Para onde você vai?

Estamos velozes e raivosos, conosco, com os outros e com o mundo

Legenda: Corremos contra nós mesmos, movidos por identificações cruéis à autoexploracao e violências inimagináveis
Foto: Pexels

A rapidez, marca característica do nosso contexto, apontada por tantos pensadores geniais como Ítalo Calvino, no seu "Desafios para o próximo milenio", Norbert Elias, Zygmunt Bauman, ou expressa em sua fase menos poética e mais brutal como no filme Velozes e Furiosos; o qual revela a articulação econômica dessa dinâmica e se apresenta como uma grande metáfora da subjetividade contemporânea, é um aspecto relevante para pensar a saúde mental, posto que somos forjados pelo espaço e tempo. Velozes, raivosos, consigo, com os outros, com o mundo. Corríamos, vivenciamos uma pandemia, paramos; voltamos a correr como se nada houvesse acontecido.

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Corremos para trabalhos muitas vezes sem sentido e que aviltam a dignidade humana;  corremos contra nós mesmos, movidos por identificações cruéis à autoexploracao e violências inimagináveis;  corremos para nos atualizar em redes sociais carentes de sociabilidade;  corremos para encontrar pessoas que não nos ampliam a alma; corremos para anestesiar sentidos para poder correr mais sem sentir tanto.

Corremos para fugir de nós;  corremos para tentar alcançar a velocidade dos basiliscos e ficar na superficialidade da vida, acreditando que o mergulho seria mais doloroso; e que na fragilidade dos vínculos ilusoriamente nos protegemos da dor do amor e do abandono; corremos para chegar exaustos e não pensar; corremos porque a vida parece que está sempre em outro ritmo que nunca conseguimos alcançar.

Até porque de tanto correr não sabemos mesmo o ritmo dos nossos passos, perdemos o compasso do conforto com quem somos, alienamos o corpo ao desejo de um tempo e  espaço onde parece que não cabemos se formos quem somos. Corremos e não vemos os corpos cansados pelo caminho, não vemos os abandonos, as omissões, as precariedades dos cuidados;  não vemos a nossa história em câmera lenta, para olhar os detalhes das marcas do que nos constitui.

Não vemos os rostos dos que nos mandam correr enquanto passeiam lentamente usufruindo do tempo que lhes permitimos às custas do nosso cansaço; não vemos a dissimulação dos jogos de poder e das narrativas de manipulação; não vemos o que precisamos ver;  não vemos o rótulo das coisas tóxicas, internas e externas. Corremos para não sermos impactados pela arte; para consumir ideias práticas e embaladas previamente para consumo que não causem desconforto ou reflexões diante da complexidade do mundo.

Corremos para ficar com o simples, o básico,  o que já pensaram por nós, decidiram por nós; corremos para não ver os que estão vivendo nas ruas e para não ter tempo para pensar sobre o porquê de estarem nas ruas. Corremos e atropelamos a vida, o ecossistema, que ao mudar de ritmo, pela imposição brutal da violência,  devolve em morte o que era vida. Correndo, a paisagem logo muda, tudo vira passado, tudo se perde rapidamente na memória e na atenção. Correndo atropelamos a história,  congelamos experiências traumáticas e vivemos apenas os espasmos de quando essas memórias nos assaltam no meio da corrida.

Corremos, velozes, raivosos para bater a marca, para chegar em primeiro, para eliminar inimigos imaginários, para ser campeão,  para ganhar a medalha, para subir no podium das Ilusões e confraternizar com o reflexo narcísico da solidão e do vazio.