Da infância à velhice, onde começam as violências contra a mulher?
Entre janeiro e setembro de 2024, o Ceará registrou o maior número de mulheres vítimas de violência no âmbito da Lei Maria da Penha na última década, considerando o mesmo período de cada ano. Foram, em média, 2.087 casos por mês. As estatísticas de feminicídio e de mulheres que sofreram crimes sexuais neste ano, nos mesmos meses, só ficaram atrás dos dados do ano passado.
As informações da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS) mostram que, ao longo deste ano, 28 mulheres foram mortas em situações que envolveram violência doméstica ou discriminação contra a condição de mulher, conforme tipifica a lei do feminicídio, n.º 13.104/2015. Em 2023, foram contabilizadas 34 vítimas entre janeiro e setembro.
Compondo este cenário, 1.547 mulheres sofreram crimes sexuais no Estado em 2024 — o segundo maior número desde 2015, atrás apenas do ano passado, com 1.629 ocorrências.
Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.
Muito antes de tapas e socos, dos gritos e do controle sobre que roupa a mulher pode usar, a violência vem de cada ação que reforça o papel esperado para elas desde a infância. É uma agressão inicialmente simbólica que se materializa no cotidiano, define a professora e enfermeira Grayce Alencar Albuquerque, coordenadora do Observatório da Violência e Direitos Humanos da Universidade Regional do Cariri (URCA).
E, segundo a docente, a sociedade se desenrola a partir desses estereótipos de gênero. Tanto no seio familiar quanto na educação formal, desde os anos iniciais, meninos e meninas são ensinados a exercerem atividades voltadas para cada grupo. Isso leva a padrões culturalmente determinados que devem ser seguidos, sob risco de se sofrer penalidades.
“Quando a mulher avança em outros papéis que, para a sociedade, não são para ela ocupar, ela sofre a violência”, afirma. Essa dinâmica leva à maior dificuldade, por exemplo, para elas se inserirem e se manterem no mercado de trabalho e para alavancarem a carreira, mesmo tendo as mesmas competências que homens.
Ou seja, a gente fala de uma estrutura, de um machismo, que tenta de todas as maneiras colocar as mulheres em seus lugares culturalmente estipulados para elas.
A psicóloga Nara Barreto destaca que a agressão física e o feminicídio são apenas a “ponta do iceberg” quando se fala em violência contra a mulher. Até escalar e chegar a esses desfechos, ocorre uma série de microviolências cotidianas. Nas relações íntimas, isso se manifesta “em uma crescente”, vêm o xingamento, as proibições, o constrangimento financeiro, até chegar àqueles estágios ainda mais graves.
“Mas, antes disso, tem muita coisa”, diz. São as cantadas desrespeitosas, o toque sem permissão, os comentários inapropriados sobre a aparência, as piadas machistas, a diminuição da inteligência e do valor da mulher. De tão banal e normalizado, há dificuldade para reconhecer o que são essas ações. “Mas tudo o que inibe a nossa existência plena é uma violência”, defende.
Uma sociedade que impede uma mulher de trabalhar porque é mãe. Uma sociedade que impede a mulher de frequentar ambientes públicos porque está com um bebê. Uma sociedade que impõe a maternidade como compulsória, o casamento como compulsório, como status de valor para a mulher. Tudo isso é violência.
A própria legislação reconhece que a violência contra a mulher vai além da física. A Lei Maria da Penha, como é conhecida a Lei n.º 11.340, de 2006, traz definições de outras quatro formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: psicológica, sexual, patrimonial e moral. Dessa forma, a legislação abrange desde as condutas que causem dano emocional até a subtração de pertences, além daquelas que prejudiquem a integridade ou a saúde corporal.
A professora Grayce Alencar Albuquerque ainda acrescenta a violência institucional, causada pela carência de políticas públicas, apesar de avanços já conquistados, realmente eficazes. Um exemplo citado por ela é haver “certo temor” das mulheres em relação ao mercado de trabalho quando engravidam. “São carências de regulamentações que implicam sim em violências contra essas mulheres”, diz.
Em relação à violência sexual, há ainda um cenário no qual as vítimas muitas vezes não se reconhecem dessa forma: o estupro no casamento. “Alguns autores colocam como cláusula marital. Ou seja, se estou casada, tenho um relacionamento estável com um parceiro, sou obrigada a satisfazê-lo sexualmente mesmo contra a minha vontade”, explica Albuquerque.
Repercussões da violência na saúde
A mulher é, muitas vezes, culpabilizada pelo que ocorre com o corpo dela, mesmo se tiver sido vítima de violência. Em geral, diz-se que ela falou, fez ou usou algo “inapropriado”. Ouve-se desde cedo, inclusive de pessoas da própria família: “senta direito”, “fecha as perninhas”, “não responde”, “baixa a cabeça”, em um constante tolhimento. Esse cenário leva ao desenvolvimento de questões de saúde.
Isso vai gerar, no desenvolvimento, uma sensação de incapacidade, de profunda vulnerabilidade, e, consequentemente, de uma profunda dependência desse outro que tanto pode me amar como pode me matar. Vai afetar a formação dos nossos laços, a formação dos nossos vínculos, a maneira como nos relacionamos.
“Qual é a maneira que podemos nos enxergar como um ser vivente no mundo? Quais são as minhas possibilidades? Para as mulheres, de forma geral, as possibilidades são limitadas. Mesmo que a gente diga que pode abraçar o mundo, mentira, a gente não pode”, diz Barreto. Não se pode andar na rua sozinha à noite, por exemplo. Não só por medo da violência urbana, mas da violência sexual.
E, segundo a psicóloga, esse receio “é plantado desde muito cedo”, gerando um tensionamento que se torna crônico e limitante. “Isso vai, obviamente, aflorar na minha autoestima, na maneira como eu enxergo as minhas possibilidades de vida, e, não à toa, vai acabar reverberando em quadros de ansiedade, em quadros de depressão, que expressam essa liberdade sitiada”, diz.
Vivenciar situações de violência pode levar também a crises de ansiedade, síndrome do pânico, alterações de humor e no sono. Ainda pode desencadear casos de estresse pós-traumático, além de tentativas e ideações suicidas, acrescenta Grayce Alencar Albuquerque.
Mas o impacto mental da violência contra a mulher também pode ter desdobramentos e culminar em alterações fisiológicas. Há vítimas com queixas de enxaquecas constantes, gastrite, alterações de trânsito intestinal, problemas respiratórios. “(Algumas) vão recorrer ao uso e abuso de drogas lícitas e ilícitas. Ou seja, nós vamos ter inúmeras repercussões na vida dessa mulher”, acrescenta a professora.
“Estudos colocam que mulheres que vivenciam a violência têm potenciais de anos de vida perdidos. A expectativa de vida dessa mulher é diminuída por conta da violência”, destaca Grayce Alencar Albuquerque.
Tirar a venda dos olhos
Isso ocorreu com Maria*. Depois de muitas sessões de terapia, ela conseguiu entender que a incontinência urinária que desenvolveu por volta dos 30 anos tinha relação com o ambiente violento da infância. A servidora pública costumava justificar que o sintoma era causado por ter a bexiga “muito baixa” ou “muito pequena”. “Fui mentindo, criando muitas coisas para me proteger”, diz.
Ela morava em uma pequena casa e, quando o pai chegava bêbado, não tinha muitas alternativas além de presenciar as cenas que se desenrolavam. Criança, ela quase sempre ia para debaixo de uma mesa — de onde ouvia a mãe apanhar e gritar — e muitas vezes urinava e vomitava ali mesmo.
A cada vez que vou ao interior, eu busco lembranças. Já me lembrei de uma vez ele chutando minha mãe, puxando o cabelo, jogando minha mãe no chão. Era muita pancada.
Não é só da violência física que ela se lembra: há memórias das vezes em que ele pegou o dinheiro da família para “levar para a farra”, de quando mãe e filha ficavam presas em casa durante todo o fim de semana e dos xingamentos. “Até o último suspiro da minha mãe, meu pai foi violento”, diz.
Com o tempo, ela percebeu que a mãe não foi a única vítima. “Essa violência perpassou e perpassa, até hoje, para mim. A ponto de não reconhecer as violências em dois relacionamentos que tive, nessa questão de sempre dizer que amava, sempre recompensar com alguma coisa”, conta.
Além do acompanhamento psicológico, são as leituras, a imersão no feminismo e o apoio da filha que têm ajudado Maria* a identificar e nomear as agressões que já vivenciou. Ela conseguiu perceber, por exemplo, as ações violentas de um ex-namorado, que antes eram relevadas.
Os grupos de leitura têm sido, para mim, uma catarse. Especialmente em grupos mais fechados, com pessoas empoderadas que trabalham realmente essas pautas de racismo, preconceito e feminismo. Já tenho vínculo com muitas pessoas e me sinto em um ambiente seguro para falar.
Nessa caminhada de redescobertas e empoderamento, Maria* tem experimentado diferentes emoções. Já sentiu raiva de si — por demorar a identificar as violências —, mas, ao mesmo tempo, vem aprendendo a se perdoar. Já chorou lendo livros e se reconhecendo em diferentes situações. “Para mim, é [como] cortar um cordão, tirar as amarras, tirar a venda dos meus olhos”, afirma.
Hoje ela se sente “feito uma criança que está aprendendo a ler” e não quer que os novos conhecimentos fiquem apenas para si. A vontade é de que a própria voz chegue a mais pessoas. “As pessoas precisam reconhecer as violências que sofrem dentro de casa. Quantas pessoas não estão vivendo violências e mais violências e não percebem que estão dentro desse universo? Então, eu quero fazer com que a minha história ajude outras pessoas também”, finaliza.
Possibilidades de prevenção e enfrentamento
Contra essa violência que impacta o dia a dia das mulheres, tanto a docente quanto a psicóloga apontam a importância da educação desde a infância. Os meninos devem ser ensinados a respeitar as meninas e aprender o real significado de equidade e respeito. E as meninas devem ser educadas para o amor-próprio e para o reconhecimento do próprio valor, defende Barreto.
“Se nós trabalhamos de início, com crianças e adolescentes, consequentemente, possivelmente, nós teremos adultos mais conscientes e mais responsáveis com suas ações e com suas atitudes na sociedade”, acrescenta Albuquerque. Porém, para além das crianças, também é necessário incluir pais e responsáveis nesse aprendizado para haver mudanças no contexto familiar.
A temática, segundo ela, também pode ser abordada em atividades educativas realizadas no atendimento em unidades básicas de saúde (UBS). “Sempre é importante estar batendo nessa tecla”, defende.
Mas isso não basta, e ambas também apontam a importância de as leis já existentes serem aplicadas e fiscalizadas com rigor. “A educação é muito importante, mas vai vir para o futuro. Agora nós já temos mulheres vítimas de violência, então precisamos pensar como prevenir um aumento desses índices. […] O sentimento de impunidade que esses homens têm é muito forte”, afirma Barreto.
A docente destaca o avanço que a Lei Maria da Penha representa, mas pontua que ela “precisa ser colocada realmente em prática”. “A partir dessa legislação, temos todo um aparato de instituições que compõem a rede de enfrentamento à violência contra a mulher. Mas, ainda assim, nós identificamos que existe uma necessidade maior de um investimento tanto em relação a mais infraestrutura quanto a qualificação de profissionais”, avalia.
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Comissão de cuidado
O cuidado às vítimas de violência deve envolver todas as áreas da Saúde e todos os níveis de atenção (primária, especializada e de alta complexidade). Tendo isso em vista, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) autorizou, no último 12 de agosto, a criação da Comissão de Cuidado à Pessoa em Situação de Violência em todos os serviços de saúde do Estado, por meio da portaria n.º 1536/2024.
Entre as responsabilidades da Comissão de Cuidado à Pessoa em Situação de Violência estão:
- Acolher, encaminhar, acompanhar e tomar todas as medidas cabíveis, do ponto de vista técnico, para atendimento às pessoas em situação de violência;
- Implantar fluxo de rotina para o atendimento às pessoas em situação de violência ou atender aos protocolos estabelecidos.
- Acompanhar e orientar notificações nos casos de violência.
- Prestar assistência psicológica ou encaminhamentos necessários.
- Encaminhar à rede de proteção social e/ou autoridades, nos casos de riscos iminentes com o retorno ao lar;
- Criar mecanismo para acompanhamento das pessoas vítimas de violência, em especial, crianças e adolescentes.
- Notificação obrigatória de todos os casos suspeitos ou confirmados à conforme a legislação vigente.
* O Diário do Nordeste optou por utilizar nome fictício para resguardar a identidade e preservar a segurança da entrevistada.