O que as escolas do Ceará estão fazendo para combater o racismo?
Especialistas alertam instituições a não confundirem racismo com bullying
"Cabelo de bucha", "Bombril" e "Macaco": essas são algumas das palavras utilizadas por alunos de escolas cearenses para agredir verbalmente colegas em sala de aula. Os adjetivos pejorativos caracterizam uma forma de racismo estrutural, que, muitas vezes, passa despercebido no ambiente escolar, como apontam especialistas ouvidos pela reportagem.
Todavia, desde cedo é necessário combater falas e atitudes racistas para evitar que elas tomem proporções maiores, criminosas e ocasionem episódios como o ocorrido na escola estadual Thomazia Montoro, na zona oeste de São Paulo, na última segunda-feira (27). Lá, um estudante de 13 anos atacou alunos e professores a facadas após proferir falas racistas contra um colega na semana anterior. A professora que teria defendido o aluno ofendido foi uma das vítimas do ataque. Ela não resistiu e faleceu.
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No episódio de fúria na escola paulistana, outras cinco pessoas ficaram feridas.
Para a secretária da Igualdade Racial do Ceará, Zelma Madeira, o primeiro passo para ter uma educação antirracista nas escolas é parar de confundir "bullying" com racismo. Ela explica que episódios racistas, infelizmente, irão ocorrer em todos os ambientes. Por isso, é preciso reconhecer que o preconceito existe para poder preveni-lo. A pasta foi criada pelo governador Elmano de Freitas (PT) e é inédita no Ceará. Antes, o tema era tratado dentro da Secretaria de Proteção Social (SPS).
"Eu não gosto de ficar falando de bullying. Eu não acho que a gente pode dar outros nomes para algo que está evidente: é racismo. Nós temos uma sociedade racializada, então vai acontecer em todas as relações, sejam elas sociais, econômicas, políticas e culturais. Não vai ser diferente na escola. As crianças já chegam (com preconceitos) pela socialização. Nenhuma criança é racista, ela foi socializada, nos grupos que ela participou, para ser. Então, a escola tem que estar muito antenada porque vai aparecer (casos de racismo). Não é para nós nos assustarmos, é para prevenir"
Assunto delicado
De acordo com a estudante Aline (nome fictício), do 3º ano do Ensino Médio de uma escola da rede estadual localizada na região do Cariri, o racismo ainda é tratado como um assunto delicado na sua escola, apesar de estar presente no ambiente. Negra e líder do grêmio estudantil de sua instituição, a aluna de 17 anos fala que não sofreu nenhum ataque diretamente, mas já ouviu colegas chamarem outros de "macaco" em "tom de brincadeira".
"Na maioria das vezes, a gente testemunha pessoas com brincadeiras, com falas racistas. Ele pode até achar engraçado, mas outro coleguinha que tem o racismo como discurso de ódio vai se sentir motivado para fazer o mesmo" , ressalta a estudante.
Aline narra, ainda, que uma amiga que sofreu racismo por ter o cabelo crespo passou a sofrer com inseguranças.
"Ela disse que automaticamente, quando escutou a pessoa falando essa expressão 'cabelo de bucha', o mundo caiu para ela. Na hora ela se sentiu oprimida, desenvolvendo uma insegurança com o seu cabelo. Com o passar dos dias, a insegurança foi diminuindo", conta.
Para a estudante, o tema ainda é abordado de forma superficial na escola, como se fosse uma "bomba explosiva". Ela ressalta, ainda, que sente falta de ver mais pessoas negras e pardas em postos de destaque na própria instituição de ensino.
"Acredito que se houver interações com pessoas negras desde cedo, com as culturas afro-brasileiras e africanas, nos daria mais conhecimento para discutir sobre o assunto", pontua.
A estudante Joana (nome fictício), também do 3º ano do Ensino Médio de uma escola da rede estadual no Cariri, corrobora com a tese de Aline sobre a inclusão racial no ambiente educacional. Ela aponta que sente falta de o tema ser discutido de uma maneira leve no cotidiano.
"Eu gostaria que essa abordagem fosse feita em uma conversa. (...) Mostrar que da mesma forma que eles (brancos) têm o direito de entrar numa universidade particular ou pública, os negros também têm esse direito. Acredito que todos são iguais, independentemente da cor, gênero", expõe.
A estudante também acrescenta que, talvez, o assunto não seja melhor abordado devido ao material didático, que traz poucos negros e pardos em posição de destaque. Ela pondera, no entanto, que sua instituição de ensino tenta reforça o combate ao racismo em pautas extracurriculares, como em eventos e palestras.
"Nas disciplinas da sala de aula não é tão abordado como deveria ser. Acredito que por falta de tempo ou porque as matérias dos livros não trazem muito essa questão. Mas fora das disciplinas, (a escola) aborda muito", ressalta Joana.
Posturas adotadas
Na rede estadual de ensino, o secretário executivo de Equidade, Direitos Humanos, Educação Complementar e Protagonismo Estudantil, Helder Nogueira, informa que a secretaria de Educação do Ceará (Seduc) já desenvolves atividades para construir caminhos para uma educação antirracista, abordando o tema juntos às regionais e unidades de ensino da Capital e do Interior. Todavia, ele pondera os obstáculos enfrentados pelos educados diante de um problema estruturado na sociedade. Por isso, é necessário atuar em "diferentes frentes".
"A primeira delas é a formação continuada de professores, dos trabalhadores em geral da Educação. Nos últimos anos, a gente fez uma frente de formação, que vai no campo pedagógico, que é para dar suporte aos professores e à escola como um todo. Fizemos seminários e publicações que trazem boas práticas pedagógicas desenvolvidas por próprios professores da rede no sentido antirracista, como leitura de autores negros e negras, citar personalidades negras de destaque em outros campos também, como na cultura, esporte, ciência, nesse sentindo de construir referências e auxiliar na formação do conhecimento", destaca.
Ainda segundo Helder Nogueira, a Seduc também fornece formação continuada para professores e demais profissionais da Educação para trabalhar o antirracismo, além do viés curricular, para que os profissionais não tenham atitudes racistas e saibam como agir diante de agressões étnicas-raciais.
Quanto ao material escolar fornecido na rede de ensino, o secretário executivo explicou que os livros seguem uma padronização nacional e são adquiridos pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) por meio de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
"Esse material não é customizado para cada estado, mas os nossos professores buscam ter esse olhar, do esforço de escolher livros didáticos que tenham o recorte racial em destaque", acrescentou.
Por meio de nota, a Seduc acrescentou, ainda, que implantou uma experiência piloto sobre equidade racial nas escolas e que está sendo aplicada em 200 instituições de ensino da rede estadual. Além disso, em 2021, o Estado publicou uma lei que garante 20% de cota para pessoas negras nos concursos públicos do Ceará.
Diretrizes
A secretária Zelma Madeira pontua que os caminhos para uma educação antirracista já estão postos desde a publicação da 10.639/2003, que incluiu na matriz curricular obrigatória da Educação Básica o Ensino da "História e Cultura Afro-Brasileira", para destacar a luta dos negros no Brasil. A medida foi fortalecida pela lei 11.645/2008, que acrescentou os povos originários na temática.
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Além disso, ela acrescenta que já há um plano nacional com diretrizes para implementar educação étnico-racial nas escolas públicas e privadas. O plano é dividido em seis eixos, conforme relata.
"Já tem um caminho. Eu não posso fazer de uma forma aleatória nas escolas trabalhando só as datas 13 de maio (Dia da Abolição da Escravatura no Brasil), 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Não, não, não. Isso não vai dar certo. É um plano, tem que fazer planejamento e também não pode ficar só a cargo do professor de Literatura, do professor de História", ressalta, acrescentando que irá buscar fazer um trabalho transversal com todas as secretarias.
"Às vezes as pessoas dizem de mim: 'eu gosto muito da professora Zelma, mas ela é uma pessoa que só fala nisso'. Como se o problema fosse meu, mas o problema é de todo mundo. Todo mundo tem que abraçar essa questão para a gente resolver - e a escola é uma das instituições que pode ajudar muito na construção de uma sociedade antirracista"
Fortaleza
Em Fortaleza, a secretaria Municipal da Educação (SME) informou que as ações antirracistas das unidades escolares da rede municipal "se baseiam na legislação referentes à diversidade étnico-racial (Lei 11.645/2008)"
A pasta ressaltou, ainda, que além de a temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena" integrar o currículo obrigatório das unidades de ensino, também é recomendado, por meio de orientações pedagógicas, que as unidades escolas desenvolvam ações interdisciplinares, de forma transversal, sobre o assunto.
A SME acrescentou, ainda, que implantou a lei de cotas no concurso público para professores, realizado em 2022.
Ensino Particular
O presidente do Sindicato de Educação da Livre Iniciativa do Estado do Ceará (Sinepe), Henrique Soárez), informou que as escolas particulares também seguem o que determina a legislação federal e que combatem o racismo nas instituições de ensino como "parte da formação humana", integrando pais nesse contexto.
"A gente trabalha de duas formas: primeiro na formação curricular, incluindo o tema nas atividades programadas para fazer durante o ano. A segunda parte, que eu diria que é tão importante quanto ou mais, é no acompanhamento dos alunos individualmente. A escola é um espaço de formação, a gente não recebe os alunos prontos. Então, pode acontecer de aparecer um comportamento racista, talvez por imaturidade. A gente vê alguma coisa acontecendo e a gente diz que não tá certo. Nesse trabalho, a gente vê algo acontecendo e vai lá e trabalha. Então, acho que o curricular e reativo são tão importantes quantos"
Alertas
O psicólogo cearense Bruno Teixeira, que atualmente está como mestrando em Psicologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), aponta que pais e educadores devem atuar juntos para combater sinais racistas "aos primeiros indícios".
"Aos primeiros sinais, de atitude racista é tentar inibir desde a sua concepção para que essa atitude não tome proporções como acabou tomando nessa escola de São Paulo. É interessante perceber o comportamento, como ele se relaciona com os colegas, se de alguma forma essas questões raciais estão atravessadas ou estão influenciando as atitudes dos alunos"
Ele reforça, também, a importância de trabalhar esses comportamentos com um especialista em saúde mental, de forma coordenada.
"É aí onde entram ações coordenadas, onde entra a participação do psicólogo e o auxílio do psicólogo para professor ou coordenador, para que esses agentes que compõem e formam o ambiente escolar auxiliarem esses jovens e adolescentes. Muitas vezes, o que a gente percebe é que esses jovens estão vivendo em condições que não favorecem uma boa qualidade da saúde mental, que não se relacionam bem com outras pessoas e esses reflexos acabam reverberando na escola", acrescenta.