Cinema cearense marca recorde de estreias e ampla circulação na retomada pós-pandemia
Apesar dos bons resultados do audiovisual no Estado no último ano, realizadores ainda apontam desigualdade nas oportunidades; entenda panorama dos últimos 5 anos e quais investimentos foram feitos

No ano passado, o cinema cearense completou 100 anos sob muitos holofotes: foi destaque no cenário nacional e internacional, com recorde de estreias comerciais em circuito nacional – oito longas, ao todo – e reconhecimento em festivais dentro e fora do Brasil. Nada disso ocorreu, no entanto, sem percalços.
Nos últimos cinco anos, os diferentes eixos da cadeia produtiva do audiovisual enfrentaram dificuldades financeiras, logísticas e emocionais para seguir em atuação durante e após a pandemia. Da Capital ao interior, realizadores precisaram transformar o modo de fazer cinema para continuar produzindo arte e gerando renda – e, apesar do ano de conquistas que o cinema cearense teve em 2024, muitos desses desafios persistem.
Com o intuito de dimensionar parte desse impacto na cultura cearense, além de entender as transformações provocadas no setor desde março de 2020, marco do início do isolamento social e da paralisação do setor artístico, o Verso publica, desde a última quarta-feira (19), uma série especial de três matérias que reúne memórias e reflexões de artistas e gestores culturais do Estado sobre o período mais desafiador da história recente.
A primeira matéria abordou as transformações no consumo da cultura no Ceará, com ênfase no mercado de eventos, incluindo experiências da cultura popular e da cena ballroom. Já nesta quinta-feira (20) o especial trouxe um panorama das leis emergenciais para reduzir o impacto da pandemia na cultura, bem como uma análise dessas medidas e algumas das ações de solidariedade lideradas pelos próprios artistas.
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“A pandemia somente agravou o problema”

No início de 2020, o cineasta e roteirista Déo Cardoso – nascido nos Estados Unidos, mas radicado na capital cearense – estava ansioso, confiante e feliz. Após realizar documentários e alguns curta-metragens de ficção por mais de dez anos, finalmente havia finalizado seu primeiro longa, Cabeça de Nêgo (2020) – que, em janeiro daquele ano, foi exibido e aplaudido na Mostra de Cinema de Tiradentes, uma das mais importantes do País – e começava a projetar um futuro para o filme.
Após receber propostas de algumas distribuidoras, Déo começou a “vislumbrar coisas muito boas”: circular por festivais, ver o filme ganhar as salas comerciais. Em março de 2020, num piscar de olhos, tudo mudou: salas de cinema fechadas e sets de filmagem eram apenas parte da paralisação que tomava conta do mundo para frear o avanço da Covid-19.
“O filme, carreira, perspectivas no cinema, tudo isso ficou pra segundo plano. Comecei só a pensar no meu filho, esposa, familiares. O presidente na época fazendo piada com as mortes, enfim. Foi realmente um grande terror”, lembra Déo, em entrevista ao Verso.
Aos poucos, realizadores como Cardoso começaram a entender que a situação se estenderia e que era preciso pensar em como voltar ao trabalho. No entanto, se o momento era de fragilidade para grandes produtores e estúdios, para os cineastas independentes, se tornava quase impossível planejar uma retomada.

“Cabeça de Nêgo”, apesar de muito elogiado, foi deixado de lado pelas distribuidoras, que começaram a recuar sobre lançamentos. Para Déo, sugeriram o lançamento direto no streaming, mas o artista negou – queria levar a obra às salas de cinema.
Na casa do artista, entre 2020 e 2021, os desafios financeiros se acentuaram, até uma oportunidade inesperada surgir. “Cheguei a pesquisar veículos para fazer corrida por aplicativo. Muitos amigos na mesma situação. Mas o que realmente salvou foi um convite para integrar a sala de roteiro de uma série que estava sendo desenvolvida na Globoplay”, lembra.
O convite partiu da roteirista Maria Camargo, que tinha assistido e adorado o filme de estreia do cineasta e queria que Déo fizesse parte da sala de roteiro de “Rota 66”, adaptação do livro homônimo do jornalista Caco Barcellos. “Foi a salvação naquele ano triste de pandemia”, lembra o artista.
Para mim, particularmente, só surgiu uma oportunidade. E, parando pra pensar, só tenho a agradecer, pois muita gente ficou sem qualquer oportunidade e até hoje sofre consequências econômicas por conta do impacto da pandemia na arte, sobretudo para nós, pessoas negras e pessoas brancas pobres.”
O novo trabalho trouxe fôlego à carreira de Déo. Em setembro de 2021, após diversos adiamentos em decorrência da pandemia, “Cabeça de Nêgo” foi lançado nas salas de oito capitais brasileiras, levando o diretor e roteirista a viajar pelo País. Ainda na pandemia, o artista começou a desenvolver o roteiro do próximo filme, ainda sem nome divulgado, que será filmado em breve.
“Acredito que hoje, em 2025, vários setores da economia já começam a recuperar os impactos sofridos na pandemia. No audiovisual não é diferente. Estamos voltando a produzir mais e, aos poucos, recuperando o público das salas de cinema”, ressalta.
O bom momento vivido pelo cinema cearense e brasileiro como um todo, porém, guarda desafios que vão além da pandemia – e que datam de muito antes dela.
“Nossos problemas são outros. Ainda precisamos reparar uma desigualdade histórica que se reflete da sociedade pra dentro do universo artístico e, sobretudo, no audiovisual, onde uma classe de maior poder aquisitivo sempre leva mais vantagem nos acessos às grandes produções”, conclui.
Para Déo, a concentração de recursos em projetos e produtoras do Sudeste e a falta de atenção de políticas afirmativas a projetos estreantes mesmo nas cotas regionais são parte relevante do problema. “O ‘Cabeça de Nêgo’, por exemplo, foi enviado a quatro editais, mas só foi contemplado no Edital de Baixo Orçamento Afirmativo para Pessoas Afrodescendentes, um edital federal da época da Dilma Rousseff e que não existe mais”, destaca.
O artista ressalta que, para sanar o problema, é preciso investir em editais categorizados, que coloquem projetos com o mesmo nível de investimento para competir entre si, e não grandes produções contra projetos menores, independentes.
“A pandemia somente agravou, de forma ainda mais profunda, o problema. Somente em 2023 as políticas públicas, via leis de incentivo, voltaram com força total, mas ainda carentes das reparações citadas acima. É inegável a disposição da atual gestão em discutir e dialogar sobre o problema, mas em termos práticos mesmo, ainda tá tímido”, aponta.
Vozes do interior ganham destaque

Com quase uma década experimentando diversas funções no audiovisual no interior do Estado, na Meruoca, a produtora, gestora e pesquisadora Raylane Neres já estava habituada a enfrentar as dificuldades de produzir cinema longe da Capital. À frente da Argumento Produções desde 2017, a diretora lidera uma equipe fixa de sete colaboradoras, que atuam em diversos eixos da produção cinematográfica.
Quando o primeiro decreto de isolamento social foi publicado, em 19 de março de 2020, a equipe tinha acabado de voltar para casa após as gravações de um longa documental. “Ficamos a primeira semana em casa, achando que logo voltaríamos para a empresa e iniciaríamos o processo de organização e montagem do material”, lembra Raylane.
“Mas com o decorrer das semanas, nos organizamos em trabalho remoto e a empresa passou a realizar atividades que não exigissem um contato físico entre colaboradores e/ou prestadores de serviço”, completa.
Com o agravamento da crise, a transformação nos processos teve que ser completa. Após a liberação de recursos da Lei Aldir Blanc 1, em 2020, a produtora conseguiu voltar ao trabalho e produziu um curta de animação de forma remota e um documentário em longa-metragem com equipe reduzida, com uma série de cuidados para manter a saúde de todos.

“Montamos uma força-tarefa que incluía fazer testes de todos os colaboradores, antes, durante e depois das viagens e a contratação de uma pessoa cujo trabalho era exclusivamente o auxílio constante na troca de máscaras, higienização dos equipamentos, garantir que os profissionais mantivessem uma distância segura entre si e com os entrevistados”, recorda.
Os cuidados para evitar o contágio eram muitos e aumentavam o custo de produção, mas os obstáculos também passavam por uma questão anterior à pandemia: a localização, que, segundo Raylane, dificulta e encarece muitos processos.
A manutenção das atividades só foi possível a partir dos editais emergenciais, afirma Raylane. “As dificuldades de ser mulher negra nessa posição de administradora de uma empresa do setor da economia criativa foram exacerbadas. Por muito tempo, a empresa tentou e não conseguiu qualquer financiamento”, ressalta.
“Depois vieram os editais, que infelizmente, não puderam socorrer a totalidade dos projetos e produtoras, mas que foi um respiro substancial para o setor, ao qual foi permitido fazer circular, de forma mais abrangente e para mais profissionais, os recursos aplicados”, completa.
A artista destaca que, mais recentemente, tem percebido o audiovisual cearense aquecido, mas que isso coloca em pauta outras questões, como a escassez de profissionais especializados.
“Tantos artistas e técnicos ocupados com as diversas demandas advindas dos editais em execução evidenciam um fator alarmante: a mão de obra especializada é bastante nichada e necessita de ampliação”, comenta. “Se você estiver programado gravar seu filme ainda no primeiro semestre de 2025, terá bastante dificuldade de fechar equipe 100% cearense”, completa.
De maneira geral, porém, o momento é de otimismo, acredita a produtora. Com as leis emergenciais e a criação da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), os recursos têm sido descentralizados e cidades como Meruoca passam a ter mais destaque no mapa do cinema cearense.
“Muitos municípios do interior que, em outros cenários, sequer sonhariam em lançar editais voltados para o cinema, puderam fazê-lo e, a partir disso, muita coisa foi despertada. O que precisamos fazer é lutar para que isto torne-se uma política de Estado e que, independente dos movimentos no tabuleiro político, o setor possa continuar sendo contemplado”, conclui.
Políticas públicas na retomada

Em meio aos diversos desafios impostos pela pandemia, do período mais crítico de isolamento social aos anos de retomada econômica, o audiovisual do Estado parece estar em crescente, sobretudo no último ano. Em 2024, ainda em recuperação após a pandemia, o setor teve o melhor desempenho em circulação até então, com oito estreias comerciais de longas em circuito nacional.
Segundo Camila Vieira, coordenadora de Cinema e Audiovisual da Secretaria da Cultura do Ceará (CCAVI/Secult-CE), parte desses filmes foram beneficiados por políticas de apoio ao audiovisual cearense executadas pela Secult-CE, como o Edital de Apoio ao Audiovisual Cearense (executado com recursos da Lei Aldir Blanc) e patrocínio direto do Governo do Estado (caso de “Motel Destino”).
“É um momento bastante significativo para o cinema cearense e sua visibilidade nacional e internacional. Nosso cinema é diverso na criação, nas formas estéticas e nos modos de produção. Isso demonstra um amadurecimento expressivo de profissionais com trajetórias distintas e que se acumularam ao longo dos anos”, destaca a gestora.
Mais de R$ 96 milhões investidos no cinema cearense
As leis emergenciais de apoio à classe artística na pandemia foram as grandes responsáveis pela sobrevivência do segmento durante a crise, sendo, para muitos artistas, a única forma de seguir com a produção e a circulação de suas obras.
O cineasta Déo Cardoso destaca que iniciativas como a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc foram “salvadoras” para muitos trabalhadores da cultura. “Para quem foi contemplado, essas leis emergenciais de incentivo foram boias para quem tava à deriva no mar, se afogando”, afirma.
No Ceará, as principais políticas de suporte ao cinema executadas pela gestão estadual entre 2020 e 2024 incluem o lançamento de oito editais que totalizam investimentos de R$ 96.038.393,86, entre ações de produção, difusão, formação, pesquisa fomento à exibição e preservação e licenciamento de obras audiovisuais para TVs públicas.
A primeira iniciativa com o intuito de reduzir os danos da pandemia foi o Edital de Apoio ao Audiovisual Cearense, executado entre 2020 e 2021 pela Lei Aldir Blanc. A medida injetou, no total, R$ 19.625.000,00 em 53 projetos cearenses, entre longas, curtas, roteiros e cineclubes.
Em 2022, a Secult-CE realizou duas chamadas para o XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo, uma voltada para Produções e uma para Difusão, Formação e Pesquisa. Juntos, os dois editais destinaram R$ 10.965.000,00 a produções de longas e curtas-metragens, além de cursos livres, roteiros, cineclubes, festivais e mostras.
Já entre 2023 e 2024, a Pasta executou cinco editais da Lei Paulo Gustavo: três chamadas do Edital de Apoio ao Audiovisual Cearense, um edital de Premiação Cultural e um de Chamamento Público para Parceria com Organização Social com atuação na área cultural para apoio a Salas de Cinemas Públicas Estaduais e Plataforma de Streaming. No total, a lei injetou R$ 65.448.393,86 em projetos de audiovisual do Ceará.
Além do fomento direto por meio dos editais, Camila Vieira destaca a realização de ações e iniciativas de equipamentos "vocacionados para o audiovisual" do Estado, como o Cineteatro São Luiz, o Cinema do Dragão, o Museu da Imagem e do Som (MIS-CE), o Hub Cultural Porto Dragão, a Escola Porto Iracema das Artes e o Centro Cultural do Bom Jardim.
Para 2025, até o momento, estão previstos mais de R$ 17 milhões para o setor. Em janeiro, o 15º Edital Ceará de Cinema e Audiovisual (anteriormente nomeado como Edital Ceará de Cinema e Vídeo) foi lançado, com investimentos no total de R$ 15.900.000,00, oriundos da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. “Ainda há previsão de lançamento de edital de jogos com o valor total de R$ 1.500.000,00”, detalha Camila Vieira.