Bráulio Bessa sai em defesa de João Gomes por casas com cara de casa; veja vídeo
Cantor se recusou a ter uma ‘casa quadrada’ e abriu debate sobre o lugar da arquitetura nordestina.
Inconformado. Assim ficou João Gomes ao comprar terreno em condomínio de luxo e não encontrar arquiteto para projetar a casa aos moldes de como queria: feito aquelas no sertão, ampla e com largos alpendres. “Só queriam fazer casas quadradas. Com todo o respeito aos profissionais, elas não são do meu gosto”, declarou em entrevista a um podcast.
Como resposta ao cantor, o poeta Bráulio Bessa publicou um vídeo dias depois fazendo um tour pela própria residência, em Alto Santo, interior cearense, no qual mostra ser possível, sim, ter uma casa com cara de casa.
Em pouco mais de oito minutos, o artista exibe de alpendres a criações de animais, de grandes quartos a hortas inteiras, num misto de cearensidade, bom gosto e sofisticação.
O poeta dispara: "João, a casa que você queria parecia com a minha". E é nessa morada que Bráulio exibe seus três quintais, adentra a casa pela porta de madeira muiracatiara e se depara com salas grandes, que acolhem muitas pessoas. Mesa de jantar comprida, sofá de alvenaria que circunda a sala, paredes de reboco baiano, cobogós, peças de decoração de artistas populares do Nordeste, como Mestre Heleno e Espedito Seleiro. As janelas se abrem para o alpendre "onde cabem 32 redes armadas sem repetir armador".
A casa de Braulio, Camila, Nalu e Tereza é dessas que você percebe que "mora gente dentro". E que é encontro de muitos.
Assim, o que começou como simples comentário tornou-se debate: o que faz uma casa ter cara de casa? É possível imprimir alma a construções feitas de concreto? “Uma casa com alma é essencialmente uma casa que conta a história de quem vive dentro dela, independentemente do estilo de arquitetura”, situa o poeta.
Na visão dele, é preciso ter cuidado para não colocar tudo na mesma caixa e estereotipar o que encontrar pela frente. Logo, tanto faz se a arquitetura do lugar é moderna, tradicional, contemporânea ou vernacular. Importa mais a vida que acontece ali dentro, baseado no que Bráulio conceitua como “primeira escola de cultura”.
“Nossa casa é essa escola onde percebemos os rituais, como nosso povo se comporta, come, dorme, reza, celebra. É rotina, afeto, memória. Dá pra perceber quando você entra em uma casa e sente que aquele espaço não foi feito só pra ser visto, mas pra ser vivido. Por isso, gosto muito de chamar casa de morada. Morar é um exercício diário, de cultura”.
Com duas filhas pequenas e uma esposa que, feito ele, gosta de reunir gente, Bessa mantém um par de residências: uma na já mencionada Alto Santo e outra na cidade de Eusébio, Região Metropolitana de Fortaleza. Haverá ainda uma terceira, em Fortaleza. Em todas – a primeira com cara de sertão, a segunda alinhada à urbanidade e a terceira mesclando esses dois aspectos – o que prevalece é a vontade de imprimir identidade e amor.
“É totalmente possível inovar, inclusive nesse mercado de casas de alto padrão. O que é sofisticado não necessariamente precisa ser neutro, uma coisa só. Acho que sofisticado é aquilo que tem intenção, conceito, uma arquitetura que dialoga com o lugar onde ela está. O verdadeiro luxo é morar num espaço que tem alma, e não que tem preço”.
Arquitetura para pessoas
Arquiteta e urbanista, professora de Projeto Arquitetônico do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará, Márcia Cavalcante endossa a discussão. A grande chave da Arquitetura, conforme observa, é saber valorizar os lares a partir da personalidade dos habitantes – algo cada vez mais raro devido à urbanização das cidades.
“Atualmente, muitas pessoas têm optado por morar em apartamentos, nos quais há grande predomínio de padronização – inclusive em lançamentos. Quando o mercado começa a lançar espaços de 200 m², por exemplo, todos os outros ficam assim também. Existe uma grande dificuldade ao visarem mais a venda do que captar o que a cultura local gostaria”.
Até mesmo as varandas, outrora também presentes em apartamentos, têm sido fechadas. A opção, em geral, tem sido o condicionamento passivo, ou seja, adoção de ar-condicionado nos interiores, sem interagir com a área externa ou não tirar proveito dos condicionamentos ambientais do espaço.
Tem a ver, inclusive, com questões econômicas. Quando o mercado imobiliário vende condomínios com muitas casas, a ideia é ter um custo mais baixo e sair repetindo o mesmo formato de moradia.
“A arquitetura precisa olhar para o ser humano como pessoa que quer se identificar com o lugar de moradia. Muitas vezes isso não acontece. É importantíssimo imprimir os próprios gostos dentro de casa, moldá-la conforme nossa vontade de se sentir bem, à vontade – da cor da luz ao mobiliário… Quando eu atuava nessa área, fazia questão de entender o cliente".
Que ‘arquitetura quadrada’ é essa?
Por sua vez, ao refletir sobre o desconforto de João Gomes com relação às“casas quadradas”, Márcia Cavalcante traça um panorama sobre esse tipo de construção. Essa arquitetura específica a qual o cantor se refere provém da arquitetura moderna brasileira, desenvolvida desde os anos 1920 em São Paulo – não à toa, o epíteto de arquitetura paulista.
É reproduzida em todas as áreas urbanas da capital paulistana, inclusive nos condomínios de casas. Com o tempo, passou a ser copiada em outros Estados – no Ceará, sobretudo a partir de 1964, quando chegaram aqui os primeiros arquitetos formados em São Paulo e no Rio de Janeiro, e, mais recentemente, em condomínios de luxo.
Para a professora, embora haja essa herança de outro lugar, é importante adaptá-la à nossa realidade. “Você pode até usar esse estilo – mais reto, com laje impermeabilizada – mas existem grandes diferenciais, como, por exemplo, as varandas. Aqui, mesmo com a adoção da arquitetura paulista, têm sido mantidas nossas varandas sombreadas”.
Existe um estilo cearense de casa?
Bráulio Bessa responde. Ou, pelo menos, infere. É difícil para ele falar sobre o tema, tendo em vista o risco de enviesá-lo para algum tipo de estereótipo. Acredita, contudo, que a casa nordestina, de modo geral, é a casa da nossa rua, baseada em um imaginário popular – a rua dos nossos pais, dos nossos avós, dos antepassados que construíram nosso lar.
“Acho que essa casa nordestina, abstrata, primeiro nasce da relação com o clima do lugar, com o tempo, o afeto que existe ali – óbvio que, pra muita gente, terão elementos como varanda, sombra, uma arquitetura que privilegie a ventilação, quintal, uso de materiais locais… Mas gosto de considerar os outros pontos. Uma simplicidade funcional”, observa.
“Agora, acima de tudo, acho que essa casa nordestina nasce do jeito de viver. E é tudo muito parecido, principalmente nos interiores – portas e janelas sempre abertas, cheiro de café passado de manhã e de tarde, conversa na calçada… Acho que preservar essa cultura dentro de casa é preservar, sim, a identidade de um povo”.
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Márcia Cavalcante concorda que o conceito de casa cearense e nordestina é relativo. Existiram arquitetos no Ceará, por exemplo, que incorporaram muito bem às residências telhados de barro, madeiras, varandas, em reprodução às casas do sertão – com todo um contorno de varanda para amenizar o calor dentro de casa, para citar uma característica.
Mas também – caso a análise de nossa história arquitetônica seja mais profunda – é necessário considerar a igual adoção de influências globais aqui. “O Centro de Fortaleza tem casas do século XVIII ecléticas, da Bélle Époque, com influências francesas e italianas. Se você olhar a casa da Vila Morena, na Praia de Iracema, há influências estrangeiras”.
Em resumo: muitos arquitetos incorporaram elementos sertanejos às casas da Capital, mas houve um período em que vários deles trouxeram uma arquitetura moderna, do Rio de Janeiro e de São Paulo, ao Ceará, com adaptações ao clima, a exemplo de janelas de madeiras de veneziana, varandas, jardineiras etc. É o que consolida o pensamento: não há como definir, de modo totalizante, qual é o estilo de uma casa cearense.
Soma-se a isso outro fato importante: há diferentes tipologias de casa em nosso chão. É o caso da tipologia urbana (casas alinhadas ao passeio, de porão alto, normalmente ecléticas, da Bélle Époque do Ceará); rural, do sertão (de fazendas, rodeadas de varandas); e litorâneaS (de taipa, muito baixas, com telhas brancas, feitas a partir da areia branca da região).
“O que acontece hoje é que, com a urbanização, muitas pessoas já têm morado e a tendência de residir em edifícios verticais será ainda maior – só na Aldeota, 80% das pessoas moram em apartamento. Esses edifícios são feitos num padrão, sem nenhuma personalização. Como esse habitante vai personalizá-lo e, assim, dar alma a ele? Muitas vezes a pessoa faz isso sozinha; em outras, precisa do auxílio de um arquiteto para orientar”.
No fim das contas, vale muito o que Bráulio Bessa apregoa: casa é território para aprender. “Ela ensina sobre pertencimento, memória e, principalmente, respeito à própria origem. Quando a gente perde isso, a casa vira só um endereço. Esse, inclusive, é um medo que quem tem raiz muito forte com o próprio lugar, sente – de não conseguir passar aos filhos, por exemplo, aquele mesmo afeto e respeito. Tenho lutado muito por isso. Quando a gente preserva, a casa vira raiz de fato”.