Cineasta cearense ressalta ancestralidade e permanência da cultura negra em documentário gravado em Itapipoca

Dirigido por Kiko Alves, "Um Lugar Chamado Aruanda" mergulha em memórias familiares e coletivas de pessoas negras

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
Legenda: Documentário de Kiko Alves evidencia ponto de vista familiar ao mergulhar nas memórias de familiares como o tio avô e a avó
Foto: Joélia Braga / Divulgação

Busca por referências. Foi a partir dessa intenção primeira, há mais de 10 anos, que o cineasta cearense Kiko Alves começou a construir o caminho que desemboca, agora, no documentário "Um Lugar Chamado Aruanda" — um mergulho na história da própria família e, por consequência, na de diversas outras pessoas negras do Estado.

Inspirado por acompanhar a trajetória de vida da avó Georgina e ouvir os causos partilhados por ela, o artista estreia na direção de longas-metragens com um projeto que destaca saberes, ancestralidades e registros do município de Itapipoca, onde ele nasceu e a família vive há gerações. O filme tem previsão de ser finalizado ainda no primeiro semestre.

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Antes do cinema se somar à história de Kiko, porém, o percurso dele foi marcado, num primeiro momento, por um incômodo pela ausência de referências bibliográficas negras no ambiente da Universidade, da graduação em Filosofia ao mestrado em Sociologia — o que sentiu também ao adentrar no audiovisual.

“Naquele momento, para mim enquanto uma pessoa negra, de periferia, homossexual, era muito ruim a bibliografia. Isso era uma questão, começou a me incomodar, então eu comecei a imergir em arquivos públicos na busca de referencial”, rememora.

Busca por referências acadêmicas e por detalhes das próprias raízes motivaram o percurso artístico de Kiko Alves
Legenda: Busca por referências acadêmicas e por detalhes das próprias raízes motivaram o percurso artístico de Kiko Alves
Foto: Joélia Braga / Divulgação

A procura acadêmica por referências ocorria em paralelo a outra, essa referente às próprias raízes. “Somos uma família de catimbozeiros, de pessoas de matriz africana, de uma comunidade de remanescentes quilombolas em Itapipoca que é não reconhecida”, explica Kiko.

Construir documentos para gerar memória

Segundo ele, a série de apagamentos aos quais pessoas negras foram historicamente submetidas — como a separação de parentes e a falta de informações genealógicas precisas, consequências do processo de escravização — também foram sentidas na própria família.

“A gente não tinha referência de quem eram os nossos”, define, lembrando, ainda, da proximidade temporal do regime da escravidão no Brasil — encerrado de forma oficial na história do País em 13 de maio de 1888 e, no Ceará, em 25 de março de 1884.

“Se tem a ideia de que o processo de abolição foi há muito tempo no passado, mas minha avó e meus tios são a primeira geração da minha família que não nasceu escrava”, ressalta.

A partir das ausências sobre as histórias dos negros no Ceará e da própria família, Kiko resolveu agir. “Comecei a pensar que talvez fosse interessante construir documentos para as gerações que estão por vir, para que elas não tivessem tanta dificuldade”, explica.

Os projetos audiovisuais do diretor passaram a se centrar nessa intenção, em especial a partir da pandemia, quando Kiko reconheceu na avó Georgina, quase centenária, em uma “referência-base para pensar um trabalho mais complexo”. 

Saberes e práticas de comunidades quilombolas de Itapipoca são evidenciados no documentário
Legenda: Saberes e práticas de comunidades quilombolas de Itapipoca são evidenciados no documentário
Foto: Joélia Braga / Divulgação

“Fiquei pensando muito sobre apagamento, não só o histórico, mas o subjetivo, o de fato, com a morte de pessoas negras. Queria gerar memória”, atesta. A produção do curta “O Caminho Vivido” (2021) abriu esse momento. “A partir daí, comecei a aprofundar os dois universos, a pesquisa acadêmica e as contações da minha avó”, aponta.

“Mais universal do que se pensa”

"Um Lugar Chamado Aruanda", define Kiko, tem na família dele o “disparador principal”, com foco especial nas histórias da avó Georgina e do tio-avô Antônio. A partir deles, porém, o filme foi se alargando para outros parentes.

“Minha avó, por exemplo, há muitos anos não via a tia Conceição, uma irmã dela, que eu conheci muito recentemente a partir do processo do filme. Fui encontrando primos de primeiro, segundo, quinto grau, de quem nunca tinha tido conhecimento”, ilustra.

Em outros passos do processo, Kiko acabou entrando em contato com imagens do próprio bisavô, que faleceu um ano após o nascimento dele. “Não tenho foto da minha infância, a gente não tinha dinheiro, então consequentemente ter imagens dos mais antigos era algo realmente muito difícil”, contextualiza.

No entanto, se deparou com uma foto do bisavô com uma prima e também acessou um retrato pintado do parente a partir de outra pessoa da família. O documentário, porém, também se abriu a contextos além dos pessoais. “Na medida que a gente chegava em campo, outras pessoas chegavam junto e conduziam a narrativa para outro canto”, resume. 

“Partindo da história da minha família, o objetivo é refletir sobre a presença negra no Ceará tendo como dispositivo minha avó e meus dois tios-avós vivos para, a partir deles, tentar entender a sociabilidade negra na primeira metade do século 20 e como essas famílias se organizavam”
Kiko Alves
cineasta

“É um processo que abrange muito mais gente. Quando a gente narra sobre famílias negras, é mais universal do que se pensa. Histórias se repetem porque o racismo e toda a violência que ele traz, historicamente, impacta as famílias negras, não interessa se aqui ou no Rio de Janeiro. Quando começamos a contar histórias localizadas, a gente vai encontrando ecos”, sustenta Kiko.

Aruanda e ancestralidade

Ao evidenciar costumes e crenças da própria família e da comunidade na qual ela estava inserida, o projeto dá a ver práticas do catimbó, religião afro-indígena expressada por eles há mais de um século, e outros saberes culturais que permanecem.

O título do filme menciona o conceito de “Aruanda”, uma “palavra muito importante para os povos do que é chamado hoje de umbanda”, explica Kiko. Além de algo espiritual, “Aruanda” também pode ser palpável, como a mata e a jurema.

Documentário destaca expressões tradicionais e ancestrais de comunidades negras no interior do Ceará
Legenda: Documentário destaca expressões tradicionais e ancestrais de comunidades negras no interior do Ceará
Foto: Alan Avelino / Divulgação

“Ela é esse lugar místico, mas também esse lugar inventado pelos povos negros não só na diáspora, mas também contado, cantado e reinventado no presente”, define. A demarcação reverbera, também, a visão de ancestralidade defendida pelo longa — e aprendida por Kiko com as ancestrais.

“Existe a ideia que a ancestralidade é um conceito organizado no tempo de forma quase estática, como se fosse uma coisa muito sagrada num lugar muito distante, mas a gente aprendeu em casa que ancestralidade é DNA, parafraseando minha mãe e minha avó. Elas sempre falaram que ancestralidade é essencialmente algo que está presente, vivo, que pulsa”
Kiko Alves
cineasta

“Outro” cinema cearense

Em consonância com as inspirações do projeto e os próprios temas tratados por ele, Kiko buscou que a concretização de “Um Lugar Chamado Luanda” trouxesse o protagonismo para profissionais negros.

A obra é assinada pela Mucambo Produções, do cearense, nomeada em homenagem ao assentamento de onde a família vem e criada na ideia “de ser um espaço voltado à produção de conteúdos negros e LGBTQIA+”, como define.

Parte da equipe que concretizou o documentário 'Um Lugar Chamado Aruanda'
Legenda: Parte da equipe que concretizou o documentário "Um Lugar Chamado Aruanda"
Foto: Joélia Braga / Divulgação

“A gente tem pensado as equipes o mais negras possível, fora do circuito mais tradicional de produção. São pessoas que não estão no grande circuito, podemos construir uma cena nossa, para nós”, aponta.

Kiko ressalta que a concretização da produção foi possível a partir da destinação de recursos da Secretaria da Cultura do Ceará para projetos de produtoras e diretores estreantes, caso dele. “Isso é importante porque novas narrativas vão surgindo”, afirma.

“É difícil pensar que produtoras que nascem na periferia conseguem concorrer com as grandes. Acreditar que a gente, que está começando a pensar longa-metragem, vai conseguir concorrer com elas é muito ingênuo, então o fomento e a aposta no surgimento de novos olhares é fundamental para que o cinema cearense consiga ter outro dialeto, outra estética, outro modo de perceber a realidade”
Kiko Alves
cineasta

Previsão de lançamentos e mais projetos

Conforme Kiko, as previsões de finalização e estreia de “Um Lugar Chamado Aruanda” são ainda para o primeiro semestre de 2025. Atualmente, o filme está na ilha de edição e, depois, terá efetivado trabalho de som. 

“A ideia é que a gente termine esse corte lá para a segunda quinzena de abril, para a gente organizar a parte do som junto com a colorização, para que a gente consiga finalizar entre final de maio e início de junho, e durante junho e julho fazer os lançamentos”, adianta o cineasta.

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Estão previstas sessões no assentamento rural do Carrapato e na Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú, locais onde o documentário foi gravado, além de exibições na sala CINE+ de Itapipoca, projeto de instalação de salas multiuso de cinema no interior do Estado.

Para além da circulação do filme em si, Kiko prevê outras iniciativas. Entre elas, o que o artista define como “uma iconografia com documentos dos cartórios, fotos e objetos” que contem a história de Itapipoca e das famílias do município. 

Há, ainda, o projeto Sala Preta, espécie de arquivo aberto e colaborativo. “A gente pretende criar um registro digital para disponibilizar, além do filme e das imagens que não vão entrar nele, também ações, sonoridades,  fotos de família, deixando isso de forma aberta para que as pessoas possam tanto procurar quanto complementar essas informações”, explica.

Finalmente, o realizador ainda compartilha o projeto de criar uma publicação impressa aliada às intenções de evidenciar referências e construir novas. “É para fazer com que essa pesquisa não fique presa a mim, que outras pessoas consigam utilizá-la”, ressalta.

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