Pessoas que sofrem estupro não são criminosas

Para as meninas, uma marca desta violência, pode perdurar ainda mais tempo no corpo devido a uma gravidez

Legenda: As situações de estupro causam danos terríveis
Foto: Shutterstock

O Projeto de Lei 1904/24 equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio. No Brasil, o aborto é permitido quando a gravidez é decorrente de estupro, quando o feto apresenta anencefalia, ou quando a gravidez apresenta risco de vida à gestante.

Mesmo quando diante da procura para realizar o aborto permitido por lei, para as mulheres, nunca é tão fácil; muitos profissionais se negam a fazê-lo, nem sempre existe a estrutura física e profissional adequadas, geralmente mulheres são alvo de novas violências físicas ou simbólicas questionando o seu ato, o que amplia o lugar de sofrimento e dor de quem oscila entre o lugar de vítima e algoz do seu próprio martírio.

Retirar do lugar de vítima, quem assim o é e que necessitará de todo um amparo de políticas públicas para se tornar uma sobrevivente, e querer torná-la ré, é não ter o menor conhecimento de quão fundo uma violência penetra em um sujeito.

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Ao equiparar aborto legal a homicídio e estipular uma pena de 20 anos, maior que a de 10 anos para os casos de estupro, o Legislativo parece querer enviar uma mensagem de que não se interessa pelas mulheres. Se o argumento é a defesa da vida, são invisíveis os sofrimentos das crianças, adolescentes e mulheres grávidas vivas? Porque a vida de uma mulher grávida por estupro fica em risco devido às terríveis consequências emocionais. Qual a vida a ser protegida?

Há interesse mesmo em proteger a vida? Qual o orçamento destinado à saúde mental, às políticas públicas para mulheres, para garantia de uma vida com dignidade e justiça social? Se o masculino fosse definido pela capacidade de cuidar e fazer feliz a uma mulher, precisaríamos repensar muito sobre gênero nesse país. 

As situações de estupro causam danos terríveis. Além da falta de uma rede que consiga oferecer apoio e proteção efetivos, com as garantias e cuidados necessários, existem os entraves emocionais complexos e profundos. Na maioria dos casos, os estupradores são da família, ou pessoas próximas ao círculo familiar.

A confusão na cabeça da vítima é imensa, porque oscila entre vergonha, culpa, solidão medos,  desamparo e fantasias das mais destrutivas e assustadoras;  sendo muita vezes ameaçada pela própria família caso venha a fazer a denúncia. O silêncio que marca as violências,  lembra que é o corpo feminino o depósito da hipocrisia dos violentadores, que geralmente levantam a bandeira do patriarcado e do conservadorismo enquanto manto protetor. 

Conforme indicadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram notificados 58.820 casos de estupros de meninos e meninas em todo o país. Para as meninas, uma marca desta violência, pode perdurar ainda mais tempo no corpo devido a uma gravidez.

Diariamente, supervisionando casos atendidos no Serviço de Psicologia Aplicada, do Curso de Psicologia da Uece, acompanhamos os efeitos devastadores de violências sexuais: depressão, tentativa de suicídio, uso abusivo de álcool e/ou outras drogas, dificuldades em estabelecer confiança, em relacionar-se intimamente, efeitos sobre a autoestima,  na relação com o corpo, interferências no rendimento escolar, autoboicotes, efeitos sobre o desenvolvimento biopsicosocial, arrastando culpas e destrutividades decorrentes de um corpo, muitas vezes ainda em desenvolvimento, construindo seu primeiros referenciais de amor e limites que é invadido pelo agressor confundindo violência e afeto em uma amarra que leva muito para ser desfeita. Pois muito da manipulação decorrente do estupro passa pela chantagem afetiva dos estupradores,  construindo uma armadilha mental na vitima, que leva tempo para desarmar. 

O tempo que se leva para poder trabalhar os efeitos de um estupro e pensar sobre o que se deseja fazer diante disso, infelizmente não pode ser definido por nenhuma lei. Além do tempo psíquico para lidar com tudo isso, ainda tem os entraves legais a ser percorrido. Torna-se ainda mais bárbaro esse projeto, e o adjetivo é esse, porque a barbárie é aquilo que antecede à lei e diante da qual, enquanto civilização produzimos cultura para nos proteger.

Quando o espaço da lei que deveria proteger e destinar recursos para cuidar dos que precisam de apoio profissional e fomentar projetos de prevenção à violência, e em vez disso, violenta o desenvolvimento de crianças, adolescentes e de mulheres que precisam do amparo da lei para cuidarem de si, estamos no campo selvagem da humanidade.