Cícera Nunes sempre viu no espelho uma mulher preta. Aos 48 anos, ela sabe que precisou mover pesadas estruturas para estudar, se formar, ensinar e ter sua voz ouvida. Entrou na universidade num momento em não havia políticas afirmativas. Fez graduação, mestrado e doutorado contra as estatísticas, mas na universidade encontrou um oásis: o movimento negro e em especial a inspiração de mulheres imersas nele.
Tudo então virou combustível de mudança. Desde a faculdade de pedagogia, Cícera mergulhou na busca por transformar realidades. "Sofri todas as consequências do racismo estrutural e vi que não posso ficar neutra", ela diz. No país em que nove em cada dez escolas sequer abordam aspectos étnico-raciais, ela tem se dedicado a criar instrumentos para a educação antirracista.
No Cariri - onde viveu quase a vida toda -, se uniu a pesquisadores, professores e movimentos sociais para fazer a diferença. Hoje ela atua na Universidade Regional do Cariri, onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais – NEGRER.
Foi daí que vieram livros, documentários, mapeamento da cultura negra e indígena de uma comunidade do Crato, aplicativo para educação antirracista e materiais pedagógicos para serem usados nas escolas. Um mergulho acadêmico e pessoal para reconhecer a cultura negra e indígena da região.
O pontapé inicial foi o edital Educar para Equidade Racial e de Gênero na Educação Básica, que conta com apoio do Itaú Social e Unibanco. O projeto tinha como tema o currículo e os processos de formação de professores na educação básica na perspectiva das educações étnico-raciais. "O que a gente tá discutindo é a dificuldade de identificar as referências africanas e indígenas na nossa história. O projeto queria mostrar que a África faz parte da nossa história", explica Cícera.
Com o apoio de muitas mãos e mentes, Cícera firmou parceria com a escola pública Dom Quintino, no Crato, o que inaugurou um ano de pesquisa e investigação sobre a história da comunidade do Gesso. Foram registradas histórias de vida, instauradas placas com os pontos de memória negra e indígena. Para a professora, era uma forma de olhar para trás e se reconhecer na ancestralidade para projetar um futuro diferente.
Além dos documentários e materiais pedagógicos, essa imersão foi parar em um aplicativo desenvolvido com o apoio de professores do Instituto Federal do Ceará e que agora está sendo reformulado: o EducAya.
Veja também
Ele mapeia pontos de memória da comunidade e registra locais relacionados à história dos povos negro e indígena no sítio urbano relacionado à ressignificação de um antigo trilho do bairro. É um lugar que no passado foi muito usado para estigmatizar mulheres negras por conta da prostituição e agora representa metros e metros de plantios. Próximo ali, o mapeamento de antigos mestres, terreiros de umbanda, organizações de mulheres, etc.
"O aplicativo propõe esse movimento de reconexão com a África, traz protagonismo feminino e conta a história da comunidade do Gesso. É uma cartografia étnico-racial para conhecer a história da população negra e indígena do Cariri a partir da história da comunidade", explica Cícera.
No momento, o aplicativo está sendo reformulado para funcionar como GPS. A ideia é que ele mostre o caminho para os visitantes e estudantes chegarem aos 13 pontos de memória negra mapeados. Mas o trabalho da professora tem outros frutos. O material pedagógico produzido, por exemplo, está sendo distribuído em todas as escolas da cidade. Centenas de títulos de autores negros e indígenas foram adicionados à biblioteca da Dom Quintino.
Cícera, que tem dedicado boa parte da vida à educação antirracista, sabe que o caminho ainda é longo.
Vinte um anos após a lei que inclui a história e cultura afro-brasileira no currículo escolar, 9 em cada dez Instituições de Educação Infantil não abordam aspectos étnico-raciais, segundo o estudo “Avaliação da Qualidade da Educação Infantil: Um retrato pós BNCC (Base Nacional Comum Curricular)”, realizado pelo Itaú Social e pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
"A gente vê que é um descomprometimento mesmo", diz Cícera. "é uma política antiga, ela não é mais nova, não justifica mais as pessoas não saberem que ela não existe e a responsabilidade maior é com as universidades e com as secretarias da educação", incentiva. A educação antirracista, ela sabe, precisa estar dentro e fora da sala de aula.