O que você precisa para gostar de você?

Ser capaz de construir um lugar dentro de si, onde os tantos que amo e amei me habitam e que estarão em mim, é processo longo e complexo

Legenda: A construção da relação consigo, com os outros e com o mundo será marcada por miragens, desejos, que podem tornar a pertença de si, uma colcha de retalhos esgarçados
Foto: Pexels

Construir uma relação de pertença e conforto com quem somos é tarefa de uma vida toda, continuamente afetada pelas fantasias que perpassam nossa história. Nascemos desamparados e precisamos fazer o olho de quem irá cuidar de nós brilhar. Somente encantados pelo olhar do outro, receberemos os cuidados necessários para sobreviver.

Entretanto, tal encantamento só acontecerá pela ótica da miragem e da ilusão: de que iremos oferecer ao outro aquilo que ele deseja. No início, a simbiose de sermos um só, garante a ilusão onipotente e a sobrevivência.

Os olhos brilham, poderemos realizar todos os desejos que esperam de nós, seremos capazes de tudo e vivemos a sensação de sermos atendidos em tudo que desejamos, até que seremos surpreendidos pela sensação dolorosa do princípio da realidade: não somos perfeitos, nem completos, nem onipotentes, algo nos falta e existem limites, leis e regras para o que desejamos.

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A descoberta é simultaneamente necessária e dolorosa. Retirar as fantasias onipotentes do outro de dentro de mim, construir minha autonomia, a autoria de minha voz e perceber que o outro não sou eu e que muitas vezes não farei o olho de quem desejo que me ame brilhar, é doloroso.

Além disso, poder conviver com as diferenças, percebendo que existem outras formas de ser, de pensar, que não conseguirei dar conta de tudo que quero e que isso me trará tristeza e decepção com as idealizações que construo sobre mim e os outros é limite que ajuda tanto a empoderar o sonho como pode ampliar culpas e vergonhas.

Ser capaz de construir um lugar dentro de si, onde os tantos que amo e amei me habitam e que estarão em mim, respeitando a diferença do que sou em relação a eles, cuidando, apoiando e protegendo, sem me atacar por dentro, é processo longo e complexo que necessita da construção do amor na sua capacidade de se ver diferente, de ser sujeito, e ser respeitado nessa diferença e limites, abrindo mão da fantasia de me misturar no outro e ser uma coisa só, indiferenciada.

Porque o risco é esse: ser uma coisa nas mãos de outros que moldam o que quiserem, não um sujeito. E crescer tem dores e delícias.

A construção da relação consigo, com os outros e com o mundo será marcada por miragens, desejos, que podem tornar a pertença de si, uma colcha de retalhos esgarçados. Alienados, muitas vezes em culpa e inseguranças diante do medo de questionar, desafiar ou sustentar a diferença de ser ou pensar diante do outro, que pode estar na família, no trabalho, na escola, nas redes sociais, em diversas instituições da cidade e em outros lugares do mundo, submergimos às falas de diferentes discursos que necessitam da submissão e do silêncio da simbiose, que omite o pensar e o sentir para receber as migalhas de afeto artificial.

Reféns, ficamos à espreita de quem irá distribuir as migalhas para compor a imagem de si, vazia de um sujeito. Quando dizem que serei amado por consumir algo, acredito; se dizem que preciso ser isso ou aquilo para ser respeitado, atuo diante da composição desse papel; se ameaçam caso não siga determinados preceitos, silencio qualquer discordância que habita em mim.

Encantado, com os olhos brilhando diante do outro tão poderoso que me submete com suas regras de pensar, sentir e agir e diante de quem tremo de medo pelo pavor de ser retirado da sua proteção, revivo a sensação infantil de estar nos braços de alguém e ser possuidor de beleza e poder.

Entretanto, o encanto é do outro, o poder é do outro, a pertença simbiótica no que o outro possui, só é possível, com o preço alto da inexistência de si e do amor próprio. Até porque, o poder que o outro tem, é uma ilusão. O outro também é frágil, mortal, desamparado. E o poder, que é construído nas relações, torna-se acrítico, pois parece ser natural do outro.

O que desejo que o outro deseje em mim, o que preciso para tomar posse de quem sou? O que ganho permitindo que o outro me defina? O que preciso para gostar de mim e o preço que pago com meu corpo e alma para a ilusão de amor e respeito, por um outro ou pelo grupo, que na verdade não me abastece de senso de identidade e conforto, mas que enriquece apenas o outro?

Quais as armadilhas que coloquei para não acreditar na possibilidade de minha libertação? Como me submeto a lideranças que em diferentes contextos usam o ódio, o embrutecimento, o medo, o poder, e a ilusão para adormecer e manipular o desejo de existir e ser amado que me habita? Qual frágil é o meu olhar diante do que me sustenta, que tão facilmente me deixa em dúvida sobre o que me habita e me constitui?

 

Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.