Os impactos da violência

A violência ocasiona uma perda na imagem que temos de nós, na ideia de que seremos amados, de que somos especiais e de que podemos ficar seguros no mundo

Legenda: A violência cria a ideia de que o mundo é um lugar inóspito onde as diferenças não podem coexistir e nutre a ideia do outro enquanto inimigo
Foto: Panitanphoto/Shutterstock

Somos seres agressivos, violentos e capazes de causar muita destruição. Temos na história registros dos massacres, escravidão, genocídio, guerras, atos de fúria e submissão de outro ser humano ao pior que nos habita.

Felizmente, também somos capazes de construir recursos sociais e psíquicos para conter e derivar a agressividade para fins construtivos como o esporte, as artes, a ciência, o trabalho, o amor, a religião. Entretanto, o potencial bélico que nos habita está sempre à espreita de sair e dar uma mordidinha, nos outros ou em nós mesmos.

Freud, em 1915, já nos avisa sobre os destinos da pulsão: reversão ao seu oposto (o que nos ajuda a pensar na situação em que as vítimas transformam-se no algoz), retorno ao próprio eu, recalque e sublimação.

Vivemos em um país injusto, desigual, com precariedade de políticas sociais e com elevados índices de violência. Em 2023, no País, ocorreram 108 homicídios por dia, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2021, segundo a ONU, éramos o país com maior índice de homicídio do mundo.

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A violência, segundo a OMS, pode ser: física, psicológica, sexual, moral, patrimonial e por negligência. E pode ocorrer de forma interpessoal, coletiva ou autoinfligida, com consequências individuais e coletivas.

Enxergamos a violência no cotidiano amplo e micro: a violência do abandono, do preconceito, da precariedade de políticas públicas, dos relacionamentos tóxicos, feminicídio, violência doméstica, homicídio, chacinas, genocídio, assassinato de crianças e adolescentes; a existência de milícias, facções, bullying e muitas vezes não percebemos o quanto nos afeta.

Os efeitos emocionais da violência sobre a saúde mental são inúmeros, e constitui um dos principais responsáveis por impactos emocionais que podem acarretar e ampliar   ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, uso abusivo de álcool ou outras drogas, transtornos dissociativos, doenças psicossomáticas, transtorno de humor e efeitos sobre o desenvolvimento.

Quando ocorrem situações de violência na infância ou adolescência, os efeitos podem ser mais cruéis, pois interferem na sensação de pertença e bem-estar consigo, em poder confiar nos adultos, estabelecer laços, vínculos, constituir conexões com a comunidade, sentir-se seguro e protegido na cidade e poder usufruir de espaços de lazer; frequentar equipamentos públicos, ter acesso a saúde, educação, sentir-se respeitado, poder ter um sono reparador, confiar nas suas habilidades e competências, construir uma relação de amor e respeito pelo seu corpo, sua origem étnica, sua escolha religiosa, sua orientação sexual e identidade de gênero, sentir-se incluído enquanto PCD e poder vivenciar esperança e senso de cidadania.

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A violência cria a ideia de que o mundo é um lugar inóspito onde as diferenças não podem coexistir e nutre a ideia do outro enquanto inimigo. Assim, inseguros, temerosos do desconhecido, construímos muros, cercas, e temos mais dificuldades para fazer laços, pois precisamos de um ambiente estável e confiável para podermos construir a noção de quem somos e o limite na relação com os outros. E podemos inclusive nos aliar a grupos hostis na fantasia de que unido a quem me ameaça, estaria protegido.

A violência descortina e expõe nossa bestialidade com imagens que, de tão constantes, podem embrutecer por não nos afetar mais e anestesiar nossa empatia. Um ser embrutecido pelo excesso de violência é candidato à perda de sentido e à desesperança.

Podemos ser violentos quando algo nos incomoda, quando desejamos que algo fosse diferente do que queríamos, quando desejaríamos que tudo obedecesse à nossa vontade, quando algo foge do nosso controle, quando nos sentimos frustrados, quando nos confrontamos com diferenças que questionam o que somos ou sabemos e não suportamos o mal-estar que isso provoca; quando desejamos ter poder, controle ou subjugar um objeto do nosso desejo, quando queremos explorar, conquistar, humilhar, desqualificar, submeter ao nosso domínio o que nos contraria, ameaça ou invejamos.

A violência ocasiona uma perda na imagem que temos de nós, na ideia de que seremos amados, de que somos especiais e de que podemos ficar seguros no mundo. Quando a violência acontece provocada por pessoas próximas, que confiamos e que deveriam cuidar e proteger, é aterrador; porque misturam-se sentimentos de amor e raiva, podendo ocasionar distorções de que amar é sofrimento, dor, sacrifício e submissão.

A violência produz medo e dessubjetivação, pois apresenta um conjunto de justificativas para desumanizar aquele que será violentado. Desta forma, o empoderamento e a conquista de direitos dos que são alvos sistemáticos de violência é uma salvaguarda ética e de projeto civilizatório. Outrossim, é fundamental para a dimensão psíquica, pois ajuda a pessoa na reapropriação de sua identidade e na descoberta e fortalecimento de gostos, ideias e conexões que serão dimensões importantes para se proteger, denunciar e colocar limites diante de invasões. Muitas pessoas internalizam a violência e passam a acreditar que são merecedoras do ato e consequentemente tornam-se a ser violentas consigo.

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A violência da competição, o patriarcado, o racismo estrutural alicerçam-se em ideias de privilégios que alienam e constroem falsas ideias de superioridade e poder sobre o outro, e torna-se um substituto para a falta de argumentos, cedendo lugar para a mentira e a manipulação.

A violência provoca sofrimento em quem a recebe e muitas vezes, euforia em quem pratica.

O medo, a vergonha, humilhação, a sensação de culpa, mesmo sendo vítima, infelizmente podem acompanhar sobreviventes de violência por muitos anos e ocasionar pesadelos, perdas de rendimento escolar, interferências na memória, depressão, engendrar autoboicotes e construir muralhas e blindagens emocionais que podem evitar aproximações e criar distanciamento afetivo, não somente dos outros, mas das próprias emoções.

O sentimento de culpa, que pode decorrer desde a introjeção da manipulação do agressor como da ideia de fracasso diante do agressor, ou da incapacidade de se proteger ou salvar a quem se ama, pode atormentar por longos períodos. Além disso, a identificação com a narrativa desqualificadora da violência, pode fazer com que o sujeito assuma em si o horrível que dizem que lhe representa, tornando-se aquilo que o algoz lhe decreta que deve ser.

Ao ficar com a marca da impotência, do luto não elaborado, da ideia de que foi a própria pessoa a responsável pela violência que sofreu, a dor ultrapassa a pele e pode se abrigar na alma e dificultar o choro e a procura por ajuda. Por isso, se foi alvo de violência, lembre-se de dar uma nova chance para ser amada, cuidada e repensar a imagem de si.