Karim Aïnouz leva CE pela 1ª vez a Cannes com Safadão, diversidade e políticas em 'Motel Destino'
Filme foi selecionado para a edição de 2024 do Festival de Cannes, onde disputa a Palma de Ouro
Já se ia mais de uma década desde a última vez que o cearense Karim Aïnouz havia filmado um longa de ficção no estado de nascença. O reencontro audiovisual do diretor com o Ceará se deu entre agosto e setembro de 2023, período em que rodou “Motel Destino” no município de Beberibe, a 79 km de Fortaleza.
Descrito como um “thriller erótico”, o filme é protagonizado pelos cearenses Iago Xavier e Nataly Rocha, além do paulistano Fábio Assunção. O trio interpreta um triângulo amoroso formado por um jovem em fuga, a dona de um motel de beira de estrada e o marido abusivo dela.
De equipe e elenco quase totalmente cearenses e destacando das paisagens litorâneas do Estado à música “Pega o Guanabara”, parceria entre Wesley Safadão e Alanzim Coreano, o longa foi selecionado para o prestigiado Festival de Cannes. No evento francês, disputa a Palma de Ouro e é, até o momento, o único filme latino-americano da competição.
Em entrevista à coluna por videochamada na tarde desta quinta-feira (11), no calor da emoção do anúncio oficial, Karim fala sobre a seleção, a presença do Ceará na própria obra e, também, do audiovisual cearense no festival e no mapa do cinema mundial. “A gente merece”, atesta.
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Verso - Com o anúncio oficial e toda a repercussão, como tem sido esse acúmulo de reações, seja aqui no Ceará ou no mundo?
Karim Aïnouz - Foi muito emocionante, montei uma televisãozinha, sentei e estava tomando café como se estivesse assistindo ao resultado de Copa do Mundo. Foi incrível. Apesar da gente já saber, na hora que se torna público realmente é muito emocionante. São três emoções grandes. [A primeira é] o filme em si, como e onde ele foi feito. [Também] é a primeira vez que a gente tem um cearense em competição em Cannes na história do festival, na história do Ceará, o que é muito importante porque valida, estimula, inspira outras realizadoras e realizadores, esse audiovisual que fica tão longe do Rio-São Paulo. A terceira coisa é que é um filme brasileiro, cearense, que tem muita vitalidade. Se esse filme tem alguma coisa que marca é sangue no olho, vitalidade, tesão, vontade de viver.
Fala de um poder de cicatrização que é uma marca registrada da gente. A gente cai, mas se ergue com muita rapidez. É um filme feito com muita liberdade. Esse filme é uma expressão de liberdade especificamente no momento onde a gente está retomando a sensação de liberdade. Ele está muito em sincronia com o que a gente está vivendo no Brasil hoje, que é uma retomada da vida.
Verso - [Em entrevista anterior], você falou que tinha saudade de filmar no Ceará — fazia mais de uma década que não filmava ficção aqui — e citou algumas coisa como a luz, o céu, o afeto e o “cearensês”. Em que outros aspectos no filme o Ceará também se faz presente?
Karim - Tem um senso de humor grande no filme, ácido, irônico, que está presente sempre nos personagens, na história. Outra coisa incrível é uma sensação de diversidade no elenco. Com exceção do Fábio (Assunção), todo mundo é cearense. Você vê como é um Estado que tem diversidade, riqueza cultural, pessoas que são realmente muito iluminadas. Falando mais da filmagem, não do filme, tem uma coisa muito específica do Ceará que é um respeito e carinho com estar presente na equipe. Tem música, especificamente uma que a gente está usando muito que é do (Wesley) Safadão, "Pega o Guanabara" (de 2022, com Alanzim Coreano). Isso faz com que o filme tenha um perfume musical muito nosso.
Verso - Ele não é só o único cearense ou único brasileiro [em Cannes neste ano], mas, até o momento, o único latino-americano que foi selecionado...
Karim - Já pensou?
Verso - O que esse protagonismo traz de responsabilidade, de certa forma, mas também de possibilidade de holofote e destaque para o audiovisual daqui e o próprio Estado?
Karim - Responsabilidade sempre tem, então não penso muito nisso. Faz parte do pacote. Responsabilidade tem na hora que você liga a câmera, tem equipe, investimento financeiro. O que me interessa agora é que... (pausa) Puxa vida. A gente merece, sabe? A gente passou tanto tempo sendo silenciado nos últimos anos. Quando você vê os grandes destaques do Festival de Cannes... Eu estava lá no ano passado com um filme, foi incrível, mas era em inglês (“Firebrand”, com Jude Law e Alicia Vikander). O Kléber (Mendonça Filho, cineasta pernambucano) estava com um documentário também, mas esse lugar da competição, do protagonismo, acho que a última vez foi com "Bacurau" (2019, de Kléber e Juliano Dornelles), e isso foi no primeiro desses anos terríveis. (Foram) tantos anos que eram filmes argentinos, mexicanos, então que bom que a gente possa ser esse farol, pelo menos por enquanto. É o começo de uma movida, mesmo, de um movimento de outros filmes que vão estar vindo e, se não for em Cannes, vão estar em outros lugares, festivais e salas de cinema.
Depois do que a gente passou, a gente tem esse direito. Não estou falando do meu filme, nem de mim, nem do “Motel Destino”. Estou falando do filme como um gesto cultural, mesmo. Sinto que a gente estava na UTI e, depois que a gente saiu, pode estar andando e com orgulho de que esse seja o Brasil. O que espero é que isso anime, instigue, inspire outros cineastas a poderem fazer o mesmo. Esse sonho é possível e merecido
Verso - Na equipe e elenco cearenses, há a participação, por exemplo, de muita gente da Escola Porto Iracema das Artes (equipamento formativo do Governo do Estado). Queria saber sobre esse destaque e a possibilidade desses nomes terem essa plataforma e reconhecimento internacional.
Karim - É uma escola tão importante, que já formou tanta gente. Esse filme culmina um pouco esse processo. Me lembro da gente começar a escola em 2013 e um dos grandes temas era "não pode filmar, só pode escrever, pensar, escrever roteiro". Isso era uma aposta estratégica, na técnica de se contar histórias, mas é claro que o grande sonho era fazer filmes. É uma cadeia criativa que termina na produção e na exibição.
O que é um festival? É uma grande vitrine, você torna visível um trabalho para o mundo inteiro. (Isso) prova o sucesso de um grande projeto que é o Porto Iracema das Artes, que é o Cena 15 (Laboratório de Cinema da escola)
O roteirista principal desse filme é um autor que passou pela segunda turma do Cena 15, Wislan Esmeraldo, a diretora assistente desse filme, Luciana Vieira, é uma colaboradora de muitos anos. Além deles, várias pessoas na equipe eram e foram parte do Laboratório. Iago Xavier, protagonista do filme, é um ator que passou pelos cursos de formação, a Nataly (Rocha, também protagonista) ensina no Porto Iracema das Artes.
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O que o festival, a seleção e essas decisões fazem é que elas nos permitem acreditar na gente mesmo. É uma coisa de autoestima. A gente passou muitas décadas sendo tratado como um lugar periférico, marginal, e na verdade vamos parar com isso, entendeu? A gente é incrível. A gente é legal. A gente faz um cinema maravilhoso. Quando eu falo “a gente”, não sou eu nem o filme, é realmente quem estava junto e permitiu que ele seja feito. A gente não pode esquecer de uma coisa fundamental: esse filme é fruto de políticas públicas absolutamente louváveis, muito corajosas e muito perenes. Esse filme foi feito por seres humanos que estavam sendo educados e acompanhados por políticas públicas que foram de fato decisivas na confecção.
Verso - Não vou perguntar sobre exibição no Ceará porque o filme nem chegou ainda em Cannes, mas existe obviamente um processo e também uma vontade muito grande de passar aqui...
Karim - Óbvio que o filme tem que estrear no Ceará. A gente está terminando, mixando, fazendo correção de cor. Está com cara de deve estar lançando mais para o final do ano. É o provável, lá para outubro, novembro, a gente deve estar passando o filme aí no Ceará para um monte de gente ver. Espero que também em Beberibe, que foi a cidade em que a gente filmou, na Praia das Fontes. Queria muito poder passar para a comunidade inteira que a gente mobilizou e que veio ajudar a fazer esse filme.