O que aprendi com a ‘literatura do Papa Francisco’ desde que o vi de perto há 12 anos
Além das reflexões com sua oralidade, o pontífice deixa um legado escrito que nos faz sentir que perdemos um aliado

Sinto que perdemos um aliado. A partida do Papa Francisco é mais que estar sem o líder de uma igreja, é também temer que uma voz de referência humanitária se cale em meio a tantos gritos de socorro. É tempo de saudades, mas também época de cultivar legados, memórias que ajudem-nos nesta e nas próximas gerações, como humanos que somos. Sentimos a partida, mas celebramos o que permanece de Francisco em nós e para nós.
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Na segunda-feira pós-Páscoa, dia 21 de abril, acordei com aquela sensação de golpe no estômago de quando levamos um susto de dor no corpo e na alma, com a notícia da morte de Francisco, o Papa. Depois, passei a pensar em como sua história, assim como sua oralidade e literatura escrita, já me ensinaram tanto sobre fé, filosofia, direitos humanos, meio ambiente, guerra, refugiados, economia, tolerância, amor (verdadeiro) e esperança.
Por isso, quando digo que cheguei perto do Papa Francisco, refiro-me a duas coisas: a primeira é que eu realmente estive a poucos metros do pontífice em julho de 2013, durante sua vinda ao Brasil. E a outra referência é que, depois de ficar meio surpresa e inquieta com suas palavras e ações ao longo daqueles dias no Rio de Janeiro, passei a querer desvendar um pouco a sua literatura, que hoje nos é também herança.
Há 12 anos, eu costumo dizer para pessoas que me são muito próximas, que vivenciei momentos dos quais rotineiramente sinto saudade, uma boa saudade: a ida àquela Jornada Mundial da Juventude (JMJ Rio 2013), quando por 2 ou 3 noites vi o Papa Francisco a poucos metros de distância - em meio ao êxtase de pessoas, muitas nem tão ligadas à Igreja Católica -, e passei a tentar entender o que havia nele que tanto mexia em mim.
Desde que vi Francisco pela primeira vez descendo do helicóptero que o levava dos eventos oficiais da jornada mundial para o encerramento de suas atividades em Copacabana, eu também queria entender o frisson popular de se amar um papa, rito com o qual eu não estava muito acostumada.
Passei a consumir alguns de seus textos, desde livros, mensagens, homilias e exortações. Eu não estava habituada com a “literatura de um papa”, não sabia que, em vez de ficar ensinando modos clichês de viver e ser santa, ele falava, em um texto oficial como o Lúmen Fidei (Luz da Fé), sobre o ato de acreditar citando filósofos como Friedrich Nietzsche. Achei corajoso.
Eu também nunca tinha parado para pensar muito sobre a relação entre economia, refugiados e as vulnerabilidades sociais às quais estão submetidos os diferentes tipos de expatriados e como existem vários motivos para suas feridas. Parei nessa frase de Francisco em sua autobiografia: “o monstro da guerra exigia sempre carne nova”. Segui lendo, aprendendo e sentindo.
“As guerras contemporâneas afetam algumas regiões do mundo, mas as armas com que são travadas vêm de outras regiões muito diferentes, aquelas mesmas que depois rejeitam e rechaçam os refugiados gerados por essas armas e conflitos”, complementou o pontífice. Quando também li isso em sua autobiografia tive mil sensações. Baguncei-me como jornalista, pesquisadora, como gente que sou.
Depois disso, Francisco ainda escreveu que as guerras, as mudanças climáticas e a pobreza são “fábricas de imigrantes”, completando o meu raciocínio sobre o quão importante é manter acesas vozes de referência que levem essas reflexões adiante, para que, além de fé e esperança, possamos ter embasamentos consistentes para agir como indivíduos e também cobrar políticas públicas que resultem em dias melhores para todos.
Há uma herança muito maior escrita e falada (e registrada) deixada por Francisco, como o texto em que o pontífice fala que é preciso- além de ter respeito por cada pessoa independentemente de sua orientação sexual - dar condições de que os homossexuais possam “compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida”. As palavras do Papa, no texto Amoris Lætitia (A Alegria do Amor), apesar de ainda sutis, são fragmentos de avanços dentro de uma estrutura que ainda muito violenta pessoas. Talvez um eco que possa impedir alguns golpes.
Há manifestações-ensinamentos de Francisco ainda sobre o respeito e acolhida aos divorciados, pessoas também subjugadas até hoje em alguns segmentos estruturais da comunidade católica; registros sobre a autorização que deu a bênçãos aos casais do mesmo gênero; reflexões que desestruturam, junto a algumas atitudes e palavras, certas lógicas de violência contra a mulher, físicas e também ideológicas. Há algumas dessas obras em livros, mas muitas estão presentes no vatican.va.
Há muito ainda a ser lido, buscado, compreendido no que venho chamando neste texto de a “literatura e a oralidade de Francisco”, o Papa. E sei que há muitos modos de compressão das palavras por ele deixadas, pois há reflexões baseadas em fé, em costumes, tradições, mas o meu desejo é que um legado permaneça vivo e pulsando em nossas memórias, existências e atitudes, como verdadeiras estratégias de revolução: os muitos ecos de vozes dos nossos aliados. Presentes!