Como detox digital e fim do ano estimulam autoconhecimento

Período de intensa demanda por cumprimento de metas, encontros sociais e consumo é propício para refletir sobre a presença digital.

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Redação producaodiario@svm.com.br
Fotografia em close-back de uma mesa de madeira em primeiro plano, onde se vê uma caneca cinza e um pequeno cesto de corda contendo um smartphone, um smartwatch e fones de ouvido. Ao fundo, de forma desfocada, uma mulher está sentada confortavelmente lendo um livro físico.
Legenda: Pequenas pausas, como se dedicar à leitura sem estímulos de tecnologia, podem configurar momentos de detox digital na rotina.
Foto: Syda Productions / Shutterstock.

Confraternizações com fotos dos encontros tomam as redes sociais. Compras on-line para dar conta de presentear amigos secretos, familiares e a si mesmos. Corrida para bater metas e otimizar entregas antes que chegue o recesso. Trends para mostrar quantos livros, filmes, músicas e até dates ocorreram naquele ano.

Se a hiperconexão e a correria já parecem ser regra durante todos os meses, em dezembro elas ganham contornos acentuados por conta das demandas sociais, profissionais e de consumo típicas do período de festas.

A partir deste panorama, o Verso abre espaço para refletir sobre a prática do detox digital e como é possível reconfigurar a relação com dispositivos, redes sociais e mais comportamentos em meio ao final do ano.

“Reconexão” e diminuição de ansiedade

“Estou indo para um retiro e vou ficar a semana inteira sem celular (...), então não morram de saudade. Lembram que eu falei pra vocês que eu tô nessa linha de reconexão? Ficar um pouco longe da internet e do celular vai ajudar. Não que essa seja a causa, mas ajuda”.

Quem partilhou sobre um período de distanciamento do smartphone para os mais de 28 milhões de seguidores foi a artista e influenciadora Juliette. O anúncio foi feito no último dia (15) e repercutiu justamente nas redes sociais, principal ferramenta de trabalho da famosa.

“É um paradoxo entre o desejo de se desconectar e a necessidade de se manter visível no mundo hiperconectado”, aponta Luiza Ester, mestra em Psicologia pela Universidade de Fortaleza e integrante do Laboratório de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre (Otium).

juliette tirando foto no espelho
Foto: Reprodução/Redes Sociais

“Ao mesmo tempo, esta também é uma forma de produzir sentido sobre o tema e de influenciar experiências para além do virtual, compartilhando justamente onde as pessoas estão: no mundo on-line”, reconhece. 

Diferentemente de Juliette, a recepcionista e estudante de marketing cearense Vitória Lara Costa Pinheiro, de 23 anos, já está há quase sete meses sem utilizar o Instagram de forma pessoal. Isso na busca por limitar um estado de ansiedade que passou a reconhecer ligado ao uso da rede social.

Ela tinha duas contas, uma principal e outra do tipo daily — geralmente uma conta secundária, privada, com menos seguidores e seguindo menos pessoas e, também, mais descompromissada nas postagens.

Pessoa segura celular prestes a deletar o aplicativo Instagram do aparelho.
Legenda: A cearense Vitória Lara Costa Pinheiro decidiu se afastar do Instagram em maio; foto de uso ilustrativo.
Foto: BigTunaOnline / Shutterstock

“Para chegar nesse ponto de desativar, houve um consumo excessivo da vida dos outros. A gente fica muito vidrado, né? Todo o tempo livre abre Instagram e rola stories, feed. Com o tempo, isso não estava me fazendo bem, porque eu estava me cobrando e me comparando muito com as pessoas, meus amigos e gente que eu nem conhecia e não teria porquê de estar me comparando”, partilha.

P

ara ela, o sinal principal foram níveis altos de ansiedade, principalmente quando estava de folga e consumia conteúdos na rede social. “Foi um nível de realmente chorar. Não percebia que era isso”, reconhece. 

“Angústia de comparação”

A atenção para a possível causa foi apontada pelo namorado de Vitória, que sugeriu testar passar um tempo sem Instagram. Ela, então, deixou de lado a conta principal. “Melhorei, mas mesmo assim ainda estava muito ligada. Chegou uma época que acordava e já abria direto o daily”, narra.

“O que realmente me motivou foi toda essa angústia de comparação. Você acorda no seu horário, cada um tem um ritmo, e vê que 5 horas tem gente que já correu, fez um monte de coisa”, explica.

A decisão de sair totalmente do uso pessoal de Instagram veio no final de maio deste ano e, na experiência dela, teve impactos positivos importantes. “Desacelerei bastante. Minha saúde mental e física melhoraram muito. Em vez de acordar olhando o que os outros estão fazendo, comia e ia treinar. Mudei a minha rotina”, destaca.

Fotografia em plano médio de uma mulher negra em uma cozinha moderna de tons claros. Ela está de pé, vestindo uma blusa bege de manga longa e calças cinzas, enquanto bebe de uma caneca rosa e usa um notebook prateado posicionado sobre a bancada branca. Ao fundo, veem-se armários planejados brancos, um fogão e um micro-ondas de inox.
Legenda: Ao invés de acordar e já usar equipamentos tecnológicos enquanto toma café, uma sugestão é estabelecer a partir de que horas mexer em dispositivos digitais; foto de uso ilustrativo.
Foto: Adedoyin / Nappy / Divulgação

Outra melhora observada foi nas relações. Um mês depois de ter saído do Instagram, Vitória foi acompanhada pelo namorado — que, conta ela, já era mais distante da rede social e usava de maneira profissional, para divulgar o trabalho como tatuador.

“A gente começou a sair sem celular, só com cartão. Já fomos para jantares onde estava todo mundo no celular e a gente não. Depois de um tempo, a gente diz: ‘Fazemos essa dinâmica de não trazer o celular para realmente conversar, interagir. Que tal todo mundo só pegar o celular na hora de pagar a conta?’”, exemplifica.

Relatos de angústia por comparação, no entanto, são comuns entre quem procura ajuda profissional, como aponta a psicóloga Renata Mota. Também integrante do Laboratório Otium, ela pondera que a “ansiedade” pode se manifestar de formas diferentes para cada indivíduo. 

Ansiedade no quê, do quê? Qual a intensidade? É uma ansiedade que chega a ser patológica?”, atenta. Com isso, a profissional reforça que há diferentes formas de sentir e se relacionar com o ambiente digital e seus impactos.

É possível, por exemplo, ter desenvolvimento de insônia ligado ao uso de dispositivos e redes sociais, pelo hábito de, ao deitar, utilizar o celular. “Isso gera insônia, que logo gera cansaço, que gera estresse e, no dia seguinte, menos conexões com você mesma. Uma coisa vai puxando a outra”, explica.

Prática subjetiva e múltipla

Tanto Juliette quanto Victória estão, de maneiras próprias e subjetivas, praticando o que vem sendo conhecido contemporaneamente como “detox digital”: é o exercício de afastamento voluntário e temporário do ambiente digital e dos estímulos dele.

“Como prática subjetiva, o detox digital é multifacetado e tem diferentes nuances. Essa ‘pausa’ intencional inclui períodos planejados de desconexão digital e pode variar em duração”, explica Luiza Ester.

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Autora da dissertação “Explorando o detox digital e alguns dilemas do mundo hiperconectado” — na qual analisou a prática e a forma que ela foi repercutida na imprensa —, a também jornalista explica que a prática é “flexível” e “pode ser adaptada às necessidades e aos desejos de cada pessoa que se lança nesse fenômeno”.

“O afastamento não precisa ser das redes sociais e do celular ‘juntos’, necessariamente. Cada pessoa pode escolher como quer fazer esse detox digital, pensando no seu desejo, nas suas limitações e nas expectativas sobre essa experiência (que pode ser desafiadora também!)”, aponta.

São várias, segundo Luiza Ester, as estratégias e possibilidades de realizar um detox digital:

  • Pequenas pausas diárias na rotina;
  • separar um dia da semana desconectado;
  • reduzir ou desligar notificações dos dispositivos;
  • desconectar-se apenas das redes sociais;
  • estabelecer limites para o uso dos equipamentos; t
  • trocar temporariamente smartphones por celulares básicos;
  • desconectar-se do digital totalmente (detox digital radical);
  • aderir a retiros e viagens de turismo desconectado;
  • ou mesmo adotar uma abordagem de uso consciente das tecnologias, utilizando a tecnologia para atividades específicas.

A psicóloga Renata Mota ressalta, ainda, a importância de efetivar planos plausíveis a partir das próprias possibilidades. “Às vezes, a gente se coloca umas metas que não vai cumprir”, aponta.

“É um exercício diário. Se eu me comprometi a pegar no celular só a partir das 10 horas, vou tentar ao máximo cumprir. Se não der certo todos os dias, coloca pelo menos uma vez na semana”, sugere.

Nem necessariamente bom, nem necessariamente ruim

Ainda que Juliette tenha ido atrás da prática para “reconexão” e Vitória tenha a buscado para trabalhar a própria ansiedade, o detox digital não é, em si, positivo ou negativo. Como aponta Renata, “quando a gente está falando de impacto psicológico, não tem uma regra”.

“A gente pode tanto ver impactos psicológicos ao se distanciar do digital por um viés positivo quanto negativo, vai depender de pessoa para pessoa. Se você trabalha com o digital e se propõe a fazer esse exercício, a depender do que estiver fazendo nessa semana (isso) pode gerar falta da conexão, ansiedade por não estar em contato com o digital”
Renata Mota
psicóloga

No anúncio de pausa do uso de celular, Juliette afirmou que a internet e o aparelho não eram a “causa”, mas a distância deles “ajuda”. “(Ela) está bem correta nessa posição porque, onde todos nós estamos hiperconectados, ainda não sabemos muito bem os impactos positivos ao se afastar”, considera.

Não há regra, ainda, para a forma. Há retiros espirituais, como no caso da influenciadora, ou mais práticas e cotidianas, como a feita por Vitória. Há, ainda, busca por adicionar momentos de outro tipo de conexão na rotina, como clubes de leitura ou prática de esportes, adiciona a psicóloga. 

Detox digital durante o fim de ano

No período de Natal e Ano Novo, Vitória irá completar sete meses sem utilizar o Instagram. Para ela, o fato irá ajudar a lidar com o período por conta da ausência de “cobrança”.

Em meio a trends de listar o que foi feito no ano que passou e os possíveis impactos negativos da comparação com outras realidades, a cearense vem sentindo menos peso no período

Não estou pensando que fui menos proativa ou não fiz o que queria fazer porque não estou me comparando com ninguém, mas só com meu ‘eu’ do ano passado”, afirma.

“Costumo gostar muito (das festas), mas é uma data muito angustiante porque você vai olhando para trás e fica pensando no que deixou de fazer, o que poderia fazer, aí abre o Instagram e tem photo dump do ano das pessoas, mas aquilo não era seu momento, sua realidade”, avança.

“Não existe período certo para você se propor a fazer um detox digital”, sustenta a psicóloga Renata Mota. O que mais importa, na visão da profissional, é que a intenção da busca pela prática seja em prol de si.

“É importante, como tudo e qualquer coisa que envolve impactos psicológicos e seres humanos, você se conhecer, saber qual o seu limite, até onde consegue e quer ir. Você pode tirar uns dias para se preparar para um detox digital de final de ano, por exemplo, antes de fazer de uma vez”, ilustra. 

Em diálogo, a pesquisadora Luiza Ester destaca: “Para quem tem um período de recesso, pode ser uma oportunidade para se lançar nessa experiência. Para quem não tem e quer fazer, pode utilizar um fim de semana ou um feriado que não tenha nada marcado ou mesmo uma pausa ao meio do dia”.

Entre desafios, as especialistas abordam o impacto disso nas relações sociais mais diretas. “A gente precisa ter coragem de impor limites. ‘Vou ser tachado como uma pessoa chata, antissocial’. A gente está fazendo isso por si ou pelo outro?”, aponta Renata. 

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Luiza lembra, por outro lado, que às vezes a saída das redes pode refletir em ausências de convites para confraternizações.

“Esse detox digital inclui estar consciente sobre não ser chamado para os eventos de fim de ano ou perder essas comunicações? Como as pessoas vão entrar em contato com você? Ou essa ausência faz parte também do seu desejo?”, pondera.

Aspectos como o excesso de consumo também são ressaltados pelas duas. “Por exemplo, vou fazer um detox digital para aliviar as pressões desse fim de ciclo, mas vou no shopping e acabo substituindo o consumo incessante das redes por compras infinitas no cartão de crédito. Precisamos parar e refletir sobre com o que vamos nos conectar ao desconectar do digital”, reflete Luiza.

“Ao desconectar, estamos nos conectando com o quê? O que quero com esse detox digital? Estamos, ao nos desconectar do digital, ainda replicando as mesmas lógicas estruturais desse sistema de pressões e sobrecarga de estímulos?”
Luiza Ester
pesquisadora do Laboratório de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre

“Esse é o dilema e o potencial do detox digital: ao mesmo tempo que pode oferecer um espaço para o autocuidado, pode nos desafiar a encarar as estruturas que moldam nosso estilo de vida e a responsabilidade de reimaginar não apenas nossa relação com o universo digital, mas também com este cenário mais amplo e complexo em que estamos inseridos”, considera Luiza.

Em diálogo, Renata reforça: “Todos os anos vai existir excesso de consumo, cumprir metas e encontros sociais. O que precisa mudar somos nós em relação a isso, não isso em relação à gente”.

Se conhecer e se priorizar

O centro do debate reside, no fim das contas, na importância de se conhecer e se priorizar. “A gente precisa lembrar que somos nossa principal prioridade. Não é o celular, não são as redes sociais, não é o outro", inicia Renata.

"Enquanto a gente estiver vivendo apenas em prol do que é externo, a gente vai ter muitas frustrações, inclusive se se propor a fazer um detox digital. Mas se reconheço compromisso e responsabilidade comigo mesma, esse é o principal ponto”, reforça.

Passar uma semana sem celular pode, como exemplifica a psicóloga, suscitar autoanálises como: O que vou fazer agora? Do que gosto de fazer? O que sinto falta de fazer? O que fazia antes de existir o celular?. “É importante fazer esse exercício de questionamento: o que eu gostaria de fazer para além do digital?”, aponta.

Fotografia de três jovens adultos sentados ao redor de uma mesa de vidro em um ambiente interno iluminado. No centro, um homem sorridente de óculos e camisa preta estampada segura um livro aberto. À esquerda, uma mulher de perfil com cabelos avermelhados sorri, e à direita, outra mulher de costas com blusa azul gesticula enquanto segura um livro. Sobre a mesa, há diversas xícaras de café e livros espalhados.
Legenda: Encontros sociais como clubes do livro podem estimular experiências fora do ambiente digital; foto de uso ilustrativo.
Foto: Alfonso Soler / Shutterstock

Os já citados esportes, leituras ou até outras práticas — como artes manuais, encontros presenciais e mais — podem ser “pílulas” de detox digital quando feitas sem o advento dos dispositivos e das redes sociais.

“Por que não passar uma hora lendo uma revista física? Se passo duas horas da semana jogando vôlei, se começo um clube do livro e estou me encontrando presencialmente com as pessoas, são horas fazendo detox digital”, ilustra.

“Às vezes a gente também precisa entender que não precisa ir para o outro extremo. Talvez você não consiga por vários motivos, e está tudo bem, mas você precisa lembrar que uma, duas, três, quatro horas durante a semana que você passa sem tocar no seu celular já é um detox”
Renata Mota
psicóloga

O foco, reforça a psicóloga, é a busca subjetiva do que faz sentido para si. “A relação com o digital tem muito a ver com um processo de autoconhecimento e paciência com você mesmo. A gente precisa buscar internamente coisas que fazem sentido além do que se encontra no mundo digital”, lembra.

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