A amizade é o amor que se escolhe. Beneficiada pela sublimação dos desejos sexuais, a amizade nos protege da solidão, oferece retaguarda para os autoboicotes, nos envolve em esperança, acolhe as ambivalências dos afetos, nos lembra quem somos e que por isso somos amados, nos recobre em presença silenciosa e firme diante de dores e perdas, com a certeza inquestionável de que há um outro em quem confiar e que se importa.
Um amigo nasce no improvável da vida, não se sabe quando será possível um encontro que atravessará conosco as memórias do tempo. Pode acontecer no colégio, no bairro, nas múltiplas arquiteturas e territórios da cidade, na casa, no ônibus, no trabalho, em viagens, em perrengues, alegrias ou aflições partilhadas. É aquilo que envolve duas pessoas disponíveis a habitar o coração um do outro e a se fazerem presente na partilha do vivido.
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Um amigo nos acompanha nas dores, nas angústias, na travessia dos dias, nos olha com a revelação do que temos receio em ver, nos acolhe nos erros e nos confronta com o conforto da verdade; diante dos vendavais segue ao lado e comemora a felicidade como se fora sua, sabe que nos maiores amores pode habitar a inveja, a raiva, e que o espaço da palavra é sempre o solo fértil da esperança e da compreensão.
O abrigo no abraço de um amigo é escudo protetivo para os dias pantanosos e modorrentos, é possuidor do dicionário e gramática completa dos nossos sinais e conflitos, guardião dos segredos, das vergonhas, dos desejos, das conquistas, parceria dos absurdos e testemunha daquilo que em nós permanece enraizado no alicerce da alma. Oráculo para onde direcionamos as dúvidas e cúmplices das rebeldias, aprendizagens e criatividades. Amigos ensinam a tecer sonhos de forma plural e nos mostram que o cobertor da solidariedade é ampliado nos fios dos desafios que não desfiam, mas se fortalecem em um Nós que espanta o medo do exílio e alarga o pensar.
Em contextos competitivos, raivosos, de incompreensões, brutalidades e pouca densidade do pensar, a amizade fica escassa, vira produto raro, posto que faltam pessoas disponíveis ao amor, ao cuidado, ao diálogo e à alegria de partilhar o sentir. Amizade precisa do cultivo sereno da delicadeza, e morre fácil com a traição. É benção sagrada da vida, que envolve aqueles que se dispõem a pactuar os mistérios dos vínculos.
Perder um amigo é despossuir uma parte de si. Não ter amigos é um sinal de necessidade de ajustes na rota da vida.
Pertencer no afeto, na memória, na jornada, ser capaz de conquistar o respeito de alguém é uma das experiências mais intensas do existir. É a descoberta de que a afeição é um benefício que se multiplica.
É preciso ter tempo para os amigos, para desfrutar da companhia, para atualizar os dias, para se energizar da presença daqueles para quem só precisamos ser.
É imprescindível se dispor a que outros nos habitem em querer bem. É preciso correr o risco de ser importante para alguém e de se importar com outrem. Muitas vezes a rigidez, o excesso de cobranças, as exigências e expectativas impossíveis direcionadas a si e aos outros, as deformações narcísicas, a brutalidade, as violências e preconceitos,o histórico de mágoas, rancores e traições, a dificuldade em perceber o outro, as dificuldades em lidar com as emoções, a arrogância, podem erguer montanhas intransponíveis de um eu triste e solitário, refém do egoísmo e incapaz de amar. Recursos financeiros não compram afetos. Existe uma outra lógica na sedução das identificações do se afetar. Cuidar e ser cuidado, ser visto, respeitado, ser escutado, sentido, conhecido, disponível a mudanças e redescobertas.
Amizade cura, repara danos de violências e desamor. Construída nas identificações, aglutina e amplia forças para enfrentar racismo, patriarcado, preconceitos diversos que desejam desinstalar um sujeito da pertença de si.
Os amigos constituem rede de apoio; aquilo que é preciso quando muitas vezes não conseguimos nos sustentar sozinhos, seja por adoecimento, por tristeza, por perdas financeiras. A amizade faz solidariedade virar verbo, porque age, faz-se presença ativa, transforma a realidade daquilo que é sentido.
Empoderada pelas experiências da simplicidade, dos amigos podemos nem saber o sobrenome, mas guardamos inabalável a memória poética dos acalantos, dos colos, dos ombros oferecidos para repousar, das mãos estendidas para ajudar a levantar, do abraço onde é possível desabar e ouvir o coração que recarrega a esperança e o sonho, quando o nosso parece emudecer.
Será que temos dedicado tempo, escuta, presença, será que temos nos oferecido ao convívio, será que temos valorizado as trocas e o recebido amoroso, será que temos conseguido fugir da teia de ver o outro enquanto inimigo e nos lançado na vida competitiva solitária e vazia? Será que me ofereço ao risco de partilhar a verdade de quem sou porque é essa a moeda verdadeira que forja os vínculos?
Aos novos amigos, aos amigos de uma vida, aos amigos que virão, mantenhamos as portas abertas, porque a amizade é um semear de amor que pode nos proteger do aniquilamento.
*Esse texto representa, exclusivamente, a opinião da autora.