boi, com outras funções. E isso sempre é motivo para testemunhar que o sonho é também direito da sociedade. As máscaras, também, são possivelmente nossa conexão mais antiga e sagrada com África, o que torna tudo isso fruto de uma cultura intercontinental que se reverbera ao longo dos séculos, em diferentes geografias, e que, sim, nós continuamos”.

Perpetuar o legado

Não se sabe ao certo quanto o termômetro marca. Mas a quentura assenta sobre Saboeiro nas primeiras horas da tarde. No interior da escola municipal Juarez Cavalcante Braga, Pedro Cauê e Thialiton Menezes estão ansiosos. Em poucos minutos, não serão mais pré-adolescentes, 15 e 11 anos, respectivamente. Virarão assombro, monstruosidade, criaturas mágicas. Serão Caretas de novo, em mais um ano.

Pedro herdou do irmão mais velho o gosto pela brincadeira. Lembra de ter medo quando os Caretas passavam em frente à casa. Aos 12, porém, tratou de se aproximar da prenda e fazê-la parte da rotina anual: preparar-se para o cortejo, encomendar fantasia à costureira, pedir ao irmão para comprar uma máscara que o torne ogro. “O bom de participar é porque a pessoa fica alegre, e quem está assistindo também fica contente. Pretendo continuar”.

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Legenda: Na foto principal, Pedro Cauê; no topo, Thialiton Menezes; na base, crianças-brincantes de Saboeiro
Foto: Thiago Gadelha

Thialiton também passou de alguém que se escondia debaixo da cama para uma criatura voraz em assustar espírito alheio. Agora sabe todo o itinerário do grupo de Caretas que participa, como bom saboeirense que é. “A gente sai do posto, arrodeia Saboeiro, pedimos alimento, dinheiro… É só falar com voz grossa que o pessoal entrega o que você quer. A gente recebe e, quando chega no fim, divide entre a gente, cada um leva pra própria família”.

Para se ter ideia da diferença, abaixo você escuta a voz natural de Thialiton e, na sequência, como ela fica no cortejo, sob a sadia galhofa da turma do qual faz parte:

É a fortuna de quem sabe ter a responsabilidade de manter um espólio dos mais valorosos. E o que também justifica o trabalho de tantos para que a tradição não esmoreça. Embora ganhe outras facetas ao longo do tempo, mantenha a essência. Coordenadora da escola onde Pedro Cauê e Thialiton Menezes estudam, Iranilda Belisário Braga comemora o estímulo que os próprios alunos conferem ao corpo docente para que os Caretas entrem na ordem dos dias.

“A família das crianças participantes são bem engajadas nesse movimento cultural. Geralmente são da Ruinha, e compreendem um grupo bem conhecido. Todos eles ficaram muito ansiosos para fazer essa apresentação aqui”, festeja. “Ou seja, as crianças trazem essa vivência de fora pra cá. Acho que estimular essa tradição entre elas é importante porque existem algumas que são muito diferentes da forma que a gente quer na sala de aula. São indisciplinadas, desmotivadas… Mas, quando fazem o que gostam, é diferente”.

Carlê Rodrigues é outra que se soma a esse time de incentivadores. Na Festa dos Caretas de Saboeiro de 2025, a produtora cultural e contadora de histórias conduziu a oficina de máscaras “Brincando de Caretas” na Escola Municipal Gonçalves dos Santos. Ao redor dela, dezenas de pequenos elaboravam, com as próprias mãos, o presente e o futuro: pouco depois daqueles instantes, já estavam com a pequena obra de arte no rosto, perpetuando o costume.

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Legenda: Carlê Rodrigues e as crianças em ritmo de preparação da máscara de Caretas: tradição para todos
Foto: Thiago Gadelha

Natural de Iguatu – onde a tradição dos Caretas também ganha fôlego – ela situa que a continuidade dessa manifestação entre as crianças está relacionada com políticas públicas efetivas em prol da salvaguarda de tesouros imateriais. “Saboeiro, nesse período, está super movimentado porque todo mundo está sabendo que vai ter festa, e as crianças estão empolgadas com isso. Querem participar, saber o que é. Em situações cotidianas, se não houvesse esse evento, acredito que não seria algo muito difundido para as próprias crianças”.

No caso da oficina de confecção de máscaras, a atividade propôs, de forma lúdica, a superação do medo que geralmente acomete os pimpolhos quando diante dos Caretas. A perspectiva de Carlê é de que, por vezes, o pavor afasta, e pode minar possibilidades. “Mas o objetivo mesmo do encontro é fazer com que as crianças conheçam o que é essa tradição, qual a importância dela, e tentar ter a curiosidade de se aproximar mais e talvez até repassar isso para outras pessoas. Por isso mesmo, entre uma máscara e outra, contextualizo tudo”.

Sorriso de ponta a ponta, Almir Mota leva a mesma graça para “O Mistério dos Caretas” (Casa do Conto, 2005), livro no qual esmiuça a magia da herança popular por meio de linguagem simples e abordagem leve. No início do texto, é possível ler: “O mês de abril é o mês de colheita e de brincadeira. Aqui na nossa cidade, isso significa que os caretas vão para as ruas. Mas os meninos têm muito medo dos caretas, alguns ficam paralisados de susto, fazem até xixi na calças”. E assim a trama se desenrola, com bom-humor e inventividade.

“Algumas coisas vão mudar na tradição daqui pra frente? Sim, certos movimentos passam por isso. Alguém vem e incrementa com algo, mas a essência permanece. Dos últimos anos pra cá, a gente realmente percebe que os Caretas têm mudado. Era uma brincadeira mais violenta, só para homens, e hoje em dia é muito familiar, as crianças se metem no meio, correm com os Caretas… Ou seja, o medo do medonho e do monstruoso passou. Hoje, os Caretas são para as crianças uma alegria, a farra da música, dos gritos”
Almir Mota
Escritor, produtor cultural e contador de histórias

Segundo Almir, a predominância de homens nos cortejos tem a ver com a fina percepção de que a brincadeira iniciou entre trabalhadores rurais, deixando as mulheres de fora de algo considerado tão violento. Além disso, diante do que percebe, mulheres não aceitam qualquer tipo de troça, o que colabora para que a manifestação popular tenha ficado mais entre eles. Felizmente, o panorama tem mudado. Atualmente já é possível ver mulheres em alguns grupos. Em Saboeiro, ela participaram dos cortejos de Antonina do Norte.

“São três ou quatro delas que participam. É pouco? Sim. Mas diante da quase total ausência delas, já é alguma coisa. É bacana porque elas conferem um toque diferenciado à brincadeira”. Coordenador da Festa de Caretas de Saboeiro, além de escritor e contador de histórias, Almir torce para que um território tão farto de lendas, histórias e manifestações feito Saboeiro mire no horizonte a oportunidade de seguir pulsando.

festa caretas de saboeiro tradição popular cearense
festa caretas de saboeiro tradição popular cearense
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Legenda: Almir Mota, o livro em homenagem aos Caretas e a manifestação no meio da rua
Foto: Thiago Gadelha e Davi Rocha

“Acho que a festa continua a acontecer, mas ela vai mudar. Vão virar uns Caretas roqueiros. Não tenho a ilusão de que vai ficar tudo igual porque leio e estudo muito sobre cultura popular, e minha função é essa. Não posso me estagnar, então prevejo essa possibilidade, de os meninos incrementarem isso. Faz parte, as pessoas mudam. A cultura é viva”.

Políticas para manter a magia

Além dos esforços da sociedade civil, políticas públicas específicas apontam caminhos para a manutenção do encantamento. Vavá Gois – outrora secretário da Cultura de Assaré – esteve na Festa dos Caretas de Saboeiro e dimensionou o que tem realizado na seara para contemplar indivíduos e grupos brincantes. Apoio por meio de auxílio financeiro e transporte são prioridades, e alcançam Assaré e Altaneira – para citar apenas duas cidades.

“Para se ter ideia, começamos com quatro grupos de Caretas no Assaré em 2017, e, antes da pandemia, já estávamos com nove grupos, entre crianças, adolescentes e adultos. Também em Assaré, um diferencial que percebemos envolve a confecção de máscaras. Antes os brincantes utilizavam máscaras industriais, compravam esses objetos. Hoje, muitos têm renda devido à fabricação própria das máscaras. Além disso, as próprias festas de Caretas movimentam muito as comunidades, da dona de casa que vende alimentos ao comércio em si”
Vavá Gois
Assessor nas áreas de Cultura, Turismo e Esporte

Parcerias com instituições como Sesc são mencionadas pelo agitador cultural durante a fala, sinal claro do fortalecimento em rede. O próprio Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura, apoiou a Festa dos Caretas de Saboeiro de 2025 – realizada pela produtora Casa da Prosa, com recursos da Lei Paulo Gustavo.

De acordo com a pasta, suporte por meio de editais, projetos de formação, apresentações culturais e programas institucionais é constante. “A Secult promove o reconhecimento e o fortalecimento de saberes transmitidos entre gerações, como os dos Tesouros Vivos da Cultura”, diz a nota. A Tradição dos Caretas está presente nos editais do Ciclo Ceará da Paixão, Ciclo Ceará Natalino e “Patrimônio Vivo – Patrimônio Imaterial e Cultura Alimentar”, com recursos da Lei Paulo Gustavo Ceará.

Igualmente, há editais específicos dos equipamentos voltados para essa manifestação, não sem motivo a profusão de eventos realizados em espaços como o Centro Cultural do Cariri, no Crato, a Casa de Saberes Cego Aderaldo, em Quixadá, e o Museu da Cultura Cearense, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, a partir de ações e eventos. Produções audiovisuais, mapeamentos, programas e webséries completam o panorama.

“Os Caretas representam uma manifestação de profunda significância para o patrimônio cultural cearense. Não é apenas uma forma de entretenimento, mas um elemento vital que contribui para a preservação e transmissão de nossas tradições. Os Caretas são verdadeiros protetores de um recorte importante do patrimônio cultural, mantendo viva uma tradição que conecta gerações e fortalece nossa identidade e ancestralidade”, enfatiza a pasta.

“É o ciclo da fertilidade, a vida brota”

Um dos filhos mais ilustres de Saboeiro, Ronaldo Correia de Brito faz do expediente de escritor um instrumento de documentação acerca de inúmeras manifestações populares. É observador atento. No ensaio “Nem tanto a Jesus, nem tanto a Judas”, disserta sobre os Caretas. E o faz com a sagacidade de quem não apenas pesquisa sobre o tema, mas já vivenciou a tradição de perto. Está com ele, e não sairá.

“Os filhos caretas amedrontam as crianças com máscaras de couro de bode, ou plástico ou papelão pintado. A miuçalha chega perto dos caretas, atiça, joga pedras e corre com medo de levar peia. Os caretas batem sem pena com seus relhos de crina de cavalo, semelhantes ao tirso dionisíaco. Se algum marmanjo se atreve a roubar a quinta do Pai Véi, pode sair no lucro ou levar uma surra”, narra.

Na sequência, continua: “Nenhum careta da matança do Judas ouviu falar no sacrifício do Rei Divino, nem conhece a geografia da Mesopotâmia, do Egito ou da Boêmia, onde esse mesmo ritual era praticado. A celebração se repete por imitação, mesmo que desprovida de seus antigos significados. (...) O cristianismo incorporou a festa pagã ao seu calendário, cuja data coincidiu com Paixão e Ressurreição do Cristo. Os brincantes se encarregaram de batizar como Judas esse rei sacrificado”.

Na imagem, brincantes dos Caretas em Saboeiro
Legenda: Os Caretas seguem, nem tanto a Jesus, nem tanto a Judas, na tradição que se revitaliza e transforma tudo
Foto: Thiago Gadelha

Escreve ainda que as bandas cabaçais e orquestras improvisadas puxam o cortejo pelas ruas das cidadezinhas nordestinas. Dançando atrás do jumento – com boneco espalhafatoso e sorriso aberto – Ronaldo enfatiza que os caretas agitam os relhos, correm atrás das crianças, pedem dinheiro e roubam. “Embriagados e possessos arrastam O Pai para a quinta. As viúvas choram e mostram as barrigas indecentes, reclamam do que O Pai Velho fez nelas. É o ciclo da fertilidade. O carnaval recomeça. A vida brota”.

E conclui: “Dispersos na praça, girando os tirsos de couro, filhos e esposas do Judas esperam o instante em que sua cabeça explodirá, para se atirarem enfurecidos sobre o corpo de trapos e palha. Jesus e Judas igualados num mesmo ritual de morte e ressurreição”.

Os Caretas seguem, nem tanto a Jesus, nem tanto a Judas. Sem lado e sem partido, estão acima de si mesmos, libertos de qualquer convenção. Caretos, cósmicos, insubmissos.

 

*O repórter viajou a convite da organização da Festa dos Caretas de Saboeiro 2025