Os afetos que rondam a paternidade em suas ausências, abandonos e saudades
Para existirmos precisamos que alguém nos receba nesse mundo. Quando chegamos, somos desamparo e potência, que necessita de braços, olhares, cuidados que nos envolvam e ajudem a formar pele e densidade psíquica. Por conta de uma série histórica onde se mesclam estruturas patriarcais, rituais culturais, estruturas simbólicas e subjetivas, os cuidados passam a ser majoritariamente destinados às mulheres, esquecendo ou negligenciando o papel fundamental da paternidade. Entretanto, a presença paterna ocupa um lugar fundamental na construção de um sujeito e as falhas ou ausências influenciam na construção de quem somos.
Para muitos, o dia dos pais é um momento de gratidão, pelos momentos em que adormeceu em um lugar e acordou no quarto, sendo levado magicamente pelos braços amorosos e protetivos; pelos momentos de escuta e proteção; pelo olhar e abraço de aceitação diante das violências da vida; pelas lições de sabedoria diante do absurdo e misterioso da existência, pela sustentação do percurso nas relações que podem atravessar desde o heroísmo, amizade, para a raiva e a diferenciação.
Para outros tantos, infelizmente, o dia dos pais mexe nas feridas internas. Quando o abandono ontológico do nascimento se materializa no abandono da figura paterna, na desistência da função, seja no nome na certidão, seja na ausência na vida. Para muitos, a cobrança mercadológica da felicidade e comemoração pela figura paterna se torna momento de mágoa e dor, silenciada, principalmente entre os homens que não puderam usufruir dessa presença e muitas vezes, foram exigidos a ocuparem desde muito cedo, o lugar ausente que o pai deixou, seja no cuidado com os irmão, com a própria mãe ou com a família.
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Existem os pais que são violentos, abusadores, intrusivos e deixam, nos corpos e nas memórias das mulheres, a dor da mescla tóxica da violência e a deturpação da ideia de amor. Podem existir muitas raivas, culpas e mágoas com a figura paterna e é necessário realizar muitos cuidados sobre como isso pode repercutir na vida de alguém.
Nem todos têm motivo para comemorar esse dia e não precisam fazê-lo, pois é lícito aprendermos a validar a verdade dos afetos na nossa história. Sendo assim, podem realizar seu próprio registro sobre a masculinidade e paternidade e a forma que podem encontrar para dar outros destinos a esse lugar que dói e a como serem figuras paternas melhores no mundo.
Inúmeras vezes, professores, lideranças religiosas, amigos, amores recebem conteúdos transferenciais das figuras com as quais desejamos recompor histórias afetivas, e é preciso ter muito cuidado no manejo desses afetos; porque tanto podem ser saudáveis quanto internamente destrutivos.
Existem aqueles que os pais faleceram, que o abandono não foi proposital e que deixam as fantasias do que poderia ter sido, e alimentam sonhos do desejo de poder ter a experiência concreta do convívio. Quando se nasce com um pai morto, não significa que esse pai não possa ter um registro forte, vivo e cuidadoso dentro do filho através das memórias e das histórias que são repassadas e podem construir identificações valiosas.
Para aqueles que usufruíram de um pai capaz de ocupar o lugar que o filho precisava para existir e crescer e que hoje não está mais vivo, é um dia que pode ser usado como reverência; onde a saudade e as boas memórias do vivido podem alimentar a gratidão dos bons dias juntos e renovar as forças para continuar alimentados pelo amor e pela presença, que, vivas dentro de nós, tornam quem perdemos eternos, porque habita uma parte de quem somos.
A paternidade é uma experiência valiosa na existência, é um enlace protetivo valioso. Não deveria ser um dia para ostentação vazia de vínculo. É preciso presença cuidadosa, atenta; em diálogos, delicadezas, gestos e exemplos na apresentação do mundo e na confiança para agir sobre ele.
Todos guardamos ideias e afetos sobre um pai que nos habita, que nos ameaça ou protege, que nos embala, apoia ou vulnerabiliza, que nos irrita, culpa, ou emociona e inunda em amor.
Que seja não somente um dia, que não seja um presente material, que não seja uma marca de consumo; que não seja uma propaganda idealizada do que não existe, pois relações possuem ambivalências e conflitos; mas que possamos pensar no valor da experiência e importância emocional da paternidade que nos habita e que possamos “paternar” a cidade, aos outros e a nós mesmos, com dignidade, esperança, respeito e amor.
Que possamos entender que o desamparo que precisa do suporte paterno habita em todos e a forma que cuidamos de alguém que nasce reverbera em toda a sociedade.
Qual o pai que nos habita? Qual o pai que somos? Qual o pai que escolhemos para os filhos? Qual a ideia de paternidade que nos habita? É de proteção, amor, cuidado? É aquele que silencia sobre emoções, que exige performance de sucesso? Que não admite falhas?
Qual o lugar do feminino diante do olhar da paternidade que me atravessa? Como é possível mesclar lei e amor? Como eu me torno pai diante do meu pai e como é possível construir em mim uma relação com a paternidade que alimente a vida, os vínculos, a esperança, que me embale e proteja nos dias difíceis, que potencialize a confiança e o sonho?