Para os que não estão bem: o que podemos aprender diante de uma crise emocional
Respeitar a dor que sentimos é fundamental para acreditar que podemos ser cuidados
Existem dias que são muito difíceis. Em que o levantar da cama necessitará de uma força hercúlea. Que será difícil falar, respirar, que parecerá que um mamute aconchegou-se sobre o peito e recusa-se a sair. Nesses dias, a lágrima pode desaguar sem contenção e pelos motivos mais insignificantes. Nestes dias, o pensamento pode ficar atordoado, lhe dificultar reconhecer suas coisas boas, interferir sobre a esperança e até em identificar a quem pode pedir ajuda.
Nesses dias, disputas internas parecem não cessar: culpa, medo, raiva, insegurança, ansiedade, lampejos de alegria podem oscilar em estados emocionais conflitantes e intensos potencializado pelo julgamento de que isso não deveria estar acontecendo ou de que você deveria ter o controle da situação ou que esse tipo de coisa só acontece com pessoas fracas e preguiçosas. Nesses momentos de caos interno, é muito fácil se perder.
Muitas coisas podem desencadear esse desassossego interno e uma crise emocional: perdas financeiras, mudanças na imagem corporal, mudanças de forma geral, mudanças de medicamentos, reconfigurações identitárias, término de relacionamento, diagnóstico de uma doença grave, expectativas não atingidas, alterações metabólicas, dores físicas, desigualdades sociais, injustiças, adoecimento, conflitos familiares, conflitos nas relações interpessoais, processos de desenvolvimento, perdas, violências, solidão, exaustão mental e física, desamparo, perda de conexões e dores emocionais avassaladoras.
Em dias assim é preciso aceitar o choro, a dor, a angústia, o desespero, sem se cobrar. É preciso reunir o que existe de amor e respeito por si e pedir, reivindicar e aceitar ajuda. É preciso rasgar máscaras e performance de sucesso e onipotência e reconhecer que dentro de todos habita um ser desamparado que em muitos momentos precisa de colo, cuidado, amor e compreensão.
É preciso baixar o chicote do julgamento e crueldade consigo e exercitar o difícil ato de perdoar-se. É preciso ter compaixão com as falhas, as vergonhas e confiar que alguém se importa. É preciso entender que vivemos em um sistema que gera imagens idealizadas impossíveis, promete felicidade, mas gera sofrimento para vender receitas simples e mágicas, inexistentes de bem-estar.
E se não tiver um amigo, um colega de trabalho, um familiar, um vizinho, um profissional que já lhe acompanha para pedir ajuda, que possa alimentar com as forças que tiver, com certeza há um ser humano em algum lugar, em um equipamento público, no posto de saúde, no CAPS, nos Creas, no Cras, no hospital, nos projetos voluntários, nas escolas, nos movimentos religiosos, nos coletivos, nos movimentos sociais que poderá cuidar. Olhe nos olhos dessa pessoa e diga com a maior verdade que conseguir: "Por favor, eu estou desesperado e preciso de ajuda".
Respeitar a dor que sentimos é fundamental para acreditar que podemos ser cuidados. Pode ser que, de tão repleto de mágoa e desgosto pelos cuidados que não recebeu, você desconfie ou tenha deixado de acreditar nas pessoas. Mas acredite que, no mundo, todos têm, tiveram ou terão seu dia de caos. E se estamos vivos, enquanto espécie, é porque aprendemos a sobreviver a nós mesmos e que essa é a tarefa existencial mais complexa. E se você chegou até aqui, alguma memória de cuidado lhe habita. Alguém em algum momento cuidou de você, porque nenhum bebê sobrevive sem cuidado.
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Permita-se mais essa chance, permita-se reencontrar-se, perder-se, não ser perfeito, não ter o que gostaria, sentir raiva, medo, vergonha, permita-se confiar e correr riscos de dizer o que sente e confirmar o afeto por você. Se nesse redemoinho você girar, ficar de cabeça para baixo, mas não abandonar a si mesmo, pode ser possível começar a se ouvir.
Existe um lugar dentro da gente, conhecedor de nossas verdades e que pode nos amar de uma forma brutal e pulsante; pode também dizer coisas terríveis, mas podemos lidar com o contraditório e o paradoxo, e talvez nesses dias, possamos ser capazes de nos ouvir pela primeira vez. Talvez nesses dias seja a primeira vez que nos confrontamos com nossa verdade, e por isso, tanta dor.
Talvez a dor não passe logo, e talvez ela demore até entendermos a violência que estamos fazendo conosco. Talvez o tempo para nos acalentar, em vez de nos atacar, precise que nossos braços aprendam a receber em vez de afastar. Talvez precisemos aprender a cuidar melhor de nós e dos outros para confiar que existirá quem se importa comigo, começando por mim. Talvez seja a hora de entender que nem sempre conseguiremos cuidar e resolver sozinhos, mas que procurar e aceitar ajuda faz parte das responsabilidades dos cuidados consigo.
Talvez seja a hora de aprender a ver os outros para entender que sozinhos não nos bastamos. Talvez seja a hora de deitar por terra a arrogância e a maldade. Talvez precisemos repensar a importância de conversar sobre as coisas malditas e mal ditas. Talvez seja a hora de ver que os segredos não são tão devoradores de alma. Talvez seja a hora de dizer o que silencia há anos.
Talvez seja a hora de mudar aquilo que faltava a coragem e que a intensidade da dor anuncia um basta. Talvez seja a hora de pedir desculpa. Talvez seja a hora de aprender outras coisas. Talvez seja a hora de deixar o passado ir. Talvez você não goste do que vê no espelho e possa descobrir o prazer e a liberdade de se reinventar. Talvez você precise descobrir as forças para reivindicar justiças para os desalentos que já recebeu.
Talvez precise aprender a falar sobre o que sempre escondeu e fugiu. Talvez precise aprender a amar e a se encantar pelo outro. Talvez precise aprender a conviver consigo quando nada dá certo; talvez precise se permitir criar; talvez precise fazer exercício para se apropriar do corpo e usá-lo amorosamente; talvez precise aprender a dizer uns palavrões; talvez precise aprender delicadezas; talvez possa descobrir que família pode ser sempre algo construído e que não depende de laços biológicos.
Talvez possa revisitar amizades esquecidas ou tecer os novos vínculos que alimentarão a partilha dos ombros; talvez precise ser lembrado de quem és e qual sua história. Talvez seja a hora de olhar para o mamute e ver que pode levá-lo para passear até um serviço profissional para aprender a conversar com o assustador que pesa e que ajude a aprender, talvez, algumas técnicas de tecelagem para fazer com os pelos do mamute e transformar o doloroso em algo especial para partilhar.