As Olimpíadas de cada um e de todos

Legenda: A judoca Beatriz Souza conquistou a primeira medalha de ouro do Brasil nas Olimpíadas 2024
Foto: Jack GUEZ / AFP

Os jogos Olímpicos conseguem feitos que poucos eventos reúnem. A reunião de 203 países e mais de 10 mil atletas em torno de um evento é algo que nos faz pensar. Ao longo da história, as trajetórias de conquista, superação, disputas, sempre fizeram parte da experiência humana, e o esporte já foi utilizado para resolver desde disputas políticas, territoriais, alianças de poder, quanto desafios existenciais, pois expressa tanto uma conexão profunda com nossa humanidade quanto uma relação com o divino e o transcendental.

O mito do herói encontra, no esporte, uma de suas mais expressivas manifestações e permeia o imaginário produzindo identificações e consequentemente cobranças e desconfortos. Desejamos tanto que alguém alcance a perfeição, como nos movemos entre raiva e decepção quando alguém nos confronta com o próprio limite e o nosso, por identificação.

Nesse percurso, observamos que, na verdade, ninguém conquista nada sem uma equipe, sem estrutura, sem apoio de políticas públicas, estrutura para treinamento, condições de construir disciplina e aperfeiçoar técnica; que, embora todos tenhamos desafios e jornadas singulares existenciais, existem processos coletivos que são parceiros e fundamentais para nossas conquistas.

São anos de trabalho para aperfeiçoar um movimento. São percursos longos para desafiar a si, que nos lembram a trajetória complexa para construir um atleta e para nos tornarmos sujeitos na vida.

É um evento para comemorar a diversidade, a riqueza cultural, a arte, o encontro, a possibilidade de resolver disputas de outra forma, que não a violência. A importância do apoio e suporte, do Estado, da família, dos amigos de equipe, da torcida, de uma equipe técnica; para nos lembrar que, embora possa até parecer individual, todo percurso envolve uma aldeia.

Lembramos a importância dos rituais e das regras e observamos o que se mantém e o que se modifica, em belas lições sobre estrutura e movimento, pessoais e sociais. Os Jogos Olímpicos, que surgem na Grécia, berço da democracia, de um pensamento crítico, filosófico ocidental valioso; literário, mitológico, nos lembra na França o valor da liberdade, igualdade e fraternidade. Tão difíceis de serem vividos no cotidiano e tão paradoxais diante do cenário político mundial.

No alto da Torre Eiffel, a música cantada por Céline Dion, que trava uma jornada pessoal de enfrentamento à síndrome da pessoa rígida, o Hino ao Amor de Edith Piaf, nos lembra que “Deus reúne os que se amam”, torna a estrutura metálica pulsante e nos lembra como a arte é valiosa para seguir e lidar com as dores e nos eleva para um lugar além da matéria. A Torre Eiffel, tomada por aquele canto forte e vibrante, parecia não de ferro, mas de pele pulsante.

Sobre os corpos incidem estruturas, subjetividades, linguagens, marcas, trajetórias, fantasias, desejos, cultura e história. As marcas do patriarcado e do racismo nos corpos revelam que a fraternidade, liberdade e igualdade ainda é utopia para muitos de forma coletiva e individual.

Assistimos à insurgência dos corpos e sua potência. Corpos que dançam,voam, que transgridem, que tensionam, que impulsionam, que transbordam emoção, que se alegram, que têm dúvidas, que ficam ansiosos, que condensam em segundos anos de dedicação, que revelam as marcas das histórias coletivas e individuais. Corpos jovens, corpos de mães, de pais, de diversas raças, orientações religiosas e sexuais, que ousaram questionar o não, que nos enlaçam em pertença e diversidade.

Que trazem a singularidade da pele, da cor, da importância do acolher diante das frustrações, que nos ensinam que a fronteira entre o sublime e a decepção é tênue. Que a espera necessita de sabedoria e coragem. Que existem formas de competir que são saudáveis, que não envolvem exploração e opressão. Que em um único corpo reúnem-se os corpos de milhões de um país ou de uma raça.

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Quantos se sentem ganhando medalha com os que ganham medalha? Quanta representatividade um corpo pode sustentar em um pódio? Quanta mensagem um corpo que não se subordina ajuda a erguer outros corpos para a insubmissão e a exigência de respeito e visibilidade?

Os jogos nos ensinam o valor da solidariedade e da possibilidade do inesperado e do improvável, que, ao desafiar estatísticas, nos envolve em esperança. Também revela a face dolorosa dos limites do corpo e a realidade que pode se impor de forma inconteste ao que desejamos.

Todos nós, sem medalha ou visibilidade, temos os nossos dias de decisão, de perdas, de conquistas e derrotas, de finais. Todos temos sonhos que acalentamos por anos, que trabalhamos arduamente. Qual sua melhor marca, qual sua medalha? Quais definições importantes aconteceram em segundos, em décimos? É uma lição sobre o tempo, os detalhes, a sutileza, a equação complexa entre delicadeza e força.

Todos já conquistamos algo importante, imaterial, especial, desejado; um beijo, um eu te amo, um amor, uma amizade, uma viagem, uma conversa especial, uma experiência (algo vivido intensamente que nos marcou em corpo e alma), o nascimento de um filho, uma aprovação, a chance de conhecer os avós, ver um pôr-do-sol inesperado, deparar-se com a beleza ou a epifania de uma compreensão de si, o primeiro emprego em que se sentiu valorizado e respeitado, um elogio aguardado, uma mudança, um aprendizado.

Somos seres de desejos e fantasias. Quando vemos alguém realizando algo especial, isso nos inspira, nos conecta enquanto população e nos envolve em desejo de reinvenção e potências. Idades diferentes, culturas e histórias diferentes, mulheres em espaços de conquista, força e solidariedade, mostrando que a arte, a esperança, a alegria, o bom trabalho, a existência de uma rede de apoio ajuda a superar dores, adoecimentos, momentos difíceis e que é valioso deixar a estrela de quem for melhor brilhar e aplaudir, ensinando a reconhecer perdas e comemorar os bons dias. Que o outro não é inimigo mas alguém que pode me inspirar a aperfeiçoar.

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Olimpíadas ensina sobre diversidade, sobre ampliação de mundo, sobre superação e reinvenção do que se deseja e do que se está disposto a investir para conseguir. Um atleta olímpico lembra que podemos ser melhores na vida. Nossa humanidade se revela em todas as suas dimensões. Descobrimos que podemos nos esforçar, dedicar anos a algo e que mesmo assim, podemos falhar, pode não dar certo. E reencontrar forças, ajudas e cuidados é imperativo para recomeçar.

Que a fronteira entre alegria e tristeza é tênue. Vemos que até aquilo que amamos pode nos fazer adoecer e que pode ser preciso distanciamento para avaliar o que vale a pena continuar. Que apoiamos desconhecidos que nos encantam, quando nos fazem vibrar pela verdade que se manifesta intocável e arrebatadora.

Lembramos que um corpo nos faz pensar. Quais os seus jogos? Quais suas disputas na vida? Qual sua equipe? Como reage às perdas? Com quem comemora as vitórias? Sabe seus limites? Como lida com os adversários? Como partilhar o riso, o choro? Como cuida da dor? O que respeita e ama nas suas conquistas? O quanto se autoboicota? O quanto de perfeição e alienação seu corpo sustenta? Quantas vitórias nos roubaram? Quantas injustiças vivenciamos? Quais as insurgências que seu desejo é capaz de superar para ganhar a posse de si?