Racismo: a violência que deseja apagar o valor do outro
Quando, na produção de identidade, o olhar para si, para a pele, para o rosto, para o cabelo é algo que socialmente é objeto de rejeição, as consequências podem ser de desgosto com a existência e sensação de inferioridade
Quando nossa história possui marcas de violência, precisamos ficar atentos a como isso irá repercutir na construção da nossa subjetividade, do nosso jeito de ser, de ver o mundo, de ver os outros. Enquanto nação temos marcas violentas muito relevantes: a escravidão e a ditadura; que repercutem no imaginário social produzindo posturas coletivas e subjetivas tais como aversão, identificação, negação e excitação na relação com o traumático.
A violência pode nos paralisar, nos fazer fugir, nos impulsionar a lutar e a nos identificar com o agressor, por conta das relações imaginárias de poder e fantasias em busca de proteção. O racismo, enquanto marcador estrutural das relações sociais e construção colonial de povos, nações e subjetividades, apresenta em nosso país, constituído pela diversidade, sua face mutante cotidianamente.
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As repercussões de europeus, indígenas e negros nas nossas formações serão atravessadas pelo imaginário e pelos lugares que essas populações possuem enquanto representações sociais. No processo de colonização, os povos escravizados eram decorrentes de populações étnicas de sudaneses e bantos, muitos deles pertencentes a linhagens da realeza, que possuíam riquezas linguísticas, científicas, religiosas e culturais como samba, maracatu, capoeira, que passam a compor a identidade do povo brasileiro.
Entretanto, todo processo de colonização, escravização e violência visa ao apagamento das identidades e tensiona um processo contínuo de resistência e visibilidade contra a invisibilidade social. Esse apagamento e construção de um olhar de inferioridade existencial é produção necessária para a violência, a opressão e a exploração da população negra. Esse olhar se transforma em comportamentos e verdades que passam a ser construídas utilizando simplesmente marcadores externos como a cor da pele, a estética do cabelo, configurando os preconceitos (pré conceitos, ideias que passam a existir antes de qualquer confrontação com a verdade e a realidade).
Os preconceitos oferecem uma leitura superficial da realidade para os que não precisam aprofundar a verdade e a existência dos paradoxos, das ambiguidades e de versões múltiplas de narrativas. Diante de uma população miscigenada, passa-se a negar as origens e referências que são consideradas de menor valor e busca-se a aproximação com os valores da raça branca, a "colonizadora, forte e admirada". Nessa negação, alimentada por forças de poder político, religioso e econômico, o preconceito vai se construindo, fortalecendo e atravessando transgeracionalmente. E mesmo os que se dizem que não são preconceituosos, encontram-se em armadilhas de pensamentos e ações que denunciam atitudes, sentimentos e ideias carregadas de violência.
Toda vez que julgamos alguma pessoa baseada na sua cor, que defendemos algum tipo de sanção racial, que realizamos avaliações e seleções baseadas em questões identitárias, quando somos contra cotas, quando defendemos menores salários, quando a presença de uma pessoa negra incomoda, quando legitimamos segregação, quando aceitamos a presença de alguém negro mas somente em lugares que não nos incomodem e que consideramos pertencentes àquela categoria, quando negamos a legitimidade da representação das dimensões culturais, religioes de matrizes africanas, quando impomos outros referenciais para "higienizar" a racialidade, estamos expressando a forma como o preconceito nos molda existencialmente.
O que passa a ser considerado estranho ou diferente, a partir de construções discursivas e históricas, abre portas para ser alvo de violência e massacre. As diferenças passam a ser atacadas para não questionar a possibilidade de outros mundos que destronariam a ideia de uma supremacia universal e inquestionável existencialmente em sua pretensa superioridade: a branca. As cotas entram no campo das reparações históricas. Pois grupos historicamente discriminados possuem menos investimentos sociais e de políticas públicas; aliás, a própria existência de políticas públicas já denuncia as desigualdades de classe, pois não encontram-se nas mesmas condições de competição, expondo o entrelaçamento de raça, classe e gênero que os estudos interseccionais apontam.
Como eu me sinto em relação a sentar na mesma mesa, namorar, beijar, ser subordinado, ter um chefe negro, que um negro more no mesmo lugar onde moro, que tenha mais dinheiro que eu, que seja mais bonito, mais inteligente, que possa escolher a profissão que quiser, que ande no mesmo elevador, que faça viagens internacionais, que tenha mais sucesso, poder, riquezas? Como eu me sinto diante dos corpos negros, da manifestação cultural e religiosa?
Por que não conhecemos Lloyd Quarteman, que inventou o primeiro reator nuclear; Percy Julian, cujo trabalho ajudou a criar medicamentos esteróides como cortisona e contribuiu na invenção de remédios para alergias, asma, artrite; Sônia Guimarães, que foi a primeira mulher negra e brasileira a se doutorar em Física; a história de Henrietta Lacks, homenageada pela OMS em 2021, quando, após um câncer, teve as células coletadas, as quais foram nomeadas de HeLa e cujas pesquisas com essas células deram origem à biotecnologia? Além disso, os experimentos com as células HeLa de Henrietta permitiram a formulação de medicamentos para câncer, HIV e vacinas para HPV e COVID-19.
Existem muitos outros admiráveis, que podem ser pesquisados no portal Geledés. Já lemos Lélia Gonzalez, Frantz Fanon, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Carla Akotirene , Zelma Madeira, Viola Davis? Os efeitos dessa construção que desqualifica e invisibiliza o valor da raça negra ao longo da história e na formação identitária, aliena-se em outras lógicas de poder que podem provocar dificuldades, principalmente em crianças e adolescentes na construção da pertença, identidade racial e autoestima.
O racismo estrutural impõe dificuldades na aceitação, valorização das identidades negras que impactam a ausência de estudos que ofereçam visibilidade a esta questão, em presenças identitárias na mídia, valorização da estética e das matrizes culturais e religiosas afrodescendentes e uma cultura de morte simbólica e física.
Quando olho enviesado, quando defino alguém pelo critério de cor da pele, quando faço piadas, quando discrimino, quando inferiorizo, quando desqualifico, quando imponho padrões de beleza que descaracterizam a diversidade, quando desconheço a força estética ancestral e o valor da diferença racial, quando humilho, seja por ignorância ou maldade,quando tento “enbranquecer” alguém para dar-lhe credibilidade, honraria e beleza, estou contribuindo para aumento dos índices de depressão, suicídio, ansiedade, uso abusivo de álcool entre a população negra.
Quando, na produção de identidade, o olhar para si, para a pele, para o rosto, para o cabelo é algo que socialmente é objeto de rejeição, as consequências podem ser de desgosto com a existência e sensação de inferioridade. Para escravizar, torturar, é preciso desumanizar, transformar em algo que não seja humano para tornar legítima a violência. Quando negamos o que estrutura a nossa história, perdemos uma parte valiosa de nós, desconhecemos os tantos que nos constituem. E ao negar o que nos assusta e desconhecemos, podemos querer apagar em nós e nos outros o que ameaça nossa frágil verdade sobre nós e ilusória soberba.
*Esse texto representa, excusiamente, a opinião da autora.