Artista visual cearense Rodrigo Tremembé usa moda para fortalecer a luta indígena
Com foco na união entre arte ancestral e moda contemporânea, estilista faz da marca Tremembé um projeto coletivo de resistência

Tudo começou no chão da Aldeia Córrego João Pereira, localizada no litoral cearense, em Itarema. Foi lá que Rodrigo Tremembé, hoje com 28 anos, esboçou seus primeiros desenhos, feitos com os dedos ou com gravetos, de forma despretensiosa.
Ainda criança, tentava reproduzir as pinturas e grafismos que faziam parte do cotidiano de seu povo, os indígenas Tremembé, tanto no tempo livre quanto nas atividades escolares.
Cresceu e continuou se dedicando às ilustrações por prazer, sem pensar que aquilo poderia se tornar profissão. Como as pinturas, os grafismos, o artesanato e outros fazeres artísticos são parte essencial da cultura indígena, para ele as artesanias eram muito mais do que um trabalho, eram saberes ancestrais. “A arte, dentro do contexto indígena, é inerente à nossa existência”, destaca.
O pensamento de Rodrigo sobre profissionalizar sua arte se transformou em 2021, em meio a pandemia de Covid-19, após sofrer uma série de ataques nas redes sociais.
“Postei uma foto minha com grafismos no braço, e meu tom de pele é claro. Recebi uma enxurrada de comentários racistas falando que eu não era indígena, por conta dos meus traços, que eu era um indígena ‘pirata’, que a minha pele não parecia pele de indígena”, recorda.
O episódio trouxe sofrimento, mas também reflexão. A partir do episódio, Rodrigo decidiu fazer algo para contribuir com a conscientização sobre os povos indígenas, já que os ataques reproduziam informações falsas com base em estereótipos. “Comecei a refletir sobre sobre a nossa identidade enquanto povo indígena no contexto de Nordeste, no contexto moderno”, explica.
“Dentro do nosso povo, a gente se reconhece como um povo que é diverso, então o tom da pele, a cor do olho, o tipo de cabelo não são coisas que influenciam, porque a gente entende que, por mais que a gente tenha passado por essa miscigenação, o nosso sangue é Tremembé, a nossa vivência é diferente”, completa.
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Rodrigo resolveu, então, usar a paixão pela moda como forma de contar sua história e fortalecer a luta do povo Tremembé. Começou a desenhar croquis que comunicavam estilo e personalidade e, principalmente, colocavam em evidência a resistência dos povos originários.
Essa ideia de vestir o indígena com tecidos é uma colonização que veio muito forte, porque hoje a gente não pode andar sem esses tecidos em nosso corpo, e, antes, a nossa vestimenta era a pintura corporal. Então, fiquei refletindo e vi que os tecidos podem contar histórias, podem ser uma vestimenta que traz essa cultura dos povos.”
Assim surgiu a marca Tremembé, que produz camisas, vestidos, ponchos, quimonos, casacos e diversas outras peças a partir de produção local e em pequena escala. Com direção criativa de Rodrigo, a marca é um projeto coletivo, feito por ele e por colaboradores da região em que a Aldeia Córrego João Pereira está localizada.
Antes mesmo de as primeiras peças serem produzidas, no início de sua trajetória como estilista, Rodrigo percebeu que conseguiria, sim, comunicar sua mensagem a partir da moda.
“As pessoas começaram a gostar, começaram a me chamar para fazer participação em palestra, fazer falas em revista, em livros, em muitas coisas. E eu percebi que a moda indígena tinha muita potência, tem muita potência”, celebra o artista.
Um dos primeiros croquis de moda produzidos por Rodrigo, ainda em 2021, demonstra o que o artista queria trazer de diferente para a moda brasileira. O desenho mostra um homem indígena com uma camisa que traz uma grande corrente no meio, como forma de denúncia ao “correntão”, prática proibida no Brasil onde dois tratores utilizam uma grande corrente para desmatar uma grande quantidade de terra com rapidez.
Símbolo forte da luta indígena pela demarcação e contra a destruição das florestas, o desenho foi escolhido para fazer parte de uma exposição na sede da Unesco, em Paris, e ecoou a voz de Rodrigo – e dos milhares de indígenas brasileiros – pelo mundo. A mostra contou com 70 artistas, e o cearense foi o único brasileiro escolhido.
“Para mim foi muito importante e significativo, porque é uma fala coletiva dos povos indígenas do Brasil falar sobre meio ambiente e sustentabilidade. Os povos indígenas são os grandes responsáveis por essa preservação do meio ambiente”, destaca o artista.
Vestir como ferramenta política
Há quatro anos, Rodrigo segue se dedicando à construção de sua marca, sempre com criações que evocam a resistência indígena desde os primeiros rascunhos. Até hoje, os croquis da Tremembé não seguem os modelos tradicionais vistos na moda global – ilustram corpos indígenas reais, que fogem da magreza extrema dos croquis comuns e destacam vivências de grupos sociais marginalizados pela sociedade, como pessoas com deficiência e LGBTQIAP+.
A primeira coleção da marca, intitulada Navura: Beber Moda Indígena, foi apresentada na Mostra Sesc Cariri de Culturas, em Juazeiro do Norte, em 2023. O nome do conjunto de peças faz alusão a um momento especial que ocorre durante o ritual do Torém, em que os parentes partilham o Mocororó, uma bebida feita a partir de caju e considerada sagrada para os indígenas cearenses.
Explorando os grafismos do povo Tremembé e suas diferentes simbologias, a coleção contou com 16 peças e foi o marco oficial do início da carreira de estilista de Rodrigo.
No ano passado, o artista lançou a segunda coleção, Torém, desta vez explorando outros materiais e texturas, como crochê, bordado, macramê, sementes e miçangas – elementos que já fazem parte das vestimentas e do fazer artístico ancestral Tremembé, mas pensados a partir de um design mais contemporâneo, unindo tradição e inovações.
Foco na sustentabilidade e transparência
Como a luta dos povos indígenas caminha ao lado da luta pela proteção do meio ambiente, a moda feita por Rodrigo é, inevitavelmente, pautada pela sustentabilidade. Além do uso de materiais naturais e duráveis, o artista destaca que cada peça é vendida com o propósito de acompanhar o cliente por muito tempo, tanto para evitar a geração de resíduos quanto pela simbologia que as roupas carregam.
“A indústria da moda é a segunda maior poluidora do planeta, então a gente pensa que essa ideia de intensificar tendências passageiras é algo muito prejudicial para a gente”, pontua Rodrigo. “Por isso que a nossa produção é feita de forma devagar, de forma mais lenta, porque a gente pensa a roupa como algo que seja duradouro, e não algo que é descartado a todo tempo”, explica.
A transparência é outro valor importante que Rodrigo afirma compartilhar com outros estilistas indígenas brasileiros. “A gente mostra o processo criativo, as pessoas que estão envolvidas, a forma que é feita e tudo mais. Existem muitas corporações que se disfarçam em um discurso que é ecológico, que é sustentável, mas que não mostra de fato como é feita essa produção”, comenta.
As nossas roupas por si, elas comunicam muita coisa, tanto as roupas produzidas por indígenas como as roupas dessa grande indústria. Cada uma carrega uma história. As nossas roupas não falam, mas elas dizem muito sobre quem nós somos.”
Impacto na aldeia e sonhos para o futuro
Além da importância do trabalho de Rodrigo em relação à representatividade indígena nas artes visuais e na moda, o artista celebra o fato de que sua marca tem inspirado novas gerações de artistas na Aldeia Córrego João Pereira.
A terra indígena, que já tem outros grandes expoentes da arte cearense, como a artista plástica Navegante Tremembé, agora conta com mais crianças e jovens interessados em desenhar e fazer moda, o que estimula Rodrigo a ensinar sua arte e compartilhar tudo o que a Tremembé traz com os parentes – termo utilizado pelos indígenas para se referir não só a familiares, mas todos os demais indígenas.
Exemplo disso são os desfiles da marca realizados nas últimas edições da Festa do Caju, celebração tradicional que ocorre anualmente no dia 30 de outubro. Segundo Rodrigo, para ele é indispensável levar tudo o que aprende e produz para “o chão da aldeia, em meio ao nosso povo”. “A moda é para estar em todos os espaços, mas principalmente aqui, na base”, ressalta.
O indígena, quando ocupa um espaço, é um espaço que é coletivo. Sempre que eu vou para um local fazer uma apresentação, fazer uma palestra, eu não me apresento somente como Rodrigo Tremembé, como alguém que tá ali produzindo arte. A minha arte comunica uma arte coletiva, a voz de um povo que é bem presente, muito rico em cultura, aqui do Nordeste.”
No momento, além da marca, Rodrigo Tremembé expõe trabalhos de artes visuais em Fortaleza, no 76º Salão de Abril, na Casa Barão de Camocim, e na Galeria Leonilson, no Porto Iracema das Artes, onde o artista concluiu recentemente um percurso formativo no Laboratório de Artes Visuais. Ambos têm como inspiração Baía Tremembé, artesã indígena de 102 anos que é referência para Rodrigo e gerações de indígenas cearenses.
“Ela é uma pessoa que inspira bastante a gente sobre o bem-viver indígena, a arte como uma forma de inclusive ter uma vida mais longeva. Ela representa muito para nós”, comenta.
No momento, o artista também trabalha na terceira coleção da marca Tremembé, que deve ser lançada até o ano que vem, e sonha em levar sua arte a grandes eventos de moda, como o DFB Festival e a São Paulo Fashion Week. Sua preferência no momento, no entanto, é pelo primeiro, confessa.
“Antes de acessar um espaço como a SPFW, o meu sonho maior sempre foi começar por aqui”, pontua. “O Dragão Fashion é algo tão grande quanto o SPFW, mas é algo nosso, daqui”, comenta.
Para conhecer
As peças da Tremembé estão disponíveis por encomenda e podem ser compradas pelo Instagram da marca. Há ainda peças a pronta-entrega na loja colaborativa Utopia, no Dragão do Mar, e no próprio ateliê de Rodrigo, na Aldeia Córrego João Pereira.