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O dia 17 de março de 2020 observou uma convergência de temas nas sessões plenárias das duas principais casas legislativas do Ceará. Na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) e na Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor), o tema principal — na tribuna e nos corredores — foi a pandemia de Covid-19. 

Não poderia ser diferente. Apenas dois dias antes, os três primeiros casos da doença haviam sido confirmados no Ceará. No dia 17 de março, o Estado alcançava a marca de 9 casos confirmados. Os episódios continuariam a se multiplicar e, no final daquela semana, o Ceará ultrapassaria as 70 pessoas infectadas, incluindo autoridades políticas cearenses, como a então vice-governadora Izolda Cela e o então prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio

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Aquele 17 de março — cinco anos atrás — era uma terça-feira, primeiro dia de sessões legislativas da semana. No plenário dos parlamentos, um item que tornaria-se símbolo da pandemia não era visto. Apenas um dos vereadores na tribuna estava com a máscara, porém presa no pescoço — e não da forma correta: no rosto, cobrindo nariz e boca. O uso obrigatório da máscara seria estabelecido apenas um mês depois, em decreto estadual do dia 19 de abril.  

Na Câmara Municipal, o então presidente da Casa, Antônio Henrique (PDT), iniciou a sessão comunicando aos colegas as medidas que seria adotadas para evitar a proliferação do vírus, incluindo a restrição de acesso ao prédio da Câmara e a diminuição do número de sessões plenárias. 

Na Assembleia Legislativa do Ceará, dos seis oradores inscritos para falar na tribuna, cinco focaram o discurso na pandemia da Covid-19. Sem votação de projetos no dia, o segundo expediente da sessão teve a presença do então secretário de Saúde do Ceará, Dr. Cabeto, para o debate das "ações de prevenção à propagação do coronavírus (Covid-19) no Estado do Ceará e as medidas de atendimento aos infectados".

Sessões remotas no Legislativo

As sessões legislativas realizadas no dia 17 de março no Ceará ocorreram de forma presencial, no prédio da respectiva casa legislativa. O mesmo não se repetiria nos dias posteriores. As sessões da Assembleia Legislativa, por exemplo, foram suspensas no dia seguinte, após deputados estaduais testarem positivo para a Covid-19

No dia 19 de março, a Alece realizou o primeiro teste para uma sessão legislativa remota — durante três horas, os parlamentares tiveram uma conversa informal para testar o formato da sessão, que teve transmissão pública durante cerca de uma hora. 

Hoje, o modelo remoto não é mais uma novidade. O formato virtual foi usado por casas legislativas em todo País, incluindo a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Os brasileiros e cearenses acompanharam diversas sessões inteiramente virtuais — em períodos de pico de casos da doença — ou híbridas, quando uma parte dos parlamentares estava presente no prédio da casa legislativa e outra parte estava de forma virtual. Outros Poderes, como o Judiciário, também aplicaram o formato.

Na época, contudo, realizar uma sessão inteiramente virtual era um desafio. Dos 46 deputados estaduais, 44 estiveram presentes na primeira sessão virtual realizada pela Assembleia Legislativa no dia 20 de março de 2020. “Essa é uma ação inédita. Faço parte de um grupo de presidentes de assembleias, e o Legislativo cearense é pioneiro em fazer sessões de forma remota”, disse o então presidente da Casa, José Sarto (PDT). 

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Legenda: Primeira sessão remota na CMFor (imagem 1) e na Alece (imagem 2)
Foto: Reprodução

Na Câmara Municipal de Fortaleza, a primeira sessão remota ocorreu apenas no dia 31 de março de 2020 — a primeira realizada desde do dia 17 de março daquele ano (e narrada no início desta reportagem). A imagem do Plenário Fausto Arruda foi substituída pelos quadrados em vídeo representando cada um dos vereadores de Fortaleza presentes na sessão — que naquele dia aprovaram o decreto de calamidade pública na capital cearense.

A realização de sessões remotas no Poder Legislativo foi um dos "legados" da pandemia da Covid-19. No ano passado, por exemplo, a Alece teve uma semana de sessões exclusivamente virtuais após incêndio atingir o plenário da Casa.  O modelo híbrido, onde os parlamentares podem participar por videoconferência — inclusive fazendo discursos e votando nas matérias legislativas — foi incluído no regimento interno dos parlamentos estaduais e permaneceu como parte da rotina legislativa não apenas no Ceará, como no Brasil. 

Na Alece, deputados estaduais podem participar das sessões tanto de forma física como pela plataforma de reunião virtual. A participação remota deve ocorrer em, no máximo, metade das sessões ordinárias, enquanto nas sessões extraordinárias, a participação virtual precisa ser autorizada com justificativa fundamentada apresentada à presidência da Casa. 

No regimento da Câmara Municipal de Fortaleza, comissões técnicas e sessões plenárias precisam ser realizadas "por meio de solução tecnológica que concilie a presença física dos vereadores e o acesso remoto por meio de plataforma de reunião virtual com áudio e vídeo".

O documento afirma ainda que cada vereador pode participar, por meio remoto, de até metade das sessões e que é possível a realização de sessões em formato exclusivamente virtual em "situações de guerra, convulsão social, calamidade pública decretada, pandemia, emergência epidemiológica, colapso do sistema de transportes ou situações de força maior".

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Casos confirmados entre autoridades políticas

Entre os primeiros casos de Covid-19 no Ceará, ainda em 2020, estiveram algumas das principais autoridades políticas do estado na época. A vice-governadora Izolda Cela confirmou o diagnóstico no dia 18 de março de 2020 — o marido dela e ex-prefeito de Sobral, Veveu Arruda (PT), também testou positivo após viagem para Portugal

No exercício do mandato na época, o suplente de senador Prisco Bezerra (PDT) também teve teste positivo confirmado no dia 19 de março. Um dia depois, o irmão dele e então prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, também testou positivo. 

Ainda nos primeiros dias da doença no Ceará, quatro deputados estaduais tiveram a confirmação da infecção com o vírus. Líder do Governo Camilo Santana (PT) na época, Júlio César Filho (PT), foi o primeiro a testar positivo — e motivou o então presidente da Alece, José Sarto, a suspender as sessões presenciais na Alece. Na sequência, Antônio Granja (PSB), Tin Gomes (PSB) e Queiroz Filho (PDT) também confirmaram o diagnóstico. No mesmo período, também testaram positivo o ex-deputado estadual e então pré-candidato à Prefeitura de Fortaleza, Carlos Matos, e o então deputado federal Raimundo Gomes de Matos (União). 

Outras lideranças políticas cearenses também tiveram diagnóstico de Covid-19. Governador do Ceará na época, Camilo Santana testou positivo para a doença em outubro de 2020. "Pelo fato de Onélia ter dado positivo já havia cancelado toda a minha agenda pública e entrado em isolamento, trabalhando de casa", disse, na época, o petista em referência à ex-primeira-dama e atual conselheira do Tribunal de Contas do Estado (TCE-CE), Onélia Santana

Também em outubro, o então candidato à Prefeitura de Fortaleza, José Sarto, contraiu a doença. Na época, em plena campanha eleitoral, ele chegou a ser internado, apesar de não ter necessitado de tratamento intensivo. Ele retomou à campanha de rua — restrita, na época, por conta das medidas sanitárias para contenção da proliferação do vírus — mais de 20 dias depois do diagnóstico. 

A pandemia da Covid-19 também fez vítimas fatais entre lideranças políticas. Uma delas foi o ex-governador Adauto Bezerra, que faleceu em abril de 2021. O político foi homenageado por diversas autoridades, como Camilo Santana, Cid Gomes (PSB) e Tasso Jereissati (PSDB). 

Dois prefeitos cearenses também foram vítimas. Eleito em Ereré, Otoni Queiroz não chegou a tomar posse do cargo. Ele faleceu no início de dezembro de 2020, pouco mais de um mês depois de conquistar a vitória nas urnas. O prefeito de Palhano, Ivanildo Nunes, faleceu em março de 2021, vítima da Covid-19 — ele havia iniciado o segundo mandato na Prefeitura três meses antes. 

Os vereadores Cleanio Rabelo Saraiva (Banabuiú), Dr. Júnior Araújo (Santa Quitéria) e Edson Silva (Assaré) faleceram após serem diagnosticados com a doença. 

Ex-vereadores de Fortaleza, Iraguassú TeixeiraCarlos Dutra e Francisco Eurivá Matias, o Titico, e de Juazeiro do Norte, Normando Sóracles, também foram vítimas da doença. Ainda entre parlamentares, o ex-deputado estadual Ted Rocha Pontes também faleceu por conta da doença. 

Ex-prefeitos de cidades cearenses também estavam na lista de vítimas fatais da doença. Entre eles, Marcone José Figueiredo (Araripe); Antônio Guimarães (Aquiraz); Carlos Alberto Cruz (Juazeiro do Norte); e Carlos Antônio (Bela Cruz). 

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Queda de braço entre Poderes

O primeiro decreto estadual restringindo a circulação de pessoas foi publicado poucos dias depois dos primeiros casos confirmados. No dia 19 de março, Camilo Santana assinou o documento que proibia o funcionamento de:

  • Bares, restaurantes e lanchonetes; 
  • Templos, igrejas e demais instituições religiosas; 
  • Museus, cinemas e outros equipamentos culturais, públicos e privados;
  • Academias, clubes e centros de ginástica; 
  • Lojas ou estabelecimentos que praticassem o comércio ou prestassem serviços de natureza privada; 
  • Shoppings centers, galerias/centros comerciais; 
  • Feiras e exposições, entre outros. 

Antes disso, haviam sido proibidas aglomerações de pessoas. Também foi proibida a ida a praias e o transporte público intermunicipal estava suspenso. A permissão para funcionamento foi dado apenas a serviços essenciais, como supermercados e farmácias. 

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O isolamento social era a medida mais eficaz para tentar impedir — ou diminuir — a contaminação. Vale lembrar que a primeira vacina seria aplicada apenas em janeiro de 2021 e mesmo o acesso a testes era escasso nas primeiras semanas da doença. 

As medidas sanitárias cada vez mais restritas, inclusive com a declaração de lockdown nas semanas seguintes em diversas cidades e estados brasileiros, inclusive o Ceará, foram um dos principais pontos de divergência política entre diferentes Poderes — em um país que vivia o rescaldo da eleição polarizada de 2018, quando Jair Bolsonaro (PL) foi eleito presidente.  

As primeiras cidades cearenses a entrarem em lockdown foram por determinação da Justiça e não do Poder Executivo. No Maranhão, quatro cidades da Região Metropolitana entraram em lockdown no início de maio de 2020 após ação do Ministério Público do Maranhão ser acatada pelo Poder Judiciário. 

No Ceará, a Justiça também foi acionada para autorizar o lockdown no estado por conta do aumento de casos de Covid-19. O pedido, feito também em maio, foi negado. Poucos dias depois, no entanto, Camilo Santana anunciou, ao lado de Roberto Cláudio, medidas mais restritas de isolamento social. Na época, o termo lockdown não foi usado pelos gestores. 

A divergência sobre as medidas de isolamento social seriam frequentes nos embates políticos, principalmente nos dois primeiros anos de pandemia da Covid-19. Ainda em março de 2020, o Governo Jair Bolsonaro lançou a campanha "O Brasil não pode parar", na qual criticava medidas rígidas de isolamento social. 

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Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão do ministro Luís Roberto Barroso, proibiu a produção e circulação da campanha poucos dias depois. Também partiu do STF a autorização para que governadores e prefeitos brasileiros estabelecessem as medidas sanitárias contra a pandemia, sem a necessidade de pedir autorização ao governo federal. 

Antes disso, Bolsonaro havia escolhido governadores como principais alvos das críticas a respeito das medidas de isolamento social. Os ataques foram feitos em pronunciamento em rede nacional — "poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de 'terra arrasada'", disse ele —, em entrevistas e nas redes sociais.

As críticas e farpas entre Bolsonaro e Camilo Santana foram comuns durante o período — os governadores nordestinos, reunidos no Consórcio Nordeste, acabariam se tornando um dos alvos prioritários de ataques do então presidente. Camilo Santana foi, por exemplo, um dos governadores a não obedecer ao decreto federal que incluía igrejas, academias, salões de beleza e barbearias como atividades essenciais — no total, 25 governadores decidiram descumprir a medida. 

Ainda em março de 2020, Camilo criticou a demora do governo federal em colocar barreiras sanitárias no Aeroporto de Fortaleza — origem de muitos dos primeiros casos registrados da Covid-19 no Ceará. O então governador cearense também recusou convite de Bolsonaro para solenidade que marcou a chegada das águas do Rio São Francisco ao Ceará em maio. Na época, o estado estava sob decreto de isolamento social. "Só após superarmos este grave problema de pandemia deverei voltar ao local da transposição", disse. 

Essa não seria a última vez que o governador cearense não participaria de eventos com a presença de Jair Bolsonaro. Camilo chegou a chamar de "grande equívoco" a agenda presidencial realizada no estado em 2021. "Não estarei presente a qualquer desses eventos, diante da real possibilidade de muitas aglomerações, algo frontalmente contrário à gravíssima crise sanitária que vivemos", disse no período.

Do lado de Bolsonaro, também houve críticas diretas a Camilo Santana. Após ter evento chamado de "grande equívoco", o então presidente voltou a reprovar as medidas de isolamento social.  "Esses que fecham tudo e destroem empregos estão na contramão daquilo que seu povo quer. Não me critiquem, vão para o meio do povo mesmo depois das eleições", disse em fevereiro de 2021. A resposta de Camilo veio sem fazer referência a Bolsonaro: "Continuaremos firmes, combatendo o negacionismo, e lutando sempre pela vida". 

Em nova visita ao Ceará, em agosto do mesmo ano, Bolsonaro chamou as medidas de "ato criminoso". "Essa medida, por alguns governadores, entre eles o desse estado, foram além de impensadas, foram muito mal recebidas pela população", disse o então presidente. Camilo rebateu: "Crime é ignorar a perda de mais de meio milhão de vidas". 

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Ainda em agosto, Bolsonaro disse que o Ceará "queria virar outro país". O então presidente criticou a medida do Governo do Ceará que queria exigir comprovante de vacinação contra a Covid-19 ou teste negativo para a doença dos passageiros com destino ao Ceará. A medida acabou sendo suspensa pela Justiça. 

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Embates travados e projetos aprovados no Legislativo

A primeira vacina contra Covid-19 foi aplicada em janeiro de 2021. A Coronovac foi desenvolvida a partir de investimentos do Governo de São Paulo e gerou embate entre o então governador João Dória e o Governo Bolsonaro. 

A 'paternidade' das vacinas continuou a ser reivindicada pelo Governo Bolsonaro ao longo dos anos seguintes, apesar do então presidente ser crítico da vacinação — "se você virar um jacaré, problema de você", disse sobre o assunto. Apesar de continuar a colocar em dúvida a eficácia dos imunizantes, o discurso do governo e de aliados mudou com a ampliação da vacinação para a população. No Ceará, por exemplo, parlamentares bolsonaristas passaram a ir ao Aeroporto de Fortaleza receber as vacinas. 

O tema acabou, inclusive, unindo Camilo Santana e o influencer Felipe Neto em crítica a dificuldade na compra de vacinas no País, e em específico para o Ceará. 

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Parlamentares — sejam municipais, estaduais ou federais — tiveram mais protagonismo ao longo da pandemia de Covid-19, apesar do funcionamento atípico das casas legislativas. 

Projetos de lei relevantes para a população tramitaram nestes espaços. O Congresso Nacional aprovou, por exemplo, o auxílio emergencial de R$ 600 — a proposta inicial era de R$ 300 — e o repasse de R$ 125 bilhões a estados e municípios para o combate à emergência de saúde. Também a nível federal, em 2021, foi instalada a CPI da Covid-19. 

Também foram deputados federais e senadores os responsáveis pela aprovação de Emenda à Constituição que adiou as eleições municipais em 2020. A suspensão do pleito chegou a ser cogitada, mas a votação acabou sendo realizada nos dias 15 e 29 de novembro daquele ano. 

No Ceará, as medidas de isolamento também foram alvo de críticas de parlamentares oposicionistas. A inclusão de atividades como essenciais — ou seja, permitidas pelos decretos estaduais e municipais que tratavam da circulação de pessoas —  acabou sendo uma das trincheiras de legisladores. Uma das demandas era a inclusão de igrejas e templos religiosos como atividades essenciais. Legislação com esse mote chegou a ser aprovada em Fortaleza em 2021, o que pressionou deputados estaduais a fazerem o mesmo. O pleito acabou sendo atendido e levou a ampliação de demanda de outros setores. 

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Propostas de auxílio à população — além de ações coordenadas pelos parlamentares — foram efetivadas durante o período da pandemia. Exemplos disso foram decretos de calamidade pública nos municípios cearenses, aprovados pelas respectivas câmaras municipais e pela Assembleia Legislativa do Ceará. 

Em Fortaleza, vereadores doaram parte dos salários para ações de combate à pandemia. Em abril de 2020, os recursos foram repassados ao Fundo Municipal de Saúde, enquanto no mês anterior os valores foram usados para compra de cestas básicas. Em 2021, vereadores fizeram ação semelhante, embora de forma isolada. A doação de parte dos salários também foi usada para adquirir alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade. 

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Já a nível estadual, deputados aprovaram a criação de programa estadual de incentivo a doações ainda em março de 2020. Também foram aprovadas medidas para garantir a vacinação, como a punição a servidores que não tomassem a vacina de Covid-19, e também para a distribuição de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade. 

Um dos projetos mais recentes aprovados foi a criação do Programa Ceará Acolhe. O auxílio financeiro a crianças e adolescentes cujos pais biológicos ou adotivos foram vítimas da Covid-19 foi aprovado em outubro de 2024 e deve assegurar proteção social aos órfãos da pandemia