Os lutos e as perdas que moram em nós

Enquanto seres em desenvolvimento, estamos constantemente lidando com perdas e recomposições daquilo que perdemos, dentro da gente.

Legenda: Lidar com as perdas dói absurdamente. Despedir, nunca mais ver, perdoar, perdoar-se, assimilar. O luto é um trabalho psíquico demorado, refinado, delicado, uma dança entre o que vai e o que fica.
Foto: Ilustração: Lincoln Souza

Não existe sujeito que não tenha experimentado perdas e consequentemente precisado elaborar lutos. Perdas e lutos nos constituem e fazem parte de processos de mudança, crescimento e desenvolvimento. Perdemos imagens idealizadas de nós mesmos, perdemos o corpo infantil, desalienamos do desejo dos pais, perdemos a onipotência da simbiose com a mãe, perdemos entes queridos, partes do corpo, perdemos a imediaticidade do vivido, perdemos bens materiais, empregos.

Existem perdas esperadas e que fazem parte de processos de desenvolvimento e de percursos sociais: mudanças corporais na adolescência, aposentadoria, saída dos filhos das casas dos pais. Entretanto, mesmo esperadas, são complexas e precisaremos de tempo, trabalho psíquico, cuidado e ajuda para absorvê-las.  As perdas abruptas são ainda mais exigentes: orfandade pela Covid, perdas da pandemia, acidentes, amputações, doenças, cirurgias, desemprego, enchentes, violências, traições, mortes de entes queridos, perdas de ideais, visões de mundo e projeto de vida.

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Além disso, nem sempre temos clareza do que perdemos e pelo que choramos, pois as perdas também possuem imenso enlace com as fantasias e se conectam umas com as outras; ou seja, uma perda atual pode reativar perdas passadas de coisas entrelaçadas pela memória. Também somos pegos de surpresa porque coisas que podem parecer simples, possuem conexões inconscientes e revelam que perdas podem arrastar partes de quem somos, devido à nossa relação de amor com o que perdemos.

Pois quando amamos algo, nos identificamos com partes desse objeto amado (objeto em psicanálise pode ser qualquer coisa que recebe investimento afetivo, pode ser uma ideia, um objeto material, pessoas), e esse objeto se torna parte de quem somos. Por isso, diante de algumas perdas, podemos sentir uma espécie de esvaziamento de nós mesmos e quase uma hemorragia emocional diante da identificação com o que foi perdido.

Enquanto seres em desenvolvimento, estamos constantemente lidando com perdas e recomposições daquilo que perdemos, dentro da gente. Tentando encontrar um lugar para equilibrar tristeza, dor, memória e conforto para seguir, guardando o que foi bom, daquilo que deixa saudade e foi perdido (e se deixa saudade é porque algo de bom foi vivido), para ser transformado e alimentar a esperança de viver novas coisas.

Enquanto processo necessário ao desenvolvimento humano, construímos a capacidade de desenvolver memória e representações diante da perda do que está sendo experimentado, pois o que não está mais presente, será transformado em memória, ideias, palavras e constrói a base da criatividade e da função simbólica. Esta, inclusive, é uma das valiosas funções da arte: poder ressignificar, transformar o difícil do vivido em outra coisa, transformar perdas em reinvenções, poder destruir e recompor. Inúmeras poesias, pinturas, obras literárias, peças, músicas, são construções diante da tristeza da perda. 

Lidar com as perdas dói absurdamente. Despedir, nunca mais ver, perdoar, perdoar-se, assimilar. O luto é um trabalho psíquico demorado, refinado, delicado, uma dança entre o que vai e o que fica. Quando a dor pode ser chorada, lamentada, acolhida, gritada, falada, elaborada, recriada, torna-se possível guardar o que fica de bom e conviver com a memória protetiva e amorosa do que permanece daquilo que se foi. Assim, a dor deixa de ser abissal e avassaladora, para se tornar uma saudade que nos lembra do valioso que tivemos e vivemos e nos ajuda a seguir. E graças ao luto elaborado guardamos em nós memórias de amores, amizades, projetos, sonhos, corpo, que embora possam não mais existir, embalam esperança. 

As dores irão ter impactos diferentes dependendo da idade, do momento da vida em que as perdas acontecem, do tempo que teremos para elaborar, da forma como ocorrem, da rede de apoio que nos sustenta e dos recursos internos para transformar o vivido. Silêncio, vergonha, culpa, emoções reprimidas que não puderam ser expressas, lutos que não puderam ser elaborados, perdas que não puderam ser reescritas e revisitadas, em suas deformações de memória que impactam culpas; violências que não foram denunciadas, podem deixar marcas por uma vida toda.

Podemos pensar que falar sobre isso irá machucar e que é melhor silenciar, anestesiar. Entretanto, as dores não são esquecidas,   passam a habitar espaços diferentes e produzindo dores de outras formas, inclusive físicas. Quando uma dor é escutada por alguém com competência para isso, ela será não somente ouvida, mas cuidada. 

Quantas dores um silêncio guarda? Se a dor da perda não puder ser transformada, blindagens emocionais podem ser construídas, gerando dificuldades de envolvimento, intimidade, alimentando atitudes que podem oscilar entre agressividade e apatia. Guardamos em uma parte do que somos, os registros de amor do que foi importante em nossas vidas.

A memória desses objetos, físicos e imateriais (pessoas, ideias, experiências) passam, enquanto registro de memória, a constituir um pouco de quem somos. Guardamos em nós professores, amigos, amores, familiares, e tantos outros que, perdidos fora, viverão para sempre dentro. As emoções, geralmente ambivalentes, dirigidas ao que perdemos,   na ausência daquele, passam a se dirigir a essa memória, que agora nos habita. Quando não há espaço nem tempo para falar, pensar, elaborar, partilhar esses lutos, podemos atacar em nós o que resta desses objetos. 

Elizabeth kübler-Ross, uma grande estudiosa dos processos de luto, identificou algumas fases que atravessam esse percurso: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Quando perdemos algo, quando recebemos uma notícia ruim, o nosso aparelho psíquico utiliza alguns mecanismos de defesa para nos proteger da intensidade da dor; a negação é um desses mecanismos e consiste em atitudes como: aguardar o retorno de uma pessoa que faleceu, se recusar a modificar o quarto, a tomar providências que confirmam aquela perda; se negar a realizar exames diante de um diagnóstico de uma doença; acreditar por exemplo, que mesmo após o divórcio assinado e inúmeras violências o parceiro ou parceira irá retomar a relação e mudar; recusar ajuda profissional diante de um problema de saúde mental que não aceito; deformar verdades que me contrariam, construir "fake news" para modificar fatos que me deparam com verdades que não quero aceitar, porque implicaria em mudanças em quem sou; relaciona-se também com as mentiras que contamos para não saber quem somos.

A raiva, que mobiliza respostas impulsivas de descarga diante da impotência das perdas e frustrações. É comum vermos pessoas jogando aparelhos no chão quando eles não funcionam como desejam; esbravejando quando recebem uma notícia diferente da que desejavam; agredindo pessoas que não se submetem ao seu controle e desejos. A barganha é a tentativa de reverter a perda através do uso de negociações mágicas.

As pessoas podem apelar para a Espiritualidade ou tentar recursos diversos para obter aquilo que foi perdido. Diante da impossibilidade de reversão da perda, apesar de todas as tentativas de negociações possíveis, a confrontação com o irreversível nos coloca diante da impotência em recuperar o que foi perdido e da dor que isso causa.

A depressão, nesse momento, é um processo saudável de necessidade de elaborar o luto e reposicionar internamente aquilo que foi perdido. Por isso que diante de tantos lutos que acontecem na adolescência, por exemplo, processos depressivos são comuns. Importante ressaltar que essa depressão não é necessariamente um processo patológico depressivo, mas faz parte do luto um movimento de retirada de investimento externos para que o sujeito se concentre mais no seu mundo interno, um processo de recolhimento para a elaboração da perda.

E caso encontre ajuda, e possa construir recursos para pensar sobre o que foi perdido e elaborá-lo, esse luto pode levar a uma aceitação que permite ao sujeito voltar a investir no mundo e guardar em si as experiências do que foi perdido. Entretanto, se os lutos não puderem ser sentidos, vividos, compreendidos, narrados, partilhamos, cuidados, processos depressivos, ansiedade, uso abusivo de álcool ou outras drogas podem ser alguns dos efeitos. Além disso, podem deflagrar lutos longos e que podem se manifestar em pessoas intolerantes a dores emocionais, perdas, e consequentemente, com pouca flexibilidade emocional para falar ou pensar sobre o vivido nas relações. 

Contudo, graças ao luto elaborado, guardamos em nós memórias de amores, amizades, projetos, sonhos, imagem de corpo, experiências, que embora possam não mais existir, embalam esperança e desejo, pois mesmo sabendo que as perdas doem, não deixamos de nos entregar à emoção e ao risco de se envolver com a vida.

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