Das lives ao ‘sobe e desce’ dos festivais: como o setor cultural se transformou após 5 anos da pandemia da Covid
Série de matérias do Verso busca dimensionar o impacto da pandemia na cultura e no mercado de eventos do Ceará, da publicação do primeiro decreto de isolamento social, em 19 de março de 2020, até os dias de hoje

Em 18 de março de 2020, quando o Ceará se preparava para fechar as portas de bares, restaurantes, museus, cinemas e outros equipamentos culturais, proibindo também a realização de eventos que incitassem aglomerações, a impressão era de que um filme se passava diante de nossos olhos. Lojas fechando aos poucos, supermercados lotados e pessoas com olhares assustados compunham a paisagem urbana, que permaneceria esvaziada nos meses seguintes.
Em 19 de março daquele ano – dia de São José e feriado religioso no Ceará –, oito dias após a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarar que a disseminação do vírus Sars-Cov-2 já havia se espalhado pelos seis continentes, o primeiro decreto estadual de intensificação das medidas para enfrentamento da Covid-19 foi decretado, com vigência a partir da meia-noite do dia 20, para conter o avanço da crise sanitária.
Segundo o IntegraSUS, só nas duas primeiras semanas de março de 2020, foram registrados 948 casos de Covid-19 no Estado. Na terceira semana, quando o lockdown foi decretado, foram 1.883 casos. O pico de casos daquele ano aconteceria entre maio e julho, quando o lockdown – ou isolamento social rígido – seria decretado no Ceará.
Além do impacto inédito no sistema de saúde, todos os setores econômicos foram afetados. Dentre eles, um, no entanto, teve sua trajetória modificada de forma mais acentuada. Em meio à uma crise política que colocava a importância da cultura em xeque, artistas, produtores e outros trabalhadores da cultura precisaram paralisar as atividades durante o isolamento social e foram os últimos a retornar de forma integral.
Até hoje, além das perdas pessoais, muitos destes trabalhadores convivem com as consequências e mudanças profissionais ocasionadas por esse momento, que afetou sobretudo a realização de eventos, mas também a forma de articulação e captação de recursos.
Com o intuito de dimensionar parte do impacto da pandemia na cultura cearense, além de entender as transformações provocadas no setor nos últimos cinco anos, o Verso publica, até a próxima sexta-feira (21), uma série especial de três matérias que reúne memórias e reflexões de artistas e gestores culturais do Estado sobre o período mais desafiador da história recente.
Nesta quarta-feira (19), o material aborda as transformações na cultura cearense, com ênfase na cultura popular, na cena ballroom, na música e no mercado de eventos. Na quinta-feira (20), o Verso traz reflexões sobre a importância das medidas emergenciais de apoio aos artistas e como elas se transformaram em políticas culturais que têm impulsionado diversos segmentos. Já na sexta-feira (21), a terceira matéria da série fará um panorama do impacto da pandemia no cinema cearense e como realizadores audiovisuais do Estado conseguiram impulsionar produções locais mesmo em meio à crise.
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As restrições impostas pela chegada da Covid-19 transformaram, para muitos, o passar dos dias em um passar de telas. Nos primeiros meses, fosse no celular, no computador ou na televisão, os shows em formato de live viraram as principais opções de lazer, criando novos formas de interação e conexão entre artistas e público.
De produções grandiosas com nomes de destaque nacional e internacional – como a apresentação da cantora Marília Mendonça em abril de 2020, que se tornou a live mais vista da história do YouTube, com 3,31 milhões de pessoas conectadas ao mesmo tempo – a lives de artistas independentes, muitas dessas apresentações tinham como intuito o endosso ao movimento “fique em casa” e a arrecadação de doações.
Outras visavam, principalmente, a continuidade da difusão da cultura e o sustento dos próprios artistas, impedidos de ocupar palcos offline. E, no Ceará, não somente artistas da música fizeram uso dessa ferramenta: de mestres da cultura popular do Cariri a coletivos de dança e performance organizados por jovens artistas da Capital, todos precisaram ressignificar suas relações com as redes para seguir trabalhando e se expressando.
Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FRJ), o cearense Ribamar Oliveira pesquisou como as tradições populares foram mantidas neste período em parte do Cariri do Estado, mais precisamente em Juazeiro do Norte. Para ele, as lives foram uma forma de “permanecer brincando” e “continuar na oração, na promessa, na forma de pertencer”.

O legado daqueles momentos on-line – alguns feitos pelos artistas, de forma independente, outros em parceria com entes públicos – ainda é sentido até hoje, destaca o professor, por meio da digitalização dos saberes populares.
“Várias correntes dos estudos do folclore e da cultura popular tinham, na sua estrutura, um viés ainda um pouco pessimista relacionado às tecnologias, como se os saberes fossem se acabar com o tempo, com o avanço da cultura midiática”, explica. “Na verdade, o que aconteceu, acho que pela primeira vez, é que uma grande quantidade de conteúdo digital foi produzido não sobre, mas pelos próprios brincantes”, completa.
Acho que foi um gesto muito importante também para o arquivamento, para a digitalização e para a gente repensar essas próprias estéticas do virtual, do que é tradição, do que não é tradição. Eu acho que colocou em jogo mais ainda esses conceitos.”
Seja nos grandes shows ou em coletivos, a arte cearense também teve como marca pandêmica a mediação pelas lives, em um modelo extremo de do it yourself. Ribamar Oliveira destaca que a pandemia se consolidou como uma época de produção sobre si, e de pensamento sobre “como nos relacionamos com a própria mídia, com nossos aparelhos”.

Hoje em dia, o formato permanece como recurso possível e foi incorporado não só à dinâmica dos artistas independentes, mas também como ferramenta para tornar apresentações e saberes acessíveis – seja em eventos on-line organizados por equipamentos públicos, ou, ainda, com viés beneficente, como ocorreu na época da tragédia climática no Rio Grande do Sul, em 2024.
“Obviamente não é a mesma coisa quanto a gente fala da experiência estética com o espetáculo, com o show, com a roda de coco, com o terreiro do reisado. Não é a mesma coisa. Mas eu acho que ficou como uma forma de projeção, de propagação, como uma forma de circulação desses saberes, e até de repercussão”, conclui Oliveira.
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Apesar do trágico impacto em diferentes setores da sociedade, a necessidade do isolamento social impulsionou – não sem desafios – uma série de artistas que, pela primeira vez, compartilharam os mesmos palcos que grandes nomes do mercado: as redes sociais. A concorrência era grande, é verdade, mas as lives e a produção de conteúdo em vídeo se consolidaram como ferramentas importantes para que novas conexões fossem feitas.
Exemplo disso é o movimento de expansão que ocorreu com a cena ballroom no Ceará e em diversos outros estados brasileiros. Se entre 2016 e 2019 o movimento artístico – originado nos EUA na década de 60 – engatinhava para ganhar força no território nacional, a partir de 2020 uma série de eventos on-line fez com que grupos de todo o País pudessem se conectar e ampliar a cena.

A artista Silvia Miranda, conhecida na cena como Yagaga Kengaral, hoje referência nacional e latino-americana, foi pioneira na ballroom do Ceará com o coletivo Becha Cearense e lembra que, até 2019, Fortaleza só contava com três ou quatro casas – como são chamados os grupos de artistas dedicados à cultura ballroom. No Estado, até então, poucas balls – eventos estilo baile, com competições em diversas categorias – tinham sido realizadas.
Porém, mesmo em meio aos desafios do primeiro ano da pandemia, uma casa de Recife (PE) realizou uma ball on-line em meados de 2020, o que impulsionou casas de todo o Brasil a fazerem o mesmo e colocou em evidência não só a cena nordestina, mas também os demais diversos estados da região Norte.
“O período pandêmico foi um período chave para as cenas se difundirem e começar a chegar um conteúdo que a gente achava que precisava chegar presencialmente – porque, antes da pandemia, nós pensávamos que teríamos que ficar viajando para os outros estados para poder fazer e competir nas balls”
Após perder a avó para a Covid-19 em maio de 2020, a artista precisou se afastar da cena para cuidar da saúde e vivenciar o luto. Por isso, participou de poucos eventos, a maioria deles on-line, como convidada. Quando voltou a atuar na produção de aulas e balls, em dezembro de 2021, se surpreendeu: a ballroom cearense pulsava, e muitos artistas até então desconhecidos viralizavam nas redes sociais com fotos e vídeos de performances, tanto em casa quanto em espaços públicos, como parques e quadras.
“Em menos de dois anos a cena Nordeste tomou conta da ballroom. Hoje, todos os estados do Nordeste são contemplados, e faltam apenas alguns estados do Norte. Querendo ou não, isso foi uma consequência da aproximação virtual”, destaca Miranda.
Foram as lives que posicionaram a arte de Silvia Miranda e de dezenas de outros artistas jovens, negros, LGBT+ e em situação de vulnerabilidade na cena ballroom mundial. Hoje, segundo a pioneira, o Ceará possui capítulos de casas internacionais e é um dos quatro únicos estados do Brasil em que acontecem as balls mainstream, eventos maiores que possuem ligação direta com a cena original, dos Estados Unidos. Tudo isso, segundo Yagaga, os cearenses conseguiram apenas “sendo grandes artistas e chamando atenção”.
Atualmente, equipamentos públicos que já recebiam casas da ballroom – como os equipamentos da Rede CUCA, do Município – e espaços culturais da rede estadual, como o Dragão do Mar e a Estação das Artes, além de algumas casas privadas, já incorporaram eventos da cultura ballroom em suas programações.
O mês de maior movimento é sempre junho – Mês do Orgulho LGBTQIAP+ –, mas também há bastante movimento em outros meses do segundo semestre, depois que festas como Carnaval e São João já passaram. Isso porque, segundo Miranda, as pessoas puderam conhecer o que é a ballroom e a importância desse movimento durante a pandemia.
“Desde quando iniciei a comunidade, todos os momentos em que eu entrei para apresentar o que é ballroom para os espaços públicos ou privados de Fortaleza, era um desafio fazer essas pessoas entenderem o que era”, lembra a artista. “Com a pandemia, que essas coisas se tornaram visuais, ficou, com certeza, mais fácil o entendimento”, afirma.
Os desafios ainda são muitos: como a comunidade ballroom acolhe muitos jovens em situação de extrema vulnerabilidade – alguns deles expulsos de casa por serem LGBTQIAP+ –, para que os artistas prosperem, é preciso garantir uma série de outros direitos primeiro.
“A gente acaba enfrentando muitos problemas sociais muito básicos”, lamenta Silvia, que cita especialmente questões primárias, como “onde morar, como se alimentar, onde trabalhar, como retificar seus documentos e como ter acesso à saúde”.
Festivais se consolidam como formato, mas encaram momento delicado

Outro aspecto totalmente transformado pela pandemia no Brasil foi o perfil do mercado de shows e festivais. Foi apenas alguns meses após o início da retomada econômica, no segundo semestre de 2022, quando boa parte da população já estava vacinada, que a maioria dos grandes eventos musicais conseguiu retornar à certa normalidade – e, junto a eles, chegaram novas apostas para suprir a demanda reprimida.
No Ceará, um dos expoentes desse momento foi o Festival Zepelim, que realizou sua primeira edição em Fortaleza em agosto de 2022, com 14 atrações musicais, seguindo o modelo de evento-experiência que também seria reproduzido por outros novos festivais em diversas partes do País.
Naquele primeiro ano de retorno aos grandes eventos, o Mapa dos Festivais, plataforma que cataloga as iniciativas do gênero, reuniria 128 festivais em todo o Brasil. Apesar de animador, já que o movimento ocorreu principalmente no segundo semestre, o número foi muito menor do que o do ano seguinte, 2023, quando 298 festivais foram cadastrados na plataforma, sinalizando retornos bem-sucedidos e novas apostas.
“Uma galera começou a entrar nessa onda porque achou que era fácil fazer festival. Viu que tinha grande demanda e começou a fazer o seu próprio festival, por isso que a gente também teve muitos em 2023”, afirma Juli Baldi, diretora do Mapa dos Festivais e da agência Bananas Music.
O boom dos festivais, no entanto, veio apenas em 2024, seguido de uma crise que vem rondando o setor desde então – ao todo, 402 festivais foram cadastrados, mas apenas 364 deles foram realizados. Em todo o País, 29 foram cancelados e nove adiados, sinal claro da saturação do mercado. “A gente teve muito festival que sentiu o baque”, comenta Juli Baldi.
Segundo a diretora do Mapa, os principais motivos para a maioria dos cancelamentos foram a repetição de headliners – que afastou o público, já menos eufórico para vivenciar tudo o que podia – e a consequente baixa venda de ingressos. As questões climáticas, a exemplo das fortes chuvas no Rio Grande do Sul, e a situação financeira dos brasileiros também foram fatores determinantes.
“O festival não é só você comprar o ingresso, você tem uma vida para viver lá dentro por várias horas: bebida, comida. Então, com certeza a questão econômica pegou. As pessoas estão escolhendo para onde vão e, por isso, alguns festivais simplesmente não conseguiram vender ingressos”, pontua.
Mesmo em meio a crise, é possível dizer que os festivais se consolidaram ainda mais como formato que atrai público e produtores, por ser uma forma mais barata de levar certos artistas a alguns destinos e atrair a atenção de patrocinadores. Por outro lado, os organizadores de eventos têm tido dificuldade em não repassar os custos de realização dos festivais ao público, fazendo com que a conta final não feche.
Em 2024, o preço médio do ingresso para festivais foi de R$ 375, segundo dados do Mapa dos Festivais. Os valores, no entanto, variam muito de setor para setor e evento para evento.
Os principais impasses para a realização, segundo Juli, têm sido o aumento expressivo dos custos de logística e dos cachês dos artistas. “O mercado vem reclamando muito, desde o [início do] pós-pandemia, que os cachês estão abusivos, que o artista não se dá conta da realidade de alguns estados que são diferentes do eixo Rio-SP, por exemplo”, destaca.
Apesar dos desafios, há boas notícias para entusiastas e trabalhadores do mercado da música. A descentralização dos festivais, fortalecida após a pandemia para suprir a demanda reprimida, se mantém ativa, mesmo em regiões com muitos cancelamentos, como o Nordeste – que teve 71 deles em 2024 –, ou com número reduzido de grandes festivais, como o Norte.
Como exemplo de eventos musicais que funcionaram bem mesmo em meio à crise, Juli cita o Carambola (Maceió/AL), o No Ar Coquetel Molotov (Recife/PE), o DoSol e o Mada (ambos em Natal/RN). A especialista também elogiou a persistência do único festival multigênero de grande porte da Capital, o Zepelim, que chegou à terceira edição em 2024, apesar de ter reduzido o número de dias de dois para um.
“O Zepelim fez um trabalho excepcional. Ao invés de eles adiarem a edição, eles diminuíram um dia e fizeram um festival muito legal. Eles adaptaram o formato para se adequar ao que podiam fazer e não deixaram de fazer”, destaca.
Em 2025, mercado de eventos busca estabilização
Cancelamentos e adiamentos de festivais sempre existiram e continuarão existindo, garante Juli Baldi. No entanto, produtores e grandes players do mercado projetam um 2025 mais tranquilo para o setor de eventos musicais, que costuma se movimentar especialmente no 2º semestre.
“Acho que entra ano e sai ano e a gente continua aí enfrentando os mesmos desafios. Mas acho que em 2025 a gente vai ver também – assim, em 2024 a gente já viu, né, com muitos festivais sendo cancelados e adiados – uma crise de personalidade. Acho que só vai conseguir ficar aquele festival que tem que ficar, que é o único, que também traz uma devolutiva para sua região”, projeta.
Outro aspecto importante é a atenção às questões climáticas, que vêm se mostrando cada vez mais duras e exigem atenção e planejamento para evitar desconforto, danos ao meio ambiente e até tragédias. Os organizadores precisam atuar em soluções para mitigar o impacto ambiental e promover ações que diminuam o desconforto climático.