De amor à primeira vista a conquista histórica: um dos primeiros casais gays a casar no Brasil completa 35 anos de união

Toni Reis e David Harrad conheceram-se nas escadas rolantes de um metrô em Londres e hoje celebram cada passo dado para que o amor seja sinônimo de liberdade

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 12:55)
Legenda: Toni Reis e David Harrad, respectivamente à esquerda e à direita, em foto de 1990 e de 2025: união além dos tempos
Foto: Arquivo pessoal

Sempre que chegam em casa, Toni Reis e David Harrad cultivam um ritual: sentam no sofá e observam os quadros na parede. As imagens contam histórias. E são muitas, sobretudo diante da jornada que compartilham. O casal é um dos primeiros a formalizar a união após a histórica decisão do Supremo Tribunal Federal de reconhecer a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, em 2011.

No próximo 29 de março, serão 35 anos de amor. Bodas de coral. Haverá um jantar e a bênção concedida por um padre para renovação dos votos. Os três filhos cantarão uma música, e até uma performance ao som de “Mamma Mia” acontecerá. Dia de festa e júbilo frente ao caminho percorrido em mais de três décadas.

Veja também

Nas paredes do tempo, a memória dá conta de guardar um encontro bonito. Era uma noite de 1990 quando, exatamente às 21h09, os dois se entreolharam nas escadas rolantes de uma das estações mais profundas do metrô de Londres. Toni recorda tudo. “Ele ficava me olhando e eu olhando pra ele, e a gente sabe quando a pessoa está a fim”, diz.

O brasileiro do interior do Paraná não perdeu tempo. Chegou logo para o jovem inglês e disparou: “Você quer casar comigo para o resto da vida?”. Assim, à queima-roupa. “Não falei ‘hi’, ‘hello’, nem ‘my name is’. Fui direto”. David deu risada, engatou conversa e, que surpresa, também sentiu o mesmo. Aquele estrangeiro ousado era o amor que esperava.

Casal se conheceu em Londres, passou dois anos morando na capital inglesa e depois manteve casa no Brasil
Legenda: Casal se conheceu em Londres, passou dois anos morando na capital inglesa e depois manteve casa no Brasil
Foto: Arquivo pessoal

Depois do episódio, moraram mais dois anos na capital da Inglaterra até resolverem desembarcar no Brasil, terra de Toni. Foi quando os desafios começaram. David veio morar como turista, com direito de permanência de até três meses no país. Entre idas e vindas a Londres e até a países vizinhos, como o Paraguai – tudo para esticar a presença na nação da pessoa amada – acabou ficando irregular devido à falta de dinheiro para bancar mais viagens.

“Comentei a situação com algumas pessoas, e uma delas o denunciou à Polícia Federal. David, então, foi preso, e deram oito dias para ele sair do Brasil”. O ponto é que nenhum dos dois gostaria de sair do país, o que motivou grande mobilização para expor as dificuldades de manter uma união nesses termos. Ocuparam amplos espaços da mídia – do Programa do Jô ao Fantástico. Fizeram com que a discussão durasse três meses ininterruptos.

A história sendo feita pelas mãos de Toni e David: casal formaliza união após decisão do Supremo Tribunal Federal
Legenda: A história sendo feita pelas mãos de Toni e David: casal formaliza união após decisão do Supremo Tribunal Federal
Foto: Arquivo pessoal

Dada que a condição de permanência do inglês em solo brasileiro era a partir do casamento com uma mulher e a concepção de um filho, 40 pretendentes apareceram para trocar alianças e conceber um rebento com ele. Era isso ou aplicar 300 mil dólares. “Nenhuma dessas opções era factível para nós, por isso envolvemos todo mundo, incluindo a primeira-dama do país à época e até o Ministro da Saúde”.

Por meio deles, David foi contratado para trabalhar numa Organização Não-Governamental por meio de um contrato pelo Ministério da Saúde e conseguiu permanência no país.  Obstáculo vencido, mas não parou por aí. O próximo passo foi entrar com um processo para alterar o Estatuto do Estrangeiro e conseguir que a residência dos dois fosse tida como “reunião familiar”.

O casal com os três filhos, Felipe, Alice e Alison: triunfos coletivos e em família
Legenda: O casal com os três filhos, Felipe, Alice e Alison: triunfos coletivos e em família
Foto: Arquivo pessoal

“Fizemos muitas viagens para Brasília e, em 2009, apoiamos o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que entrou com uma ação no STF a nosso favor. Em 5 de maio de 2011, vencemos unanimemente. Naquele mesmo dia, convidei o David para casar comigo oficialmente e ele aceitou. Voltei para Curitiba, procurei quatro cartórios, mas todos disseram ‘não’. Até que contratamos um excelente advogado, e fomos um dos primeiros casais homoafetivos a casar no Brasil. Me sinto muito orgulhoso, mas a gente lutou muito”.

Hoje, ambos se sentem cidadãos plenos, sobretudo após o passo a passo das conquistas subjacentes. A concessão do direito à adoção foi uma delas. Passaram a chamar de filhos Alison, de 24 anos; Alice, de 22; e Felipe, de 19. Outra bela revolução foi constatar a garantia de todos os direitos previstos na constituição a casais LGBTQ+. Numa conta rápida, mensuram: são quase 500 mil casais do mesmo sexo no país vivendo a liberdade de amar.

Legenda: "Até a Igreja evoluiu, e vejo que evoluirá mais", torce Toni Reis
Foto: Arquivo pessoal

Toni tornou-se diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTQIA+ e uma figura de destaque no ativismo brasileiro. Ele também fundou a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) em 1995, e lidera iniciativas que promovem a igualdade de direitos e o combate à discriminação.

“Acho que o Estado foi criado para servir o cidadão, e não o contrário. Ele precisa proteger o direito das pessoas e nosso livre-arbítrio. Temos o poder de ser o que somos, e queremos ser felizes, simplesmente isso. Da ordem jurídica, já conseguimos muito. Inclusive agora, por meio de uma ação nossa, conseguimos que a Lei Maria da Penha também se estenda para as violências entre casais homoafetivos”.

O trabalho de conscientização da sociedade continua. Combater discursos extremistas e preconceituosos segue como a ordem dos dias. Semear um ambiente de tolerância e cuidado também. E, claro, comemorar o que já foi alcançado. O casal contabiliza: hoje é possível casar, adotar, doar sangue, falar sobre Direitos Humanos e Diversidade em escolas, promover paradas de diversidade sexual e conter leis que tentam inviabilizá-los.

“Tem um povo que é contrário à gente, mas até eles já evoluíram. Na Idade Média, nos queimavam na fogueira; hoje, só falam que somos pecadores. Até a Igreja evoluiu, e vejo que evoluirá mais. Alguns setores religiosos ainda vão pedir perdão por tudo que têm falado mal de nossa comunidade. Nosso atual papa, pelo contrário, fez declarações belíssimas à gente”.

Até lá, Toni quer apresentar cada vez mais músicas gauchescas a David, e David pretende devolver a gentileza com canções clássicas. Continuarão comendo espaguete ao alho e óleo com molho bolonhesa e vinho Chardonnay às sextas-feiras, e fazendo academia juntos. Decerto criarão o canal que tanto desejam, “Eternamente gays”, para falar que é possível ser gay velho, maricona, e feliz. Decerto permanecerão sempre almoçando juntos. 

Legenda: "Sofremos, choramos, como diz o Roberto Carlos, mas muitas emoções vivemos"
Foto: Arquivo pessoal

Quando novamente entrarem em casa, olharão para os quadros e terão certeza de que o amor é dedicação, respeito, cuidado e um querer todo grande de ver a outra pessoa bem. E torcerão para que todos sejam culturalmente competentes, cientes de que é preciso respeitar as individualidades. Deixar o coração ser coração, e a alma contornar o universo.

“Temos toda a nossa história à nossa frente – documentos, entrevistas… Sofremos, choramos, como diz o Roberto Carlos, mas muitas emoções vivemos. Hoje estamos vivos, felizes e a maioria da sociedade nos respeita. E quem não nos respeita, deixa eles. Eles também têm uma forma de ver o mundo, e desejamos felicidade para todos, inclusive para nossos adversários. A gente tem que se superar, e nosso sonho é que a sociedade se respeite”.

 

Esta é a história de amor do professor Toni Reis e do tradutor David Harrad. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.