Quando o álcool é um problema?

Infelizmente, a porta de entrada para uso abusivo é o sofrimento

Legenda: As drogas estão presentes ao longo de toda a história humana
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As drogas estão presentes ao longo de toda a história humana. Partícipe de rituais, de conexões com o sagrado, preparação e celebração de eventos que exigem desde coragem, expiação, força para lidar com situações adversas, comemoração a alívio da dor; a alteração da realidade é cara para o ser humano.

Ao longo das configurações discursivas e narrativas, e de acordo com o jogo político e econômico, foram definidos limites, prescrições e categorizações que passaram a definir quais serão lícitas e quais ilícitas para o consumo e o uso em sociedade.

Muitas drogas que possuem sua história relacionada a práticas ancestrais passam a receber o lugar que os seus usuários irão ocupar ao longo das mudanças históricas, configurando admissível e aceitável as drogas que seriam pertencentes a uma determinada classe e raça, que possuem determinado lugar social, e marginalizadas as que se relacionam aos grupos já envoltos em preconceitos e exclusão.

As drogas possuem a capacidade de realizar alterações bioquímicas e intervir no funcionamento neurológico, por esse motivo ajudam no controle de sintomatologias que necessitam dessa intervenção para atuar de forma profilática ou preventiva, mas podem também derivar para um uso que acarrete problemas.

Essa capacidade de alterar o que pensamos ou sentimos pode ser muito sedutora diante de situações de perdas, dores, mudanças no contexto social, situações financeiras adversas, violências, estresse pós-traumático, na oferta de fugas da realidade, posto que é algo que pode ser comprado e que adquire lugar de objeto mágico do desejo atrelado às outras categorias de consumo.

Enquanto objeto onipotente, o que se inicia na oferta de um prazer que parece ser controlado pelo sujeito, para os que desenvolvem um uso abusivo e/ou dependência, essa relação se inverte, e a droga passa a ser o centro do comando da vida da pessoa. Tais processos são complexos e sutis, envolvem questões sociais, culturais, bioquímicas,  genéticas, comportamentais e manifesta na negação, um dos mecanismos mais presentes quanto à relação com a bebida (uma das drogas mais consumidas e socialmente aceita), por exemplo, passa a ser problemática. 

Segundo a Organização Mundial de Saúde, o consumo de álcool mata por ano, 2,6 milhões de pessoas e é fator causal em mais de 200 doenças e lesões. No Brasil, a taxa de população adulta que abusa do álcool é de 6 milhões de pessoas. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, acidentes automobilísticos associados ao álcool é a principal causa de morte entre jovens de 16 a 20 anos.

Legenda: Acidentes automobilísticos associados ao álcool é a principal causa de morte entre jovens de 16 a 20 anos
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É muito difícil para a pessoa reconhecer que está com dificuldades com a bebida: vergonha, medo, a própria raiva por não conseguir ter o controle sobre a situação, medo da rejeição, vaidade e culpa são alguns dos múltiplos e complexos sentimentos que atravessam o usuário. Os sinais do alcoolismo manifestam-se na:

  • vontade incontrolável de beber
  • consumo excessivo
  • aumento de tolerância fisiológica (beber cada vez mais para poder sentir os mesmos efeitos)
  • prejuízo nas atividades profissionais (não ir trabalhar por conta de ressaca, deixar de cumprir compromissos para ficar bebendo)
  • discussões por estar sob efeito do álcool
  • envolver-se em acidentes
  • conflitos familiares
  • problemas hepáticos e gastrointestinais devido ao uso do álcool
  • sintomas de abstinência quando não faz uso do álcool (tremor, sudorese, mal-estar, confusão mental, sudorese)
  • passar a frequentar somente eventos que tenham bebida
  • isolamento para ficar bebendo sozinho evitando ser questionado sobre o uso do álcool
  • não conseguir parar de beber
  • pensamentos contínuos relacionados à bebida
  • desejo de beber sendo prioridade em relação a todas as outras coisas
  • ficar com raiva quando alguém fala que está bebendo em excesso.

Na adolescência, afeta o desenvolvimento, a aprendizagem, autoestima, memória, sexualidade, relacionamentos sociais e aquisição de habilidades necessárias para lidar com os desafios da vida.

Como consequência, são frequentes a existência de inúmeros problemas: tanto quadros depressivos ou ansiosos podem aumentar o consumo de álcool, como o inverso acontece; o alcoolismo acarreta aumento de conflitos familiares, mudança de comportamento, perdas financeiras, doenças como cirrose hepática, gastrite, pancreatite, acidentes de trânsito, violência doméstica, isolamento e desgaste da imagem social, além de profundo sofrimento por parte dos filhos e nos relacionamentos, incluindo o sofrimento do próprio alcoolista consigo. 

Além da dificuldade em pedir ajuda e aceitar o adoecimento, o álcool está disponível em quase todos os espaços sociais; e o silêncio, a vergonha e a dor emocional do alcoolista pode levar a uma situação de isolamento, irritabilidade e agressividade nos contextos de comemoração.

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Além disso, quando alguém que costuma beber com frequência, resolve diminuir ou parar, depara-se muitas vezes com o grupo social fazendo pressão para o retorno à bebida, pois a diminuição na frequência do consumo de alguém que bebe, pode causar desconforto para os demais que possam ter problemas com a bebida e não queiram ser confrontados com isso.

A existência de grupos de autoajuda (inclusive com a oferta de grupos online), de CAPS AD, e estratégias de cuidado que podem envolver medicação, psicoterapia, fortalecimento de vínculos sociais e comunitários, apoio da rede afetiva e construção de novos projetos de vida, precisam de profundo engajamento por parte de quem deseja lidar com o alcoolismo, e é preciso entender, que mesmo quando esse é o objetivo, recaídas podem ser frequentes.

Pois mesmo procurando ajuda, o alcoolista enfrenta uma árdua batalha consigo e com a sociedade e precisará construir recursos complexos para administrar a abstinência e a impulsividade dos desejos e encontrar-se com o que existe de bom e protetivo na vida, além de reconfigurar a identidade, que pode estar estigmatizada pelo alcoolismo.

Legenda: O alcoolista enfrenta uma árdua batalha consigo e com a sociedade e precisará construir recursos complexos para administrar a abstinência e a impulsividade dos desejos
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Os princípios da redução de danos consistem em estratégias de Saúde Pública, nas quais o objetivo não significa parar de beber e sim, tentar evitar a progressão de danos causados pelo álcool (tentar cuidar do número de doses, cuidar da alimentação, aumentar a hidratação, diluir a bebida, oferta de acompanhamento multiprofissional, ampliação das ações de cuidado, divulgação de informações, mudança de rotina, estabelecimento de projeto terapêutico singular com o usuário, respeitando a autonomia nas decisões são algumas dessas ações. 

É fundamental não fazer julgamento moral. A pessoa bebe porque tem uma doença crônica, um transtorno por uso de álcool, que não deve ser confundida com uma questão moral. É importante oferecer apoio para acompanhar no tratamento, ter uma conversa franca e honesta, mas somente quando a pessoa estiver sóbria e não fazer piadas sobre a situação.

Falar e reconhecer o alcoolismo é muito difícil, porque envolve conectar-se com dores emocionais muito grandes e muitas vezes a procura por ajuda só ocorre quando perdas devastadoras já aconteceram. Além disso, pode ser muito complicado lidar com a agressividade, a manipulação e as mentiras para obtenção do álcool. O alcoolismo não acarreta apenas perdas e prejuízos para o indivíduo, mas para a sociedade e as relações íntimas e familiares, nos espaços de trabalho e no sistema de saúde.

É preciso cuidar das famílias e dos filhos dos alcoolistas, porque podem apresentar efeitos na saúde mental decorrente do comportamento dos pais; realizar ações de prevenção ao uso abusivo do álcool nas escolas, pois existe um aumento no consumo de álcool por adolescentes que se insere neste público enquanto alternativa para lidar com as pressões, inseguranças, dores, angústias e como parte de rituais de masculinidade, conflitos, desamparo, dúvidas e procura por aceitação social.

Infelizmente, a porta de entrada para uso abusivo é o sofrimento. É prioritário o fortalecimento de políticas públicas de prevenção e tratamento ao uso abusivo, esclarecimento sobre os efeitos nocivos do álcool, desatrelar a ideia de bebida à de felicidade, sucesso, alegria e bem-estar. Identificar espaços e condições de trabalho adoecedores que relacionam-se a um consumo abusivo de álcool e tornar acessível o diálogo sobre o assunto em todos os espaços e incentivar a busca de ajuda com oferta de cuidados adequados e preparo qualificado de profissionais em equipes multiprofissionais.

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