A importância da arte para a saúde mental

Ao assistir a um filme, ouvir uma música, somos levados ao pertencimento da humanidade

Foto: Fernanda Siebra/Arquivo Diário do Nordeste

A arte ajuda a transformar o medonho, a contornar o modorrento, a oferecer palavras ao que ainda é incognoscível, a lidar com dores, lutos, a encontrar saída para os problemas, a desafiar o possível e o provável, a conectar com o pulsante da alegria e potência do ser, a compreender a diversidade de emoções da experiência humana e a desenvolver os aspectos cognitivos, sociais, psíquicos e físicos.

A arte permite a própria construção humana, ao abrigar em cores, versos, sons, palavras, gestos, que um sujeito exista e habite em si. Somos sujeitos da criatividade, da possibilidade de intervenção sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo. A arte ajuda a criar os mundos possíveis e, dentre eles, nosso próprio mundo e nossa própria história.

Na construção de nossa subjetividade, precisamos inventar a nossa vida e fortalecer a capacidade de conceber ideias, sonhos, projetos, por isso o humano nasce ontogeneticamente junto com a arte. Na hora em que produzimos memória, quando sonhamos, quando algo é metamorfoseado, condensado, metaforizado, quando produzimos cultura, ao representar o vivido, ao transformar a matéria, ao produzir o imaterial, homens se produzem e se transformam.

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Ao favorecer o sonho, alimenta a esperança, porque torna desejável e possível a mudança da realidade, instigando o agir. Dores podem ser transformadas em poesia, tristezas podem virar pintura, histórias podem se reencontrar com a verdade na literatura, utopias podem ser conquistadas no cinema, ilusões podem ser visitadas em esculturas, lutos podem compor peças, dúvidas podem na concretude da dança parir respostas.

Na potência da arte, o difícil e a beleza da vida podem coexistir dentro e fora da gente. Ao assistir a um filme, ouvir uma música, somos levados ao pertencimento da humanidade, descobrimos que outros sentiram o que estamos passando, partilhamos possibilidades de elaborar o vivido em seu enredamento. Solidão pode ser compartilhada e solidariedade com desconhecidos podem ser vivenciadas. 

As artes oferecem alento para os enigmas, desconforto para as acomodações adoecidas, crítica para o pensar alienado, coragem para as rebeldias apáticas, e principalmente a chance de um sujeito se conectar com a verdade que lhe habita. Não há como fugir da verdade de um sentimento. E a arte provoca, instiga, desinstala, ajuda a descongelar experiências que podem ser ressignificadas, acolhidas, expostas, faladas, partilhadas, elaboradas e integradas na história de vida.

Tudo aquilo que não pode ser pensado, sentido, que permanece negado, amordaçado, retorna de forma difusa e muitas vezes adoecedora.

Nas repetições de experiências traumáticas ou na fúria da destrutividade, podemos ficar passivos diante das emoções. A arte nos oferece a atividade, a autoria, a ação sobre o que nos aconteceu ou acontece para que possamos decodificar de outra forma. Ajuda a sair do casulo, pelo encontro com o que desejamos e que muitas vezes nos sentimos ameaçados de assumir, por estamos tomados pelas vozes dos outros e nunca nos permitirmos ouvir nossa própria voz.

A arte nos conecta com o corpo, com a natureza, com a vida dos outros, com a história, com a responsabilidade por um existir coletivo. Ao desenvolver recursos simbólicos, podemos ter alternativas para os problemas, descolarmos da impulsividade das respostas; podemos esperar, pensar, sentir, conter em nós o vivido até podermos oferecer outros destinos. A arte nos protege da morte quando nos ajuda a destruir e recompor o que nos ameaça. 

A inserção de recursos artísticos no Projeto Terapêutico Singular é fundamental nas ações em Saúde Mental, assim como a presença de arteterapeutas nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Além de estratégia indeclinável aliada a outros recursos terapêuticos em situações de sofrimento psíquico. Outrossim, é imprescindível nos espaços educativos, organizacionais e que atuam na perspectiva de um cuidado integral. 

Mãos de pessoa idosa pintando desenho com lápis de cor
Foto: Shutterstock

Uma revisão de escopo da Organização Mundial de Saúde, que avaliou mais de 3 mil estudos, investigando quais as evidências científicas sobre o papel das artes na melhoria da saúde e do bem-estar, encontrou que a prática de atividades artísticas:

  • afeta os determinantes sociais da saúde;
  • favorece o desenvolvimento infantil;
  • encoraja comportamentos promotores da saúde;
  • ajuda a prevenir problemas de saúde;
  • auxilia no tratamento de pessoas com distúrbios neurológicos e do desenvolvimento neurológico;
  • auxilia no tratamento de doenças não transmissíveis;
  • apoia atendimentos em cuidados paliativos;
  • auxilia na regulação emocional;
  • promove menor resposta hormonal ao estresse;
  • contribui para a função imunológica aprimorada e maior reatividade cardiovascular;
  • amplia o apoio social e comportamentos sociais.

Ademais, atividades como fazer e ouvir música, artes, dança, visitar locais culturais estão todas associadas ao gerenciamento e prevenção do estresse, incluindo níveis mais baixos de estresse biológico na vida diária e menor ansiedade diária. Os dados encontrados também ressaltam que engajamento nas artes pode ajudar a reduzir o risco de desenvolver doenças mentais, como depressão, na adolescência e na velhice, pois participar de atividades artísticas pode desenvolver autoestima, autoaceitação, confiança e autovalorização que ajudam a proteger contra doenças mentais. 

Quando tomados por dores avassaladoras, o contato com a experiência artística, acolhe aquilo que parece estranho e assustador, e ao nos permitir construir contornos para o que é sentido, porque transfigura-se em capacidade de falar, desenhar; deixa de ser  assustador e de nos aprisionar no medo daquela dor, tornando-se assim palpável,  possível de ser enfrentado, visitado, nomeado, e quem sabe, em algum momento, liberto daquela dor abissal que possa voar em forma de poesia e visitar outro ser humano e ajudá-lo a entender e dar outra forma a uma emoção engaiolada.

A arte nos ensina que o humano é o terreno do absurdo, das ilusões,  das fantasias, dos desejos, e nos ajuda a integrar o imenso que nos forja. Ensina que produzimos civilização,  ciência a partir do que desejamos e que em nós sempre habitará desejos infantis que atuarão à revelia das normas, e que será preciso oferecer espaços na existência e no mundo para o sonhar que alimente a vida.  A  arte nos protege do embrutecimento. Embrutecidos, perdemos a capacidade de amar, de construir esperança, de viver.

Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora. 

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