‘Sem cotas, eu não teria carreira’: como a Lei de Cotas dita o futuro de estudantes do CE há 10 anos
Cearenses que chegaram ao ensino superior por meio da lei apontam importância de fortalecer e dar continuidade à política pública
“Não estaria no curso que eu sempre quis.” “Não teria chances, vindo de uma vida inteira de escola pública.” “Não teria seguido o meu sonho.” As negativas falam da certeza de um futuro que teria se concretizado, mas teve o rumo desviado em 29 de agosto de 2012: quando foi sancionada a Lei de Cotas.
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Dez anos depois, a política que reserva vagas em instituições federais de educação superior a alunos pobres, negros e/ou com deficiência emerge envolta em gratidão no discurso de cearenses.
O Diário do Nordeste traz, então, relatos de estudantes que compartilham, pelo menos, dois pontos em comum: o acesso à universidade por meio da Lei de Cotas e a certeza de que a política pública é crucial para garantir o direito básico da educação.
“Eu estaria fazendo outra coisa, em outro lugar”
Antes de ingressar no curso de Enfermagem na Universidade Estadual do Ceará (Uece), em 2020, a estudante Maira Lima, 21, até tentou iniciar os estudos numa faculdade privada, via Prouni. Mas se inquietou. “Não era o que eu queria.”
Perseguir o “curso que sempre quis, no lugar que escolheu fazer” se tornou possibilidade por Maira se encaixar num dos critérios da Lei de Cotas: ter estudado na rede pública durante todo o ensino médio.
Se não tivesse essa política, provavelmente hoje eu estaria fazendo um curso prático, que tivesse ‘dado pra passar’, pra ter um diploma, e não seguindo uma carreira por paixão. Talvez nem tivesse tentado, e ido direto pro mercado de trabalho. Sem as cotas, minha vida seria muito diferente.
Maira reforça que a dificuldade que teria de ingressar num curso superior não diz respeito a uma “incapacidade” própria, mas a um sistema público de educação que não prepara os alunos para isso.
“Sou muito grata às cotas, porque se não as tivesse, eu estaria fazendo outra coisa, em outro lugar. E sou completamente apaixonada pelo que faço”, pontua, destacando que esse gosto sustenta, inclusive, o esforço necessário para se manter na universidade.
“Eu não teria chances”
Quando ocupava as carteiras de uma escola pública de bairro em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, Carla Cristina, 18, “se esforçava” para driblar o destino que era posto como certo à população preta e pobre do Brasil: largar os estudos e trabalhar.
Mesmo quando faltava luz na escola, se instalava greve e faltava professor e material, Carla sustentava o objetivo de ser a primeira da família a ingressar numa universidade pública, apesar de “largar tão atrás” dos demais.
Eu não teria entrado na UFC sem as cotas, não consigo imaginar que começaria a traçar uma trajetória profissional sem essa política. Não teria chances num país em que alunos de escolas privadas têm muito mais oportunidades de acesso.
Ingressar, porém, não é a batalha agora – e sim permanecer. Carla, hoje graduanda de Pedagogia da Universidade Federal do Ceará (UFC), conta com o auxílio de colegas para ter acesso a um computador e a conhecimentos básicos necessários a um universitário.
Além disso, divide a rotina entre estudar e ensinar. Dá aulas de reforço para conseguir alguma renda e não pesar os gastos da mãe, auxiliar de serviços gerais. “É a única forma de me manter na universidade. Preciso trabalhar pra poder pagar passagem e ir.”
“Teria desistido”
Negro, pobre, morador da periferia, oriundo de escola pública. Psicólogo clínico, formado pela UFC. Há 10 anos, é provável que essas frases não descrevessem a mesma pessoa – mas hoje definem Bruno Teixeira, 25, que ingressou na educação superior em 2016, por meio da Lei de Cotas.
Mas negros como ele, só mais 3 ou 4 na turma de 40 alunos, “não fazia sentido”. “Sabemos que o ensino superior público no Brasil é extremamente elitista e dedicado a poucos. (A Lei de Cotas) me possibilitou que eu pudesse ter os mesmos direitos que essas pessoas.”
Havia comportamentos implícitos de achar que você estava atrás por ter entrado por cotas. Eu internalizava isso, sofria, tinha a concepção de que eu precisava mostrar que eu era capaz e merecia estar ali. Eu tinha que brigar por isso.
Hoje formado, psicólogo em exercício e mestrando numa universidade estadual, Bruno se recusa a dizer que “se não fossem as cotas, não teria entrado”, mas reconhece que o percurso poderia ter sido difícil a ponto de fazê-lo desistir.
“Eu teria desistido ou optado por fazer alguma outra coisa que não era tão importante pra mim quanto a psicologia. Não seria tão realizado como sou hoje. Provavelmente teria seguido cursos mais acessíveis, mas não era meu sonho”, afirma.
Como funciona a Lei de Cotas
A Lei nº 12.711, de 2012, determina que instituições federais de educação superior reservem, no mínimo, 50% das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio na rede pública. Dessas, metade vai para alunos de baixa renda.
Pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência (estas incluídas só em 2016) entram numa espécie de “subcota” nessa reserva de vagas, e a porcentagem destinada varia de acordo com a quantidade de habitantes desses grupos no estado.
Tipos de cotas:
- Cota L1 – candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo;
- Cota L2 – candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, autodeclarados pretos, pardos ou indígenas;
- Cota L5 – candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, independente da renda;
- Cota L6 – candidatos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, independente da renda, autodeclarados pretos, pardos ou indígenas;
- Cota L9 – candidatos com deficiência que tenham renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas;
- Cota L10 – candidatos com deficiência autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, que tenham renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas;
- Cota L13 – candidatos com deficiência que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas;
- Cota L14 – candidatos com deficiência autodeclarados pretos, pardos ou indígenas que, independentemente da renda, tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Alesandra Benevides, doutora em Economia e coordenadora do Laboratório de Estudos da Pobreza (LEP) da UFC em Sobral, opina que essas muitas subdivisões são um dos problemas que devem ser reavaliados na política afirmativa.
Esse esfacelamento de tantos tipos de cota às vezes mais dificulta a entrada do candidato do que facilita. Eu defendo menos tipos de cota, e mais abrangentes.
A pesquisadora avalia que “em termos sociodemográficos”, relacionado ao acesso de pessoas pretas, pardas e indígenas nas universidades, “há um efeito prático; mas em termos socioeconômicos, não necessariamente”.
Ela explica que muitos universitários vêm, sim, de escolas públicas, mas “as profissionalizantes ou militares, que, de alguma forma, têm perfil socioeconômico um pouco mais alto”.
“As cotas modificaram o perfil do estudante dentro das universidades federais, e nada disso seria possível se não fosse garantido em lei. Se não houvesse a lei, demoraria muito para que o perfil desses estudantes fosse alterado, especialmente em relação a cor e raça”, analisa Alesandra.
dos jovens de 18 a 24 anos de instituições federais de ensino superior em 2012 eram pretos, pardos e indígenas. Em 2016, subiu para 65%, segundo a pesquisadora Alesandra Benevides.
“Cota é reparação histórica”
Os impactos práticos da Lei de Cotas não param no acesso aos estudos: alcançam o direito ao emprego, a cargos de chefia, à possibilidade de ingresso na política como caminho para ampliar ações de igualdade racial, como reflete Nadia Amaro, assistente social e pesquisadora na Uece.
“Essa lei nos aponta uma saída da população negra desse lugar que o racismo enquanto estrutura determinou pro negro brasileiro: de subserviência, de não acesso a educação, lazer, cultura, saúde e outros direitos. As cotas transcendem esse lugar que historicamente foi negado a pessoas de cor”, destaca.
Nadia é categórica ao afirmar a necessidade de fiscalização dessa política pública, por meio das comissões de heteroidentificação, para que as vagas sejam acessadas por alunos a quem realmente se destinam.
“É preciso entender como a branquitude tem sido desonesta na contribuição da efetividade dessa legislação, que não foi feita para separar a sociedade entre negros e brancos. Cota é uma política de reparação histórica”, sentencia.
É necessário que denúncias continuem sendo feitas, pra que a gente rompa esse pacto da branquitude que tenta se utilizar dessas políticas como um caminho fácil. Precisamos romper com esses privilégios.
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Além do preconceito racial, outro incide diretamente sobre a efetivação da Lei de Cotas na prática: “o capacitismo estrutural”, como destaca Emerson Damasceno, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB Ceará.
“Uma das dificuldades é a invisibilidade que atinge as políticas públicas para PCD (pessoas com deficiência), inclusive a própria legislação. A Lei de Cotas, por exemplo, só nos incluiu a partir de 2016, regulamentada em 2017. Houve uma brecha de 5 anos”, critica.
Outro aspecto, cita Emerson, é a defasagem no levantamento de quantas PCD existem no Ceará, número que define quantas vagas devem ser destinadas a essa população. Apesar disso, ele reconhece os avanços que o dispositivo legal promoveu.
O impacto prático é o acesso de milhares de alunos e alunas com deficiência, que muito provavelmente teriam de enfrentar barreiras bem maiores para ingressar no ensino superior. Mas ainda é preciso repelir com contundência os ataques à educação inclusiva.
Emerson defende, ainda, que o direito conferido pela Lei de Cotas na graduação deveria ser expandido “a outras esferas, como a pós-graduação e a rede privada”, já que, em se tratando de populações vulneráveis, a meta deve ser “ampliar direitos”.
“Uma década depois, vemos como conseguimos, ainda timidamente, minimizar o imenso abismo estrutural e injusto que havia em relação ao acesso de populações cuja vulnerabilidade é inegável. A gente festeja, mas pedindo que haja ampliação e vigilância.”
Lei de Cotas no Ceará
Na sexta-feira (26), a reportagem solicitou às principais instituições públicas cearenses – UFC, Uece, IFCE, UFCA, Unilab e UVA – os seguintes dados:
- Quantos estudantes ingressaram pela Lei de Cotas por renda, cor, raça ou deficiência, desde 2012;
- Quantos deles concluíram os cursos nos quais ingressaram;
- Se foram constatadas fraudes a essa lei, nesses 10 anos, e quantas matrículas foram suspensas ou canceladas por esse motivo;
- E se já existe algum diálogo ou sinalização sobre a revisão da lei, que deve ser realizada neste ano.
A Universidade Federal do Cariri (UFCA) foi a única instituição a enviar respostas, até esta publicação. Antes vinculada à UFC, a UFCA explica que os dados de ingresso entre os anos de 2013 a 2015 são inconsistentes, e que, por isso, informa apenas os quantitativos de 2016 a 2021.
Nesse período, 1.304 estudantes oriundos da rede pública, pretos, pardos, indígenas ou PCD ingressaram na UFCA por terem renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo. Considerando apenas cor, raça e deficiência, independentemente da renda, 1.889 alunos foram matriculados na instituição desde 2016.
A universidade informou ainda que em 2020, três estudantes do curso de Medicina foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) por utilização irregular da Lei de Cotas. Eles tiveram as matrículas suspensas.