Na parada do ônibus, com o corpo marcado pelos dias difíceis, uma mãe aguarda o ônibus com seu filho. O pequeno aparenta ter uns 3 anos e espera em pé, abraçado nas pernas da mãe, de costas para o mundo, porque seu mundo está ali.
A mulher leva na mão um saco de supermercado que lhe serve como bolsa. Diante do sol inclemente, a criança começa a ficar impaciente e irritada, a mãe oferece água, ele toma e fica olhando tentando adivinhar pelo que esperar pelo olho da mãe; volta a ficar inquieto e começa a procurar um lugar no chão para sentar. A mãe explica que o chão está sujo e junta os seus dois pés para que a criança use como apoio.
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A criança senta na cadeira-mãe, nos pés que conduzem o mundo dos dois, e recosta nas pernas firmes para esperar. A mãe procura na sacola um papel para cobrir a cabeça do filho do sol, que assim, protegido, espera. O menino que estava triste, impaciente, cansado, quando sentou, começou a brincar com as mãos fazendo bichinhos de sombra no chão e olhava para a mãe e sorria, talvez maravilhado pela proteção do banco-pele que só a ele pertence.
Fiquei pensando em quantas vezes essa mãe deve ter se sentido exausta, incapaz de atender a tantas demandas ou discursos sobre como ela teria que ser ou fazer para ser uma boa mãe, de quantas vezes deve ter se sentido impotente, desejando querer proteger o filho e oferecer acesso a coisas impossíveis, pelas limitações estruturais do desamparo público. Pensei que ela poderia estar muito bem e tudo isso ser somente uma projeção do meu próprio desamparo caso estivesse nessa situação.
Fiquei pensando se essa mãe recebeu pés para sentar nos dias de sol, de espera, se teve pernas de algum adulto para proteger suas costas, para abraçar diante do medo e da angústia. Se essa mãe possui espaço para ser mulher, para ser filha, se esse corpo também encontra abraços e lugar para descansar.
Pensei se o corpo da mãe recebe um salário cuidadoso e um ambiente de trabalho protetivo, se os vizinhos a acolhem. Em como é refinado, delicado e complexo perceber o que o outro precisa e criar na própria pele o aconchego, a proteção e o acalanto. Fiquei pensando nessa criança que começa a brincar quando cuidada e de como o cuidar é revolucionário. Essa quebra na dureza da realidade produz alegria. A alegria de não ser só.
Para cuidar preciso ver o outro, preciso de tempo e de conexões emocionais. Essas conexões proporcionarão vínculos que alimentam a sensação de existir, ser visto e poder continuar a ser, o que constrói esperança, confiança e criatividade. A revolução que o cuidado opera é que permite a alguém desejar. E pessoas que desejam, podem existir, sustentar as mudanças, criar, desafiar, intervir sobre o mundo, criar com as mãos e a luz do sol, expressar o choro, não calar a boca porque acreditam que podem pedir, dizer, reivindicar. É deixar de ser invisível e silenciado.
O cuidado é revolucionário porque é o que sustenta a vida, a resistência, a rebeldia, o desejo, a diversidade. A maior revolução é poder estar confortável com quem se é e nesse habitar de si, poder estar com os outros eticamente, perceber o mundo, sustentar movimentos de mudanças internas e externas.
A negação do vivido implode a existência. A invisibilidade, o silêncio, nos esvazia. Quando o que precisamos não encontra olhos que percebam, quando o cansaço, o desamparo ficam sem chão para cuidar, nos perdemos, nos desesperamos no calor do abandono que derrete a alma. Quando o que esperamos nunca chega e a espera é penosa e solitária, o cansaço pode atropelar o sonho.
Quando somos cuidados, protegidos, amados, algo de importante passa a nos habitar. Se pequenos gestos de delicadeza produzem grandes efeitos, imagine experiências contínuas, consistentes, nas relações, nas famílias, nas escolas, nos espaços sociais, através do poder público, nos espaços de trabalho, em que fôssemos vistos, ouvidos, respeitados, atendidos, valorizados. Quantas coisas deliciosas poderíamos sentir, criar, viver e ser.