O seu trabalho lhe adoece ou lhe faz bem?
A ideia de sucesso e meritocracia pode estabelecer uma armadilha poderosa, que obscurece o jogo engenhoso que se esconde por trás da relação trabalho e poder
A relação do homem com o trabalho está na base da formação do próprio humano. Através do trabalho, mediamos nossa relação com os outros, com o mundo, conosco. Segundo Karl Marx e György Lukács, o homem se forma ao agir sobre a natureza para produzir a si, ao mundo e sua sobrevivência. Desta forma, o trabalho envolve a relação com outros homens, a produção do pensamento e da linguagem como resultantes e operadores dessa relação e deslocamentos em sobre a nossa biologia, nos transformando em seres de criação, atividade e história.
Assim, nos beneficiamos continuamente do trabalho que os homens oferecem uns aos outros, e do trabalho que a humanidade construiu ao longo da história e que atravessa os tempos. Todos nós somos fruto do trabalho. Esse é o conceito de trabalho relacionado à ontologia, aquilo que funda um ser.
O trabalho sofre mudanças ao longo da história, porque mudam as relações entre os homens e a forma de se produzir a sobrevivência. A forma que conhecemos hoje, enquanto força de trabalho oferecida em troca de remuneração, é uma derivação decorrente do Capitalismo que inaugura uma relação diferente do homem com o mundo do trabalho.
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Competição, acumulação de riquezas, organização de classe - entre os que irão vender a força produtiva e os donos dos meios de produção - e posterior conflito e tensão, decorrente das relação de poder e discursos produzidos para sustentar esse sistema, construindo e mobilizando identidades, relações e desejos de poder que oscilam entre ser oprimido e opressor, configurando a consequente necessidade de regular as atividades profissionais e interferência do Estado para garantir proteção diante das assimetrias de poder e exploração são alguns dos cenários decorrentes deste percurso.
Contemporaneamente, assistimos muitas mudanças no mundo do trabalho:
- a entrada dos algoritmos
- a revolução digital
- a precarização dos direitos trabalhistas
- o incentivo para que cada um tenha a ilusão de poder ser patrão de si e dono do seu próprio negócio, levando a ideia de competição
- disciplina e exigências de produtividade e eficácia
Ele são levados a patamares que apresentam como efeitos sobre o sujeito esgotamento e adoecimentos e que manifestam nos casos de Burnout, uma de suas expressões mais cruéis. Considerada doença ocupacional pela Organização Mundial de Saúde, a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) relata que aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome do esgotamento profissional.
Ela é caracterizada por: cansaço extremo, irritação, ansiedade, depressão, inseguranças, dúvidas sobre a qualidade do trabalho que realiza, dificuldade de sono, dor de cabeça, tontura, problemas digestivos, dificuldade de concentração, dores musculares, mudanças de humor, ausências constantes no espaço de trabalho, fuga de novas responsabilidades profissionais, isolamento, procrastinação podendo levar ao uso de substâncias para conseguir manter o ritmo profissional.
Tal adoecimento não acontece de repente: é resultado de uma série de condições relacionada ao ambiente de trabalho e às relações decorrentes desse lugar tão importante para construir quem somos.
Eu me sinto visto, valorizado, apoiado, tenho os conhecimentos para realizar o que faço, o tempo destinado é adequado para a execução das tarefas? Existe espírito de equipe? O ambiente é hostil, competitivo? Existe respeito pelas férias? Há excesso de mensagens que invade o final de semana? As comunicações são claras, respeitosas, sou ouvido quando desejo contribuir ou questionar algo? Existe assédio? Minhas ideias são respeitadas? Meu trabalho inspira alguém? Conheço todo o processo relacionado ao meu trabalho e percebo a importância social dele? Como ocorrem no cotidiano da empresa, as relações de poder? Há valorização e reconhecimento do trabalho, das pessoas? A remuneração é adequada? Existe incentivo para o desenvolvimento pessoal e profissional? Existe um cuidado com a ergonomia? O espaço físico é agradável? Recebo os equipamentos adequados para realizar minhas atividades? Tenho apoio da minha chefia imediata? A empresa possui projetos continuados de saúde mental do trabalhador? Faço uso em excesso de cafeína para poder dar conta das exigências de produção? Sacrifico lazer, tempo com família ou amigos para atender a exigências profissionais? Recebo apoio para me aprimorar continuamente? Assuntos sobre trabalho são prioritários na minha vida? No ambiente onde trabalho posso ser quem eu sou e ficar confortável com minha identidade racial, sexual, orientação religiosa ou serei alvo de agressões disfarçadas de falas jocosas? O meu trabalho deixa o meu dia melhor, ou procuro motivos diversos para me darem a chance de não ir trabalhar e quando longe do trabalho é que me sinto bem e já começo a ficar adoecido somente em pensar no ambiente de trabalho? Como é o relacionamento entre as pessoas no ambiente de trabalho? Existe pressão contínua para dar conta de prazos e metas adoecedoras? Existe respeito pela minha trajetória profissional? Existe diversidade e inclusão? Existe plano de cargos carreiras e salários? Existe um projeto de desenvolvimento humano? Quais os valores da organização, como é a cultura organizacional? Qual a coerência entre o que se diz na empresa e o que verdadeiramente ocorre? Como você escolheu esse trabalho? Como você se sente fazendo o que faz? Como as pessoas lhe vêm em relação ao seu trabalho, seus colegas, familiares? Se pudesse escolher novamente, escolheria estar nesse lugar? Seu trabalho esquenta o seu coração de alegria ou de raiva e desgosto? Como o meu trabalho contribui para a vida das pessoas e como esse valor social me faz sentir a respeito do que faço?
Infelizmente, para muitas pessoas, o ambiente é tão hostil e ameaçador que influencia na percepção de que não existe outra possibilidade além daquele lugar, e a esperança de poder escolher por uma vida mais digna sucumbe diante do medo do desemprego.
A ideia de sucesso e meritocracia pode estabelecer uma armadilha poderosa, que obscurece o jogo engenhoso que se esconde por trás da relação trabalho e poder e que, muitas vezes, torna aquele que se acha o dono do próprio negócio refém de uma ideia inalcançável de sucesso que lhe subtrai a saúde, a alegria e a esperança.
Sempre vale a pena lembrar da frase do campo de concentração em Auschwitz “Arbeit macht frei” – O trabalho liberta –, uma grande ilusão utilizada a serviço do massacre de milhares e que mostra as armadilhas discursivas que podem conter as ilusões. Quais as frases ditas hoje de forma mágica sobre o trabalho ou o enriquecimento que são ilusões?
Que o trabalho seja realmente o que nos liberta da opressão, da exploração de uns sobre os outros, que nos permita sonhar com uma vida digna onde a nossa humanidade se realize e desenvolva naquilo que oferecemos uns aos outros em solidariedade, respeito, cuidado, confiança, pleno desenvolvimento de quem somos e do que podemos construir para uma vida melhor, mais digna e justa.
Que o que fazemos enquanto intervenção sobre o mundo, sobre nós e sobre os outros, nos ajude a nos olhar cotidianamente com respeito e admiração pelo que nos tornamos.