Qual o segredo de um amor longo? Neta fala sobre os 65 anos de união dos avós que só a morte separou
Paciência, amor e perseverança marcaram as mais de seis décadas de convivência entre José Venâncio e Verônica Ceará

Auriane Sousa é rica de fortuna rara: testemunhou um amor com 65 anos de duração. Criada pelos avós desde os oito meses de idade, viu de perto como José Venâncio e Verônica Ceará ergueram em torno deles um império colossal de carinho, companheirismo e parceria. Hoje, quando olha para esses frutos, a neta de 29 anos de idade se emociona.
“Lembro deles sempre muito unidos, juntos, com uma fé inabalável mesmo nas dificuldades. A gente sempre morou no interior, então tivemos aquelas dificuldades conhecidas – de alimentação, de viver da roça, já que os dois eram agricultores. Apesar disso, tudo sempre foi enfrentado com muito amor, vigor e perseverança”, recorda.
Essa atenção tão grande à trajetória romântica dos avós revela-se nos detalhes – da data do casamento deles a como as intempéries da vida exigiram dos dois coragem. José Venâncio e Verônica casaram em 25 de dezembro de 1959, um Natal muito mimoso. Naturais de Cavalo Morto, pequena comunidade localizada entre São Luís do Curu e Trairi, eram a personificação de uma tranquilidade distante da Capital e muito afeita ao aconchego.
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Os sentimentos, feito tudo na vida, cresceram com o tempo e refletiram aquilo que tinha de mais forte em ambos. Jogador por excelência, José Venâncio – de apelido Piramba devido a um causo envolvendo o hino nacional brasileiro – sempre foi rígido, duro. Falava alto e não admitia que as mulheres da família namorassem qualquer um. O homem que se achegasse a elas precisava passar por teste severo antes de consolidar relação. Critérios apurados.
Verônica, por outro lado, é a própria serenidade, contraponto perfeito à impetuosidade do marido. Cuidadosa, sempre gostou de mesa farta e, aos fins de semana, cultivava o hábito de reunir a família para expressar o calor que só ela sabe dar. Essa sabedoria permitiu que, pouco a pouco, José Venâncio acalmasse mais os ânimos e se lançasse em algo maior.
Foi quando o valente patriarca se viu mais afeito ao espiritual. Passou a rezar mais, a ir à missa de braços dados com a esposa de modo mais frequente e prazeroso. “Ele mudou bastante”, situa Auriane, creditando à avó essa transformação. Não era raro ouvir Verônica falar: “Tenha paciência, não é assim, saiba conversar, não leve as coisas por esse lado”.
São as pequenas tentativas do amor que, de tanto insistir, fundam algo novo: deixam que as pessoas sejam elas mesmas, embora melhores. Não à toa, sempre que alguém pergunta qual o segredo para uma relação durar e frutificar tanto – são 11 filhos, 26 netos, 31 bisnetos e três tataranetos – a resposta vem fácil por parte dos dois: paciência, amor e perseverança. “Vi isso de perto, não apenas ouvi falar. Aprendi muito com meus avós”, diz Auriane.
.“Apesar de várias decepções amorosas, ainda acredito no amor. Acredito porque vi como ele pode ser possível. Sempre falo para a minha avó, ‘quero a sorte de um amor assim, igual o da senhora e do vô”. O que aconteceu entre eles foi realmente na alegria e na tristeza até que a morte os separasse. Quer coisa mais bonita que isso?”
A despedida final aconteceu no último dia 27 de abril, quando José Venâncio encantou-se. Há anos enfrentava um câncer, o que o fez inclusive mudar para próximo de Fortaleza e realizar tratamento. Residia na Pavuna, bairro do município de Pacatuba, Região Metropolitana, e se permitia ser feliz inclusive nos instantes em que tudo era breu.
Foi assim quando, na véspera do falecimento, chamou toda a família e, sobretudo, a esposa, para o último adeus. Falou com cada um e, na vez da amada, não poupou afagar-lhe as mãos, acarinhar-lhe os cabelos. Os dois ali, 85 e 81 anos, erguendo outro novo santuário em torno de si: terno, forte e perene, como as coisas mais valiosas são.
“Deus deu essa graça a ele de se despedir. E deu essa graça pra gente também, de poder fazer o mesmo. Eles sempre mantiveram a família muito unida, então todo mundo permaneceu muito perto. Todos os fins de semana estavam na casa deles. Não esperávamos datas especiais, apenas aproveitar essas duas joias raras, em pé e vivas, para desfrutar da presença”.
Ficará muita saudade. Verônica ainda se recupera do luto, não à toa evita falar a respeito. É tudo muito forte. Auriane quer que nunca escape da memória as grandes reuniões na casa da família no interior. No réveillon, principalmente, ninguém arredava pé sem antes participar da oração conduzida pelo casal e ouvir deles os votos tão graciosos de Feliz Ano Novo.
Riqueza de fortuna rara. Quem mais ousa dividir a vida com alguém assim ao longo de 65 anos? Rubem Alves arrisca: “Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. De alguma forma, a gota de chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética do divino”. José Venâncio e Verônica: inscritos no infinito possível das coisas.
*Esta é a história de amor de José Venâncio e Verônica Ceará por meio do relato da neta, Auriane Sousa. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor