Os sons nos constituem, somos sujeitos de linguagem. As marcas iniciais ecoam em nós desde o ritmo das batidas do coração da mãe. O ritmo nos acompanha a vida, marca as memórias, o corpo, produzindo efeitos ao longo do tempo. Vozes e pensamentos irão tecer com a linha do afeto a pele psíquica que, integrada ao corpo, é berçário de um sujeito.
Ao longo da vida, os sons expressam quem somos e medeiam a presença dos outros e do mundo em nós. Balbucios, murmúrios, gemidos, palavras, expressões de um ser que designa o vivido, o sentido em sua profusão. Um grito tanto pode buscar o socorro, o cuidado, pode irmanar para a alegria ou a luta, quanto pode ser punhal que atravessa, violenta e rasgue a experiência emocional de outrem.
Os sons buscam o outro, buscam conexão, tradução, compreensão e desenvolvimento. Palavras e histórias vão construindo as narrativas das memórias partilhadas e da intimidade do singular. Quem fala, quando fala, como escuto, quem escuto, o respeito ao direito de fala e escuta reverberam a história dos direitos. Os sons mudam, permanecem, transformam-se. A dinâmica do mundo, o movimento da vida tem som, e sua harmonia ou desarmonia traduz movimentos da dialética da experiência humana.
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A tecnologia amplia os sons, o alcance, a transmissão e as possibilidades de entendimento e conflito pelo quê e pela forma como ecoa. O som em suas modulações e intensidades pode acolher, acalmar, aconchegar, conter e traduzir o indizível do sentido. Quando barulho, inquieta, atrapalha a concentração, o sono, a memória, a aprendizagem, interfere no humor, irrita, estressa, aumenta o cansaço, interfere no desenvolvimento de crianças e adolescentes e pode se relacionar com aumento de ansiedade e depressão, principalmente quando o sujeito não tem controle sobre o barulho a que está submetido.
Cotidianamente, observamos pessoas ouvindo as redes sociais em alto-falantes, caixas de som que ecoam entre bairros, buzinas e amplificação dos barulhos na cidade de maneira contínua e constante, desrespeitando horários e limites. Caixas de som na praia disputando a audiência e a potência com outros equipamentos, conversas íntimas sendo partilhadas pelos áudios sem fone, em alto som nos ambientes incompatíveis com a temática exposta; músicas (que mesmo com fone) estão em volume que causam dano auditivo, vizinhos que negligenciam a empatia e o direito ao silêncio e à escolha dos sons dentro do seu ambiente, crianças que deveriam ter ambiente calmo e tranquilo envoltas em alvoroço e estrondos.
Além da conflituosa relação público e privado, íntimo e externo, a profusão de barulhos denuncia outras questões: a necessidade de estarmos sempre conectados, e o ouvir alto e contínuo como uma forma de se proteger da solidão e da dificuldade em estarmos sozinhos, atentos ao mundo interno, em atenção consigo.
Muitas vezes para fugir daquilo que faz barulho internamente, é melhor poluir com outros sons para confundir as linguagens.
Quando perdemos a capacidade de nos ouvir, de escutarmos nossos sons e palavras, nos desconectamos de nossa história e nossas emoções. É difícil ouvirmos certas demandas da nossa história, pensarmos sobre o doloroso, sobre as perdas, os lutos, as mágoas, o esquecido que precisa ser lembrado e integrado, as falhas, as violências, os abandonos, os desamparos, os desejos de amor e alegria verdadeira.
Vivemos em um contexto que incita o consumo, a excitação contínua e a competição feroz em busca de enriquecimento, escamoteando as desigualdades sociais e as assimetrias no percurso dessas conquistas e possibilidades.
Esse sujeito desesperado não pode parar, não pode se ouvir, precisa de muito barulho o tempo todo para não pensar, para não olhar criticamente a realidade, para não se deparar com o improvável e o difícil da lida do viver, para não ver o outro, para não ver a si, para manter a aceleração em massa.
Talvez porque se eu perceber o outro posso me importar, posso ter que cuidar, e cuidar envolve mais trabalho que destruir. Em um contexto individualista, tem que ser a minha música, tem que ser o que eu quero, na hora que quero, do jeito que quero, para suplantar as fragilidades existenciais onde minha voz não é escutada, meus direitos desrespeitados.
Com a minha caixa de som, viro o ditador do espaço, submeto o outro ao poder que usualmente não possuo. Preencho com barulho para que não sobre espaço para pensar, para me ouvir, para ouvir o outro que pode ter coisas a dizer que me incomodem, que desmontem minha visão de mundo, que me desinstale da acomodação de me silenciar.
A voz do outro pode ser assustadora, as vozes que me habitam podem me surpreender. Mas se não me escuto, se fico no barulho de fora, para esconder os barulhos que me habitam e precisam de expressão e tradução, promovo o ensurdecedor baile da violência, da arrogância, da alienação existencial, da solidão e da despertença do coletivo; que acompanhará a dança de uma pessoa que passou pela vida.
E que embora ache que se divertiu, que fez o que queria, que colocou sua voz para silenciar os outros; muito provavelmente não experimentou a delícia de encontrar o próprio som, a própria voz, não ouviu a beleza das vozes dos outros, a elegância dos sussurros, o acréscimo harmônico de dançar junto e compor em parceria, a dança com outros ritmos, a poesia do silêncio e a elegância que existe no arranjo harmônico de uma existência afinada consigo e com os outros.