Ceará volta ao Festival de Cannes com curtas gravados na Sabiaguaba, Centro e Mucuripe

Quatro curtas filmados em Fortaleza — sendo dois com cearenses na direção e roteiro — abrem mostra paralela Quinzena de Cineastas no próximo dia 14

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 15:55, em 28 de Abril de 2025)
Legenda: "A Fera do Mangue", dirigido por Wara (Ceará) e Sivan Noam Shimon (Israel), é um dos curtas produzidos dentro da iniciativa Director's Factory sediada no Ceará
Foto: Divulgação

Das dunas ao mangue da Sabiaguaba, passando pela noite do Centro de Fortaleza e chegando ao Porto do Mucuripe, diferentes paisagens da capital cearense serão exibidas nas telas do Festival de Cannes em 2025.

Isso porque, após estrear no ano passado na disputa pela Palma de Ouro com “Motel Destino”, de Karim Aïnouz, o Ceará retorna ao evento francês com quatro curtas gravados em Fortaleza, sendo dois com direção e roteiro de cearenses. 

As produções estreiam no próximo dia 14 de maio na abertura da Quinzena de Cineastas, sessão paralela independente do prestigiado evento francês, e são frutos do projeto Directors’ Factory Ceará Brasil, patrocinado pelo Governo do Ceará por meio da Secretaria da Cultura.

Por meio dele, cineastas cearenses, de Alagoas e do Amazonas foram selecionados para trabalhar em par com profissionais de Cuba, Portugal, França e Israel na concretização das obras. Além da estreia dos filmes, Wara e Luciana Vieira — cineastas do Ceará —, a alagoana Stella Carneiro e o amazonense Bernardo Ale Abinader vão apresentar projetos de longas a profissionais do mercado internacional.

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“Conhecia o Ceará através de filmes”

A experiência da Factory já aconteceu em anos anteriores em parceria com países como Taiwan, Dinamarca e África do Sul. A última ocorrida na América Latina foi em 2015, no Chile. 

A edição brasileira, que se desenrola a partir de parceria com o governo estadual, deu início aos trabalhos no segundo semestre de 2024. Pelo cronograma, as duplas estabelecidas — Wara e Sivan Noam Shimon (Israel); Stella e Ary Zara (Portugal); Luciana e Marcel Beltrán (Cuba); e Bernardo e Sharon Hakim (França) — trabalharam nos roteiros entre outubro e dezembro do ano passado, com gravações até março deste ano.

Marcel, Luciana, Stella, Bernardo, Ary, Sharon, Wara e Sivan, cineastas que participaram da edição brasileira da Directors' Factory 2025, realizada no Ceará
Legenda: Marcel, Luciana, Stella, Bernardo, Ary, Sharon, Wara e Sivan, cineastas que participaram da edição brasileira da Directors' Factory 2025, realizada no Ceará
Foto: Jamille Queiroz / Divulgação

A porção inicial ocorreu de maneira remota, com a parte das filmagens marcando a primeira vez de muitos dos envolvidos no Ceará; caso não só dos realizadores estrangeiros, mas também de Bernardo — que participou do Laboratório Cena 15, da Escola Porto Iracema das Artes, de maneira remota por conta da pandemia — e Stella.

“Eu nunca havia ido para o Ceará antes da gravação do curta. Logo, foi um desafio pensar em uma história que se passa em um lugar que eu nunca tinha pisado na vida”, partilha o amazonense, ressaltando que o mesmo também valia para Sharon, codiretora francesa.

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O fato, no entanto, agregou à experiência, na visão do cineasta. “Acho que isso gerou algo interessante, pois se trata de olhares ‘virgens’ do lugar”, aponta.

As gravações também marcaram a primeira vez de Stella no Estado — ainda que, como ela lembra ter partilhado com o diretor cearense Karim Aïnouz, patrono da iniciativa, “eu sempre vi o Ceará no cinema”.

“Em vários filmes, os próprios do Karim, o ‘Greice’ do Leonardo Mouramateus, Guto Parente, enfim, vários cineastas cearenses que são muito inspiradores. Eu já conhecia o Ceará através de filmes, então sempre foi uma grande referência para mim”, elenca a diretora.

Aposta em gêneros, paisagens e temáticas distintas

Assim como ocorreu para Stella, centenas de espectadores de todo o mundo irão, em Cannes, conhecer o Ceará a partir dos quatro curtas gravados no Estado na parceria entre o Governo e a Quinzena de Cineastas.

As produções trazem temáticas, gêneros e propostas diferentes, alinhadas a partir de afinidades e apostas das duplas — seja o espaço do Porto do Mucuripe, que interessava a Luciana e o cubano Marcel, ou a lenda da mula sem cabeça, que inspirou uma releitura de Wara e Sivan.

Ana Luiza Rios interpreta Marta, protagonista do curta 'Ponto Cego'
Legenda: Ana Luiza Rios interpreta Marta, protagonista do curta "Ponto Cego"
Foto: Divulgação

“Não sei exatamente o motivo que nos levou a isso. Eu tinha uma fascinação muito grande por barcos e queria experimentar isso visualmente, conversei com o Marcel e também tinha uma relação com o mar, lá em Havana também é uma cidade de litoral”, contextualiza Luciana.

Em “Ponto Cego”, obra da dupla, acompanha-se Marta, que trabalha na área de segurança do Porto. Uma pesquisa sobre o trabalho no local, facilitada por equipes de diferentes setores, guiou o roteiro.

“A gente achou que poderia ser interessante explorar como é a vida das mulheres que trabalham num lugar que tem tantos homens. Não é inspirado numa situação real, é um desdobramento de coisas que ouvimos e situações que nós projetamos. Era importante pensar na experiência feminina de uma forma geral na sociedade”
Luciana Vieira
cineasta

Nas conversas entre Wara e Sivan para pensar “A Fera do Mangue”, o ponto comum explorado foi o interesse por mitologia brasileira. Por sugestão de Sivan, a dupla se inspirou na conhecida narrativa da mula sem cabeça.

A partir de orientações que incluíram o ponto de vista da pajé Nadya Pitaguary sobre a história, o roteiro buscou reconfigurar o olhar para a lenda ao propor uma narrativa que acompanha uma figura mítica que se liberta e busca vingança.

Comunidade Boca da Barra, na Sabiaguaba, recebeu gravações de 'A Fera do Mangue'
Legenda: Comunidade Boca da Barra, na Sabiaguaba, recebeu gravações de "A Fera do Mangue", que tem Samires Costa, Garcyvyna e Sarah Escudeiro no elenco
Foto: Divulgação

“(A lenda original) é um conto super misógino, que inclusive foi trazido para cá na intenção de controlar corpos. A possibilidade de contar essa história de outra maneira animava demais a gente”, explica Wara.

Após diferentes versões, o mangue da Sabiaguaba foi escolhido como locação e a fantasia como o gênero. “O mangue é esse lugar que está entre o mar e a terra, um cemitério ao mesmo tempo que gera tanta vida. A própria mula é um humano que confronta o bestial dentro dela, se transforma nesse monstro, nesse ser divino”, correlaciona. 

Confira sinopses dos curtas da Directors’ Factory Ceará

  • "Ponto Cego", de Luciana Vieira (Ceará) e Marcel Beltrán (Cuba)

Marta é engenheira responsável pelas câmeras de segurança do porto de Fortaleza, um ambiente onde mulheres silenciadas convivem com o anonimato e o desprezo. Mas Marta está pronta para romper o silêncio. Gravado no Porto do Mucuripe.

  • "A Vaqueira, a Dançarina e o Porco", de Stella Carneiro (Alagoas) e Ary Zara (Portugal)

Uma vaqueira travesti encontra sua amada, uma dançarina negra, sob o controle de um porco sanguinário apaixonado por trufas. O que começa como uma fuga por amor aos poucos se transforma em um duelo surreal: um faroeste banhado a sangue, sororidade e resiliência. Gravado no Centro de Fortaleza.

  • "Como Ler o Vento", de Bernardo Ale Abinader (Amazonas) e Sharon Hakim (França)

Há alguns anos, Cássia, uma curandeira tradicional, vem ensinando pacientemente seus segredos a Marjorie, sua jovem discípula. Agora, o destino chama Marjorie a assumir esse legado. Gravado na Sabiaguaba.

  • "A Fera do Mangue", de Wara (Ceará) e Sivan Noam Shimon (Israel)

Houve um tempo em que um homem de poderes ilimitados exigia descendentes. Quando uma de suas vítimas liberta a fera dentro de si, uma mítica força vingadora vem galopando pelas águas do manguezal. Gravado na Comunidade Boca da Barra, Sabiaguaba.

'Como Ler o Vento' acompanha Cássia (Esther de Paula), uma curandeira tradicional que repassa os saberes para a jovem discípula Marjorie (Isabela Catão)
Legenda: "Como Ler o Vento" acompanha Cássia (Esther de Paula), uma curandeira tradicional que repassa os saberes para a jovem discípula Marjorie (Isabela Catão)
Foto: Divulgação

Também tendo a Sabiaguaba como locação, “Como Ler o Vento”, de Bernardo e Sharon, destaca outras paisagens do território, como as dunas e demais vegetações presentes lá. 

A obra da dupla também aposta em uma proposta mística, ao focar na relação de ensinamentos e ancestralidade entre uma curandeira tradicional e a discípula que irá assumir o legado.

Já “A Vaqueira, a Dançarina e o Porco”, realizado em parceria por Stella e Ary, desloca o olhar para o cenário urbano. Gravado no Centro de Fortaleza, o filme reconfigura o gênero do faroeste ao acompanhar o amor entre uma vaqueira travesti e uma dançarina. 

“A ideia era fazer no Centro de Fortaleza porque em algumas ruas tem essa mistura do antigo e do contemporâneo e era muito interessante trazer esse contexto porque nosso filme tem um pouco disso, a gente está tratando o faroeste, um gênero antigo, mas ao mesmo tempo modernizando e trazendo ele para questões mais modernas”
Stella Carneiro
cineasta

'A Vaqueira, a Dançarina e o Porco' traz referências de faroeste na narrativa
Legenda: "A Vaqueira, a Dançarina e o Porco", com Jupyra Carvalho e Amandyra, traz referências de faroeste na narrativa
Foto: Divulgação

Nas telas e nas reuniões de negócios

Além da sessão dos quatro curtas na Quinzena de Cineastas, os cineastas selecionados para a iniciativa terão a oportunidade de participar do Marché du Film (mercado do filme, em português), espaço de negócios do Festival de Cannes.

Neste ano, o Brasil foi anunciado como “País de Honra” do mercado cinematográfico francês. Lá, será possível apresentar projetos de futuros longas-metragens a profissionais de cinema de todo o mundo, incluindo produtores estrangeiros, distribuidores e outras funções que podem ajudar na viabilização das obras.

Os movimentos, na avaliação de Stella, reforçam o momento de reconhecimentos internacionais da produção audiovisual do País. “Muitas vezes não percebemos o quão potente é a arte que a gente faz. Levamos o Oscar, também o Urso de Prata em Berlim, então Cannes é o próximo passo dessa jornada”, afirma.

Como Ler o Vento, de Bernardo Ale Abinader e Sharon Hakim, foi gravado na Sabiaguaba
Legenda: "Como Ler o Vento", de Bernardo Ale Abinader e Sharon Hakim, foi gravado na Sabiaguaba
Foto: Divulgação

Bernardo aponta que espera que a participação no evento de mercado “ajude cineastas emergentes a produzirem filmes com um maior aporte financeiro”. 

“Estou muito empolgado com a nova leva que está surgindo, sobretudo de regiões mais distantes do eixo, mas também preocupado com as condições precárias com as quais muitas vezes precisamos lidar para produzirmos nossos filmes”, reflete o diretor.

Uma iniciativa parceira da Directors’ Factory Ceará foi o Projeto Paradiso, que, como explica a diretora-executiva Josephine Bourgois, contribuiu financeiramente, com divulgação e ações de networking para o projeto.

“Somos parceiros de iniciativas cearenses desde o início de nossa atuação e grandes admiradoras da política pública construída para o audiovisual na região”, aponta a gestora. Desde 2018, por exemplo, o Projeto Paradiso é parceiro do Laboratório Cena 15, do Porto Iracema das Artes, descrito por Josephine como “uma formação única no Brasil”. 

“Estive em Fortaleza durante as filmagens dos curtas, onde pude conhecer pessoalmente os cineastas participantes, tanto os brasileiros quanto os internacionais, e ver de perto a riqueza dessa experiência para todos”, segue a diretora-executiva.

Além do suporte ligado à iniciativa do Governo e da Quinzena, o Projeto Paradiso também apoiará a presença em Cannes de outros profissionais cearenses que compõem a Rede de Talentos da entidade.

Stella Carneiro (Alagoas) e Ary Zara (Portugal) assinam o curta 'A Vaqueira, a Dançarina e o Porco'
Legenda: Stella Carneiro e Ary Zara assinam o curta "A Vaqueira, a Dançarina e o Porco"
Foto: Divulgação

Entre eles, estão cineastas e produtores como Allan Deberton (diretor de “Pacarrete” e “O Melhor Amigo”), Maurício Macêdo (produtor de “Greta” e do ainda inédito “Amores Paraguayos”) e Ticiana Augusto Lima (diretora de “A Misteriosa Morte de Pérola” e produtora de “Estranho Caminho” e do ainda inédito “Morte e Vida Madalena”).

“O Ceará será foco de atenção em um dos maiores e principais festivais de cinema do mundo”, ressalta Josephine. “Este momento de pitch, com essa visibilidade que a Quinzena oferece, pode trazer muitas futuras parcerias para os projetos e para os profissionais e inúmeras conexões”, acrescenta.

Iniciativa é resultado de trajetória de políticas públicas

“A experiência do La Factory é completamente resultado de uma política de incentivo ao cinema cearense e também dessa política de Estado querer fazer com que a cultura do Ceará circule”, define Luciana.

A cineasta acrescenta, ainda que a presença cearense em Cannes em 2025 é também resultado “de uma trajetória que vem sendo realizada pelo Karim, pelo Allan Deberton, pelo Halder (Gomes), pela Roberta Marques, pelo Joe Pimentel, pelo Rosemberg Cariry, uma série de cineastas que vem produzindo conteúdo audiovisual e fazendo o Ceará circular”.

“Tem sido um aprendizado gigantesco e ele não seria possível sem tantos artistas e tantos talentos que temos na nossa terra que desbravaram, assim como não seria possível se não houvesse um investimento de energia de uma série de pessoas e de entidades que tem articulado para que esse tipo de projeto e de contexto aconteça”
Luciana Vieira
cineasta

Além dos diretores envolvidos, Luciana também cita os impactos da iniciativa para todas as equipes envolvidas nos curtas. Segundo dados do Governo, mais de 100 profissionais cearenses participaram do processo, incluindo técnicos, elenco, fornecedores, montadores e outras funções.

“São muitas pessoas que se envolvem, que aprendem com esse processo e que podem colocar agora no currículo que tem curtas realizados para o Festival de Cannes”, resume. Em diálogo, Wara ressalta a boa experiência das gravações com os profissionais envolvidos.

Curta 'A Fera do Mangue' tem realização de Sivan Noam Shimon e Wara
Legenda: Curta "A Fera do Mangue" tem realização de Sivan Noam Shimon e Wara
Foto: Divulgação

Tal contexto, salienta, se deve ao investimento necessário aplicado no projeto. “Acredito que isso venha desde o orçamento que foi designado, que foi justo. Na minha experiência enquanto pessoa que trabalhou em curtas financiados por editais públicos, não tenho recordação de ter trabalhado em um projeto que recebesse tanto apoio”, aponta.

O fato, ressalta Wara, lança luz na necessidade de fortalecimento geral de políticas públicas, incluindo para experiências, agentes e zonas periféricas do Estado. 

“O cinema cearense tem muito a oferecer a Cannes, ao mundo. Curtas-metragens de escolas, de comunidades indígenas, da periferia de Fortaleza, me deixa muito revigorade ver esses filmes e saber que tem mais gente, que vem de outros contextos, realizando tanto. É uma porta que se abre, é um passinho que se dá para que possam vir futuras histórias diversas”
Wara
cineasta

'Ponto Cego' tem Luciana Vieira e Marcel Beltrán na direção e roteiro
Legenda: "Ponto Cego" tem Luciana Vieira e Marcel Beltrán na direção e roteiro
Foto: Divulgação

Os impactos possíveis dessa experiência em novas gerações do cinema cearense é ecoado por Luciana: “Da mesma forma que a existência desse projeto é resultado do que foi realizado anteriormente por uma série de pessoas que desbravaram muitos caminhos, o que a gente vai plantar lá agora vai reverberar com certeza a curto, médio e longo prazo”.

“Nosso interesse é que as pessoas vejam e se emocionem com os nossos filmes, conheçam nossa cultura, entendam que o Brasil, o Ceará especialmente, é um polo de produção audiovisual e que a gente tem história para contar e talentos que estão atrás e na frente das telas”, sustenta.

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