Brasil não pode virar República do 'salve-se quem puder' por falta de unidade no combate à Covid-19

Não bastasse a pandemia, a discrepância nas estratégias de enfrentamento ao novo coronavírus adotadas pelo Governo Federal e pelas gestões estaduais é como uma ferida constantemente aberta, outro mal à saúde dos brasileiros

Legenda: No Ceará, segunda onda da pandemia de Covid-19 atinge Fortaleza e interior, dificultando suporte da Capital a outros municípios
Foto: Helene Santos

Quando nos tornamos a República do “salve-se quem puder”

É uma questão complexa, eu sei. Uma elaboração com componentes históricos, sociológicos, culturais, políticos. Não ouso aqui respondê-la, mas pergunto porque me recuso a olhar para o que se vê como aceitável. Não é. Pergunto como uma tentativa de diálogo com quem lê.

Sei que outros brasileiros têm se feito o mesmo questionamento. 2.724, 2.648, 2.841, 2.815 vidas perdidas nos últimos dias desta semana por uma só doença. Muitas mortes evitáveis. A resposta não pode estar nos números. É uma questão de humanidade. 

A Covid-19 nos maltrata há um ano, mas tem sido mais cruel com os brasileiros em 2021. Não bastasse a pandemia, dolorosa por si só, a discrepância nas estratégias de enfrentamento ao novo coronavírus adotadas pelo Governo Federal e pelas gestões estaduais é como uma ferida constantemente aberta, outro mal à saúde - física e mental - de quem vive no Brasil.  

Quase três mil óbitos registrados por dia, uma tragédia nacional. O presidente da República ajuíza uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra medidas de isolamento social tomadas por governadores. Em três estados, inicialmente. Como isso contribui para a redução do número de casos e mortes? 

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Troca de ministros, nada mudou

Na semana em que tivemos, veja só, dois ministros da Saúde no País, nada mudou. O que está de saída, Eduardo Pazuello, nega colapso no sistema de saúde, enquanto alguns gestores estaduais - e os números - dizem o contrário. O que chega ao Ministério da Saúde, o quarto desde que esse pesadelo sanitário começou, já declarou que “a política (de saúde) é do Governo Bolsonaro e não do ministro da Saúde. O ministro executa”.  

Marcelo Queiroga, o novo escolhido do presidente, defendeu, contudo, uma "união nacional para vencer o vírus". Uma sinalização importante. O impasse é que disso, o chefe, Jair Bolsonaro, demonstra discordar.  

Quase três mil óbitos registrados por dia, uma tragédia internacional. O líder da Nação não se porta como tal, ao negar obsessivamente a necessidade do isolamento social. Faz críticas constantes às medidas de restrição de circulação de pessoas e, ao mesmo tempo, acumula episódios de estímulo a aglomerações, muitos deles sem o uso de máscara. Um desrespeito às vítimas, contrariando a ciência e bons exemplos de outros países. 

A “união nacional para vencer o vírus”, defendida pelo novo ministro, é urgente desde que os primeiros casos de Covid-19 foram confirmados no Brasil. O apelo é geral. Na sexta-feira (19) mesmo, governadores do Nordeste pediram, em nova carta aberta, que sejam somados esforços na luta contra o novo coronavírus.

Pacto Nacional

“Fizemos a proposta de um Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde e continuamos aguardando a resposta do presidente da República”, escreveram. Mais um apelo, que não se resume aos gestores nordestinos. Poucas, porém, foram as vezes em que isso, uma união nacional, pareceu factível, quase sempre em situações extremas de pressão.  

Auxílio emergencial? Quase quatro meses após o fim da primeira rodada de pagamentos, voltará. Menor, mas voltará. Vacinação? O Governo Federal desdenhou da CoronaVac, rejeitou 70 milhões de doses da vacina da Pfizer ainda em 2020, mas corre atrás do prejuízo e comemora a assinatura recente dos contratos para aquisição de 138 milhões de doses dos imunizantes da Pfizer e da Janssen.

A lógica parece ser agir após certa demora, desgastes políticos e mais perdas causadas pela doença. Para que omissão, negligência, ninguém possa apontar. 

Inércia

A unidade necessária, assim, vira utopia, deixada para trás em nome de disputas políticas. Faz-se da condução da crise sanitária uma arena de disputa, como se necessário fosse mostrar qual estratégia é mais eficaz.

Irresponsavelmente, alguns agentes públicos ignoram o fato de que não há quem ganhe com o que está acontecendo. O líder do Governo na Câmara dos Deputados diz que a situação do Brasil "é até confortável"! Transferência de responsabilidade não é postura de líder. As mais de 290 mil mortes escancaram um verdadeiro estado de guerra. Não há vencedor. 

Na inércia das instituições, quando o que nos sobra é a esperança depositada nas atitudes individuais - que também são coletivas -, a ferida continua aberta. Mas ainda há forças para cobrar diálogo, coordenação, unidade. O Brasil não merece ser terra do “salve-se quem puder”.