Grupo Bagaceira de Teatro completa 25 anos com novo espetáculo, retomada criativa e enfrentando velhos desafios
Celebrações do grupo incluem um espetáculo inédito — que segue sem espaço para estrear em Fortaleza —, curtas temporadas e processos criativos
Inventividade, autoralidade e despretensão. A partir destes três aspectos, alcançados pela união de seis jovens estudantes-artistas interessados em criar, surgia oficialmente em 17 de maio de 2000 o Grupo Bagaceira de Teatro.
25 anos, mais de 15 espetáculos, quatro obras audiovisuais e uma imensurável importância local e nacional depois, o grupo cearense aposta na reinvenção para comemorar um novo e especial aniversário.
Impulsionado por uma busca pela própria essência, depois de quase acabar “muitas vezes” nos últimos anos, o Bagaceira chega a 2025 com projetos inéditos, ímpeto criativo e, ainda, tendo que enfrentar desafios já conhecidos — que vão da manutenção à dificuldade de estrear temporada de um novo espetáculo.
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Início criativo em esquetes
O marco inicial do Bagaceira se deu na edição do ano 2000 do reconhecido Festival de Esquetes de Fortaleza. Os seis integrantes fundadores — Rogério Mesquita (1979-2023), Yuri Yamamoto, Rafael Martins, Isabella Cavalcanti, Luisa Torres e Lívia Guerra — se juntaram como dissidência de outro grupo.
A intenção foi a de criar esquetes autorais que pendiam à comédia e à sátira. “Papoula”, “Sabonete Cabeludo” e “Solange Mulher” foram apresentadas no evento e conquistaram o público.
“A gente foi convidado a aumentar o espetáculo, no caso ‘Papoula’, e se apresentar no (Centro Cultural) Banco do Nordeste. Entramos em cartaz, ficamos três meses e foi a primeira vez que, de fato, experimentamos entrar em temporada e ter esse retorno do público”, recupera Isabella, que foi uma das fundadoras, mas deixou o grupo ainda no começo e retornou em 2023.
“Neste início, já tinha uma proposta de linguagem do grupo que foi se afirmando ao longo dos anos”, aponta a atriz e produtora. Também fundador, o ator e dramaturgo Rafael Martins ajuda a definir: “Esse lugar despretensioso, autoral e mais inventivo foi o que marcou e ficou com a gente durante esse tempo”.
Referência como teatro de grupo
Além de Rafael e Isabella, a formação atual do Bagaceira conta com Ricardo Tabosa — que entrou em 2002, aos 15 anos —, Tatiana Amorim — integrante desde 2003 — e Débora Ingrid — cuja relação com o grupo vem desde a infância em Russas, primeiro como público, depois em parcerias, até se tornar oficial em 2024.
“Comecei a fazer teatro lá quando era criança e a gente sempre tinha o Bagaceira como referência de teatro cearense e nacional”, lembra Débora. O depoimento da atriz corrobora o lugar que o grupo alcançou junto à cena teatral do País.
Ainda que reconheça influências cênicas e criativas do grupo em outras propostas teatrais, Tatiana destaca que percebe o Bagaceira como referência, em especial, pelo “modo de sobrevivência” como teatro de grupo.
“É um grupo que se lançou no fazer teatral na cara e na coragem, e a gente conseguiu galgar uma trajetória de sobrevivência, montar espetáculo, participar de alguns dos principais festivais, ter uma sede”
Em 2025, a Casa da Esquina — espaço no Bairro de Fátima que funciona como a sede do grupo e, hoje, acolhe também as produtoras audiovisuais Veneta Filmes e Onça Preta — completa 18 anos.
“A gente foi meio que abrindo caminhos, aos poucos, ao alugar um espaço, transformá-lo num lugar de apresentações e aí já não depender tanto de certas condições para se apresentar. Com subidas e quedas, mas é um modo de vida”, dialoga Rafael.
“Quando eu entrei, como era mais lá no comecinho, não tinha tanto essa coisa do Bagaceira ter um ‘grande’ nome. Quando a gente está dentro, fica mais turvo e difícil dizer ‘somos referência’, mas pelo que a gente escuta, acho que sim. Depois de 25 anos, dá pra dizer mais tranquilo”, sustenta Ricardo.
Circulação e desafios de manutenção
Alcançar esse lugar referencial, naturalmente, se deu a partir de construções. Um “ponto de virada”, aponta Rafael, foi o espetáculo “Lesados” (2004).
Se antes o Bagaceira era conhecido como “grupo de peças curtas”, a obra redefiniu os modos de criação e, também, levou os cearenses a novos níveis de reconhecimento.
Num cenário, nos anos iniciais do primeiro governo Lula, de um “circuito de festivais em crescimento, patrocinados”, como lembra Rafael, “Lesados” levou o Bagaceira a circular pelo País.
“Era completamente diferente do que é hoje um grupo sair daqui para se apresentar em outro estado. Muitos estavam fazendo a primeira viagem de avião. Literalmente, essa decolagem de avião também foi uma decolagem de possibilidades do grupo. Era uma mudança do mundo e das políticas culturais”
Apesar de reconhecerem o cenário positivo da época, os integrantes lembram que o primeiro edital conquistado pelo grupo veio somente em 2007, com o espetáculo “PornoGráficos”.
Histórico de espetáculos do Bagaceira:
- Papoula e o Sabonete Cabeludo (2001)
- Os Brinquedos no Reino da Gramática (2002)
- Ano 4 D.C. (2003)
- Lesados (2004)
- Engodo (2004)
- O Realejo (2005)
- Meire Love (2006)
- Pornográficos (2007)
- Tá Namorando! Tá Namorando! (2008)
- Incerto (2010)
- Por que a gente não é assim? ou Por que a gente é assado? (2011)
- A Mão na Face (2012)
- Interior (2013)
- O Pequeno Casaco Solitário (2014)
- Fishman (2015)
- O Sr. Ventilador (2017)
- Inacabado (2024)
“A principal receita do grupo nesse começo, a partir de 2004 até ganhar o primeiro edital, era participação em festival. Mesmo depois com editais, a gente viajava e participava de festival direto e é isso que mantinha o grupo”, contextualiza Ricardo. “Hoje, isso está meio inimaginável e a gente vai procurando outras fontes”, segue o ator.
No atual contexto, como explica Rafael, o grupo se inscreveu em diferentes editais nacionais, mas sem sucesso. “Não só a gente não passou como viu muitos grupos importantes do Brasil que têm um trabalho que reverbera na comunidade também não passarem. Então, não sinto ainda a gente tão assistido neste ponto”, reflete o dramaturgo.
Fundadora em 2000 e tendo retornado ao grupo em 2023, Isabella brinca que não “pegou” a “parte boa” do Bagaceira. “Não tinha edital, era nós por nós. Voltei e a gente tinha uma sede para manter, responsabilidades maiores”, lista.
Com forte atuação na produção do grupo, a artista cita que o grupo partilha um sentimento geral do setor cultural de que os próximos anos sejam de “colher aquilo que se vem plantando”. "Estamos com esperança e, ao mesmo tempo, lamentamos que as coisas não tenham caminhado da forma como deveria ser”, atesta.
Um grupo “Inacabado”
Apesar das conquistas, da importância e do espaço que conquistou junto ao público ao longo de mais de duas décadas, o Bagaceira se viu, nos últimos anos, perto de acabar “muitas vezes”.
“No Bagaceira e em vários grupos no Nordeste e no País, dá para sentir esse baque dos últimos anos: 2016, 2018, pandemia, muita coisa só caindo. Quem ainda está na ativa é com muita peleja, força, acreditando muito e se segurando no outro para ninguém cair”
Além dos impactos dos contextos gerais do País e do mundo, o Bagaceira ainda sofreu com a partida de Rogério Mesquita (1979-2023), membro da formação original que é descrito como “alicerce” do grupo.
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Logo após o falecimento do artista, os demais integrantes se reuniram para entender e decidir se iriam manter ou não as atividades.
“A gente passou um bom tempo desarticulado. Integrantes foram saindo, o repertório foi morrendo — em algum momento, a gente tinha só um espetáculo no repertório, ‘Interior’ —, estava cada um fazendo outras coisas e a gente não conseguia se encontrar”, contextualiza Ricardo.
No entanto, o encontro do grupo não terminou com um ponto final. “A gente decretou que estava ‘inacabado’”, segue o ator. O termo, que brinca com a ideia de falta de acabamento, conclusão, e ainda a decisão de não acabar com o Bagaceira, acabou dando nome ao novo espetáculo do grupo.
A decisão culminou em um espírito criativo de reinvenção a partir da reconexão: para os 25 anos, o Bagaceira decidiu voltar à essência, ao primeiro gesto criativo.
“Veio a ideia do projeto: realizar experimentos curtos. ‘Tá, a gente vai continuar, mas como recuperar esse fogo, essa faísca de criação, de vivacidade? Vamos voltar para como o Bagaceira fazia lá no começo”, explica Ricardo.
Em sala de ensaio, os cinco integrantes se reuniram para experimentar novas esquetes e disparadores cênicos que pudessem dar vazão a pequenas criações. A intenção, define ele, era “conseguir reflorestar o repertório artístico do grupo”.
Os “vários experimentos curtos” e “pequenas células que poderiam virar espetáculos depois” acabaram resultando na apresentação de uma dessas criações na mostra “Cenas Germinantes”, que acolhe obras em desenvolvimento, do Festival de Guaramiranga de 2024.
Junto desse processo próprio e independente, o grupo entrou no Laboratório de Teatro da Escola Porto Iracema das Artes. A conjunção desses fatores impulsionou mais faíscas criativas que, finalmente, culminaram na estreia do espetáculo “Inacabado” em novembro, em Recife.
A intenção não era somente criar um espetáculo novo por criar, mas ver “aquele frio na barriga do grupo de garagem voltando”, define Rafael. “Sempre que a gente volta pra esse lugar do experimento, da peça curta, da autoralidade, do que a gente tem pra dizer e de brincar, funciona”, atesta.
Para além de nova obra, “Inacabado” funcionou como um norte para o atual momento do grupo. “Virou quase um manual de como a gente quer e deve funcionar”, aponta Ricardo. “A gente partiu nesse projeto de uma premissa muito mais ética do que estética”, dialoga Rafael.
“O que é que te arrepia? O que te faz vibrar novamente? Porque morreu uma pessoa nesse instante… É um modo de vida que se vai. A gente queria afirmar a vida. Porque pra gente, pra muitas pessoas, teatro é encontro. O que eu quero desse encontro?”
Numa proposta performativa, “Inacabado” trata de conclusões, fins, luto e rituais. “O espetáculo acabou sendo inconscientemente pra gente um ritual de passagem depois da perda do Rogério. A gente não combinou, aconteceu. ‘Inacabado’ foi o nosso ritual, a gente precisava disso para continuar”, atesta Ricardo.
“Inacabado” à espera de estrear
Apesar da presença em festivais importantes e no Laboratório de Teatro do Porto Iracema, o processo de “Inacabado” foi realizado, em suma, sem recursos de editais.
“A gente volta para aquele Bagaceira que passou 10 anos para ganhar um edital e fazer uma peça. Não está tão simples. É quase um milagre o que a gente fez nesse tempo. Não estamos vivendo do grupo, todos temos que fazer coisas, artisticamente ou não, fora”, reforça Rafael.
O cenário para estrear o espetáculo em Fortaleza, por exemplo, é incerto. “Tem espaços super felizes com a nossa estreia, querendo, mas eles próprios não têm agenda para a gente. Estão vendo, analisando como nos atender, e a gente está na espera de retorno”, resume Isabella.
“A gente fez nosso trabalho e está na expectativa de entrar em temporada, esperando um equipamento que nos abrigue e apoie nessa iniciativa"
O fato reflete uma questão geral na Cidade: a ausência de espaços em Fortaleza que acolham temporadas teatrais. “Peça só acontece na relação com o público. Se essa relação não se mantém, perde o sentido”, lembra Débora.
“O público está cada vez mais sem referência. Olha só quantas peças e artistas maravilhosos da cidade eu conheço e que não encontram lugar para se apresentar”, ressalta Rafael.
“Uma coisa louca dessa política atual é que a gente não consegue fazer temporada. O grupo era acostumado a fazer dois meses. Hoje, os equipamentos dão um dia, dois, alguns dão dois pagando cachê de um. As peças nascem e morrem”, acrescenta Ricardo.
A despeito dos desafios, o espírito do grupo é positivo e propositivo. Há conquistas, como a curta temporada de “Interior” no final de janeiro no Hub Cultural Porto Dragão — “que ainda é um respiro, um lugar onde você faz mais de uma apresentação”, aponta Ricardo.
O espetáculo irá, também, circular pelo agreste nordestino — passando pelos municípios de Caruaru (PE), Garanhuns (PE), Campina Grande (PE) e Arapiraca (AL) — a partir da conquista da Bolsa Funarte de Teatro Myriam Muniz.
Há ainda planos de reativar, revitalizar e reocupar a Casa da Esquina com atividades. “Você vê que tem que dar muitas ajeitadas aqui, são coisas que a gente vai investir”, partilha Rafael.
O artista ainda adianta um desejo do grupo em apostar novamente no formato audiovisual. "Não tem um projeto já feito, pensado, mas a gente começou a conversar sobre algum projeto", diz. O Bagaceira tem como marco o longa "Inferninho", dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes, além de outras obras.
“É isso que a gente planeja pra esse ano, além de se mostrar. Tentar levar a peça para outras cidades, circular, fazer parcerias…”, resume Isabella.
“Nossa ideia é que ‘Inacabado’ seja a primeira peça dos 25 anos, mas que não se encerre nela. Já temos o mote da segunda. Embora a gente esteja com essa dificuldade de apresentar, a gente não está com dificuldade criativa”, garante.
"Interior" em Fortaleza
- Quando: 17 a 19 e 24 a 26 de janeiro; sextas e sábados, às 19 horas, e domingos, às 18 horas
- Onde: Hub Cultural Porto Dragão (rua Bóris, 90 - Centro)
- Quanto: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia); ingressos já à venda no Sympla
- Mais informações: @grupobagaceira
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- Instagram: @grupobagaceira