Na última semana, Ciça Pereira, mulher negra especialista em Cultura e gestora de projetos, postou em suas redes sociais um carrossel de fotografias de muros riscados com frases que acenavam para ideias revolucionárias. Entre elas, a frase que intitula esse artigo. Na noite de domingo, revi o filme “Quanto Vale ou é por Quilo?” e fui dormir com um sentimento nada inédito: a indignação diante da injustiça social. Hoje pela manhã, cruzo com o artigo “Tempo, tempo, tempo”, de Daniel Munduruku. Diante desse consumo de informações, aqui dentro, uma inquietação dolorosa: quanto vale o peso da vida do trabalhador brasileiro?
O Movimento VAT (Vida Além do Trabalho), liderado pelo candidato eleito a vereador Rick Azevedo, tem conduzido uma campanha em defesa dos direitos dos trabalhadores na qual a pauta principal é a abolição do regime de trabalho assentado na escala 6x1. A luta se transformou em Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apresentada no Congresso pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP).
Mais de 200 deputados endossaram o documento. Na petição conduzida pelo VAT, as assinaturas virtuais ultrapassaram o número de três milhões. Mais do que uma redução de carga horária, a PEC 6x1 trata sobre reivindicação de vida. Trata sobre a qualidade da nossa existência.
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De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE, quase 60% dos trabalhadores brasileiros que estão nos postos de trabalhos precarizados, subutilizados e com menores salários são negros. As áreas do comércio e serviços gerais são os mais afetados por esse regime de trabalho. Rick Azevedo, trabalhador à frente do VAT, por meio da sua conta no TikTok, expôs os danos diários que a rotina de trabalho lhe causou, sem tempo para cuidados com o corpo e a mente, para o lazer e o cuidado com a família, para estudos, experimentações ou a vivência com cultura e arte. Sem tempo para sonhar.
10 milhõesNo Brasil, mais de 10 milhões de pessoas compartilham a mesma angústia.
Tempo! Munduruku julga que o tempo ocidental nos aprisiona no compasso do relógio. O tempo da produção e do acúmulo assalta o tempo do toque, do saboreio, do gozo. É o tempo que promete descanso no futuro, enquanto perecemos no presente. Inclusive, na cosmovisão indígena, o futuro é uma falácia. Foi o avô de Munduruku que disse: “se o momento atual não fosse bom não se chamava PRESENTE”.
Nas religiões de matriz africana, o tempo é um orixá. Rege a vida, o conhecimento, os pensamentos. Iroko: “um dos deuses mais lindos”. Ele governa os movimentos, desfaz caminhos, dança no vento e adormece à sombra de uma gameleira branca. É o tempo que não dá saltos.
A perniciosa condição de trabalho do brasileiro é o resultado de uma história de exploração que beneficia um grupo privilegiado em detrimento da liberdade de vida de outros. A possibilidade de obter seu sustento não deveria, em nenhum grau, acontecer nos limites de uma relação em que a vida produtiva do trabalhador oferece os louros para uma classe em função do sacrifício dos seus próprios prazeres.
Pois “quando se vê, já são seis horas! / quando se vê, já é sexta-feira! / quando se vê, já é Natal… / quando se vê, já terminou o ano… / quando se vê perdemos o amor da nossa vida. / quando se vê, passaram 50 anos!” (Mário Quintana, em “O Tempo”).
O artista JotaPê, vencedor de três categorias no Grammy Latino, em sua canção "Crônicas de um sonhador”, canta assim: "O tempo passa e você vai ver/ Volta pro trabalho se não vou te demitir/ Volta logo ou vai sonhar longe daqui”.
Ora, que sistema de vida é esse em que você tem que decidir entre o sonho e o ganha-pão? Há dignidade nesta escolha? Não há nação justa em que a igualdade de oportunidades é ilusória. Não há nação livre, enquanto o tempo do trabalhador continuar sendo leiloado para os senhores dos negócios.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.