Há poucos dias algo lateja dentro de muitos de nós. Uma sensação de luto. E se abrimos mais e mais os olhos da alma, vemos que o sentimento mistura muitas sensações, desde um incômodo contínuo até uma dor que chega acompanhada de raiva e surpresa. Estamos atônitos - nem todos, mas muitos de nós.
Temos muitas questões, dúvidas. Passamos os últimos dias buscando informações racionais nos jornais do Brasil, tentando juntar peças para equilibrar razão e emoção, refletindo sobre os muitos impactos de uma crise que atravessa instituições, ideologias, estruturas. Transpassa histórias de vida. Surpreende. Apavora. Não é (só) sobre partidos, governos e instituições. É muito mais; maior e profundo.
As matérias nos jornais do Brasil afora que reportam denúncias de assédio sexual contra o agora ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e relatam que o intelectual vitimou várias mulheres, inclusive a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, são uma pancada que fere muitas camadas, coletivas e individuais.
Antes de continuar, deixo aqui a minha solidariedade a todas as mulheres do mundo vítimas de violências e que tantas vezes precisam silenciar para não se verem novamente imersas na mesma dor, e sofrerem repetidas vezes a cada exposição, a cada questionamento, a cada narrativa. Muitos golpes em uma mesma ferida.
Por enquanto, a única certeza que temos é a de que já perdemos. Todos nós perdemos muito com essa história. E há muitos projetos, ideias, avanços, vitórias ainda ameaçados. Infortúnios fortalecidos. De todos os lados há dor. Decepções, mentes confusas. Ansiedade e incertezas. Oxalá, rogamos por uma saída, pois a crise é de esperança. Queremos fugir do lamento, mas onde estão nossos abrigos? “Minha casa não é minha, não é meu esse lugar”, sentimo-nos talvez como Milton Nascimento.
Algumas palavras estão há muitas horas em nossas cabeças tentando decifrar o que há na alma. Nem sempre é possível. Mas a verdade é que estamos desolados. E por quê? As razões, do tanto que se confundem, nos bagunça a mente. Aperta o peito. Nos deixa surpresos, cabisbaixos. Quem sabia do quê há quanto tempo? Mais perguntas. É preciso acordar. Pesadelos às vezes são sintomas da vida real.
Estamos desolados porque não sabemos ao certo o que aconteceu ainda. Mas temos a certeza de que há muita dor. Uma ferida que nos afeta tal qual efeito dominó e sai rasgando nossa crença em pessoas e projetos de vidas inteiras. Sangra a história de um país e a esperança de muitos, principalmente das minorias. Maltrata mulheres. Agride o movimento negro. Devasta imensidões porque apagam-se o brilho dos nossos olhos. Lembro-me de Cazuza porque seus heróis, diz ele, “morreram”. E deve ter doído como agora dói por aqui.
As denúncias de assédio sexual que envolvem o nome do ex-ministro abriram lacunas, feridas, e fecharam-nos novamente muitas portas e não sabemos se ainda vamos conseguir abri-las ou quando e como vamos refazê-las. Buscamos janelas para respirar. O ar de incertezas é turvo. Acreditar é também um processo, uma construção e deixa marcas. Desacreditar traz sequelas, rompe laços e desestrutura conceitos, ideologias. Desfaz nossas vitórias.
Hoje somos todos perdedores e nem sabemos ao certo qual será o nosso maior débito de vida. Muitos outros dias virão, mas essa fronteira entre aquela quinta e sexta-feira de setembro de 2024 seguirá para sempre, não sabemos se como ferida aberta ou cicatriz. O tempo passa, no entanto, às vezes um dia dura para sempre porque fomos quebrados de modo que não é possível tão logo nos consertar.
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