'Demarcando telas': a produção audiovisual indígena e os cem anos do cinema cearense

Em 2024, a produção cinematográfica cearense tem se consolidado na cadeia produtiva do audiovisual com obras ganhando destaque e premiações em festivais nacionais e internacionais

Legenda: No Ceará, a Escola Livre de Cinema e Audiovisual Brotar Cinema com o povo Anacé vem atualizando o uso desses instrumentos de linguagem cinematográfica
Foto: Reprodução/Instagram Brotar Cinema com o Povo Anacé

A imagem carrega em suas formas, traços, cores e linhas a capacidade de descrever e projetar uma dada realidade. Do homem pré-histórico, com seus desenhos rupestres pincelados por carvão e argila, ao homem contemporâneo, com suas selfies moldadas por megapixels, a imagem é a representação de uma cultura codificada.

Da tela para a chapa fotográfica, as imagens foram ganhando cada vez mais espaço e uma dimensão de significados. A narrativa imagética é um campo de atuação, afirmação e conflitos. Ela traz consigo um poderio de informação e desinformação, capacidade de emocionar e transformar, denunciar e manipular.

Alunos em uma biblioteca
Legenda: No Ceará, a Escola Livre de Cinema e Audiovisual Brotar Cinema com o povo Anacé vem atualizando o uso desses instrumentos de linguagem cinematográfica
Foto: Reprodução/Instagram Brotar Cinema com o Povo Anacé

No último dia 15 de outubro, comemoramos o centenário da exibição do 1º filme creditado a um cearense. Adhemar Bezerra de Albuquerque, no centro de Fortaleza, no Cine Moderno, projetou o filme “Temporada de futebol maranhense no Ceará”. Desde então, pólos de formação e experimentação da sétima arte ganharam a cidade.

Espaços formativos como Alpendre, Encine, Fábrica de Imagens, Casa Amarela, Escola de Audiovisual Vila das Artes, Escola Porto Iracema das Artes, graduações de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Universidade Federal do Ceará (UFC) são fundamentais no processo de fortalecimento da cena audiovisual do Estado.

Em 2024, a produção cinematográfica cearense tem se consolidado na cadeia produtiva do audiovisual com obras ganhando destaque e premiações em festivais nacionais e internacionais. Nesse mesmo ano, o Programa Estadual de Desenvolvimento do Cinema e Audiovisual (Ceará Filmes) inicia o processo de articulação e discussão para sua implementação, com o objetivo principal de fortalecer a política deste setor.

A relevância do audiovisual para a política no campo da arte e da cultura é, sobretudo, pela sua capacidade de preservar  e notabilizar uma memória coletiva. Mas, nesse processo de diálogo entre os domínios técnicos (câmera, som e tela) e a base abstrata (símbolos e repertórios), que história cearense estamos narrando? 

Nesta semana, presenciei uma palestra do ativista social Ailton Krenak no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbu. Sua fala era pautada na seguinte inquietação: depois do fim do mundo, que história contaremos? Os povos originários compreendem a oralidade e a sua dimensão de troca como uma tecnologia de sobrevivência de práticas culturais. A transmissão do saber é, acima de tudo, uma estratégia para “adiar o fim do mundo”.

Todavia, há uma disputa pela imagem do povo originário, por isso a importância  de dominar as estruturas de linguagens na ideia de quebrar a narrativa única sobre as imagens instituídas na história brasileira. Aqui, a tecnologia do cinema e vídeo surge como dispositivo de exibição dos componentes étnicos e culturais da sociedade brasileira.

Diante disso, Ailton Krenak reivindica o lugar de protagonista da própria imagem e condena essa posição onde os povos originários são os “outros”, objeto passivo dessa produção estética. Ele alerta que, com a posse desses instrumentos de comunicação, a comunidade indigena “não está tão somente replicando, mas inovando na linguagem”. 

No Ceará, a Escola Livre de Cinema e Audiovisual Brotar Cinema com o povo Anacé vem atualizando o uso desses instrumentos de linguagem cinematográfica. O projeto conta com a participação de povos originários de quatro territórios: Japurá, Taba, Cauípe e Parnamirim. Essa iniciativa retrata um Ceará, para muitos, ainda invisível.

A produção do povo Anacé expõe seus pensamentos, sua política, seu cotidiano, suas expressões culturais, suas perspectivas de mundo. Ao fazer isso, apresenta também a ancestralidade indígena cearense, ainda pouco valorizada nos discursos midiáticos e insuficientemente abordada na reflexão do nosso processo identitário.

Todo investimento estatal direcionado às produções audiovisuais lideradas por realizadores indígenas é também um empenho de olharmos para dentro. O Ceará é indígena. As aldeias são nossas nascentes. Que nos próximos anos do cinema cearense, a assinatura artística dos povos originários demarque as telas e que o dispositivo do cinema e do vídeo seja aliado nesse debate pela ocupação dos territórios físicos e imagéticos, possibilitando assim que os povos originários exerçam sua soberania na construção das próprias imagens.

O texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora. 

 
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