A difícil arte de falar

O medo de magoar, as fantasias decorrentes de uma educação para o silêncio e submissão podem construir ideias de que ao confrontar alguém a quem amo, perderei o amor daquela pessoa

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As palavras revestem quem somos como mapas de memórias, feito uma pele psíquica, que guarda a verdade do que nos constitui. Em nossas palavras podemos dar voz a muitos. Quando somos capazes de traduzir o interno em símbolos, o mundo se amplia, podemos dar contorno ao sentido e compreensões ao que acontece conosco. Fazer-se entender, partilhar o que vemos com os outros é uma construção que leva tempo para que o outro saiba dos dicionários e gramáticas que nos formam.

Comunicamos através de palavras, silêncios, gestos, desenhos. Escrevemos verdades por linhas tortas e entortamos verdades para nos proteger. A linguagem é testemunha de onde viemos, dos nossos ancestrais, das expectativas, idealizações que nos cobram ou nos abraçam em comemoração; de forma que muitos falam através de nós e somos capazes de reagir a certas falas, pelas memórias daquilo que elas evocam. 

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Ser capaz de ouvir e acolher o que nos dizem e de expressar o que desejamos a fim de estabelecer uma conversa saudável, não é fácil. Palavras nos habitam antes mesmo de proferí-las. Falam por nós, desejam por nós e sermos capazes de nos desembaraçar para construir nossa narrativa é tarefa da vida toda.

Aquilo que desejo falar e que entretanto é mais difícil, envolve emoções intrincadas em mim; as quais muitas vezes podem ser potencializadas na conversa com o outro e produzirem sustos e medos, transpostos em raiva pela visão daquilo que não desejamos lidar.

Nossas falas envolvem nossa história, nossa identidade, nosso percurso para autonomia, desejo e capacidade de lidar com a alteridade e podem ajudar a confirmar quem somos, ou nos lançar no silêncio e invisibilidade diante do outro. As nossas palavras carregam o diálogo com o mundo interno e colocar em palavras o que nos habita, não é fácil. Até porque muitas vezes, saem palavras que me assustam, surpreendem e me confrontam com o que não quero enxergar em mim nem no outro.

Os registros de comunicações familiares rígidas,autoritárias, podem fazer com que utilizemos as palavras para dominar ou magoar porque é assim que elas representam para nós: exercício de poder e manipulação e não de aproximação ou amorosidade empática, inclusive conosco.

Muitas vezes, guardamos mágoas bem nutridas pelo tempo e pelos desgastes das relações, e despejamos tudo intensamente devido ao transbordamento de uma gota de palavra.

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Algumas vezes, não expressamos o que realmente desejamos para o outro e esperamos uma adivinhação, como se fosse essa a chancela do quão somos amados ou desejados. Esperamos que o outro saiba o que se passa conosco, sem precisarmos dizer, repetindo o contexto inicial de vida, quando as mães sabem do que os bebês precisam, porque se comunicam de forma simbiótica com este.

Ao não expressarmos o que desejamos, porque não sabemos como fazê-lo, porque temos receio ou porque nem sabemos o que desejamos, os abismos de comunicação vão fragilizando as relações que escoam pelo silêncio e distanciamento.

O medo de magoar, as fantasias decorrentes de uma educação para o silêncio e submissão podem construir ideias de que ao confrontar alguém a quem amo, perderei o amor daquela pessoa. E nisso, torna-se preferível causar danos a si, que arriscar a perda do afeto do outro.

O silêncio que arranha o amor próprio e a sensação de não conseguir existir sem o outro (decorrente de outros relacionamentos adoecidos ao longo da vida e das vozes que me criticam internamente), pode favorecer relações de apagamento de si, em nome de uma pretensa necessidade de proteção que não considero possível de obter com os próprios recursos e me oferecer cuidado e abrigo ,pois ao silenciar a própria voz, vai-se desvanecendo a confiança e a autoria da própria vida. Criando uma confusão entre as palavras amor e submissão.

E quando palavras se distorcem e misturam sem a proteção do cuidado, verdades manipuladas podem nos confundir e narrar nossas vidas em roteiros de dor e sofrimento.

É importante que consigamos dizer o que nos incomoda a quem confiamos ou a quem desejamos construir laços mais duradouros. É preciso que aprendamos a ouvir o que está por trás do que nos dizem, que aprendamos a silenciar para acolher, e a gritar quando é necessário afirmação existencial.

Muitas vezes, já vamos nos defendendo, quando minimamente ouvimos algo que nos desagrada e nem continuamos a ouvir, porque passamos a dar mais importância a nos defender do que a compreender o que o outro deseja nos falar; como se a fala do outro não pudesse der do outro, como se não tolerássemos a individualidade e diferença e passamos a nos ouvir respondendo em vez de acolher a fala do outro dentro de mim.

Quando o outro fala, apresenta outras visões de mundo, que podem me espantar e fazer com que me defenda, porque as palavras podem questionar a verdade de quem somos e assustadoramente nos apontar outras existências possíveis, mas aí precisaria coragem. Nesse caso é preferível o conforto das palavras conhecidas que repetimos, para nos acomodar em covardia pelas palavras que não ousamos dizer e desejar.

Outrossim, guardamos tantas coisas a dizer, que quando chega a hora de falar explodimos, e já iniciamos agredindo, julgando, atacando o outro, e o que precisa ser dito, se perde no meio da raiva. E a raiva é solvente poderoso que desfaz medo e frustração e aglutina em ódio.

Seria valioso se aprendêssemos a falar partindo do que sentimos, consultando nosso mundo interno, identificando quais afetos e ideias nos movem; talvez em vez de começar atacando ao "Você", falássemos de como "eu" me senti em determinada situação. Em vez de dizer "você não me ama", pudéssemos falar do "eu não me sinto amada" e de forma tranquila expor as situações em que isso acontece e responsabilizar-se pelo que seu também permite que isso aconteça.

Muitas vezes, ao olharmos calmamente o que queremos dizer, o que acontece ao redor, contextualizando e identificando elementos que não víamos, percebemos infelizmente, só depois de ter sido dito, que dizemos com frequência, o contrário do que queríamos e que podemos ter ouvido o que o outro não disse, e sim, as vozes de nossas fantasias e monstros.

Enviamos símbolos e mensagens equivocadas, expressamos excesso de intimidade com quem não temos, falamos demais com quem não devíamos e pouco com os que são verdadeiramente significativos. Não respondemos mensagens com calma, e não respondemos mensagens importantes por covardia ou desrespeito.

Podemos estar atentos a pedir retorno do que falamos para nos certificarmos de que fomos compreendidos; identificar qual o melhor horário e local pada aquela conversa; perceber que mensagens importantes precisam de calma para serem processadas; será que aquela pessoa está em um momento emocional adequado para receber aquela mensagem?

Utilizo frases de duplo sentido? Uso de brincadeiras para expressar minha agressividade de forma indireta e dizer coisas que me incomodam mas que não chegam da forma adequada? Quais as palavras que me assustam? Quais os assuntos que precisaria falar e silenciam em mim, transformando os buracos internos em alvos na fala do outro?

É muito difícil perguntar, pelo receio do que pode ser ouvido em resposta, e para evitar o confronto com a própria verdade. Falar, ouvir, ouvir-se, pode nos deparar com o desconhecido ou com o familiar que não queríamos saber.

Inúmeras vezes a educação para o silenciamento, para um pensamento uniforme, para uma estreiteza na relação consigo, que desqualifica emoções, dificulta a capacidade de um desenvolvimento que nos abrace integralmente. A importância de se comunicar e alimentar o mundo interno é crucial para nos abastecermos do outro e do mundo. As palavras colocam o mundo em nós e permitem que o mundo se amplie dialeticamente com o que dizemos.

Quando falamos podemos alimentar o melhor de alguém, podemos ser fonte de delicadezas ou crueldades. Palavras podem machucar, criar, ampliar ou humilhar. Palavras podem ser armas de destruição ou sabedoria para reinventar o mundo.

Entretanto, quando as palavras se perdem na superfície de uma vida sem densidade, elas ficam vazias, feito a vida de quem não pensa sobre o que tem para dizer e só repete as falas sem alma e com a mentira dos outros.