Com 100 anos, Estoril foi primeira casa com piscina, abrigo de soldados e bar boêmio em Fortaleza
Prédio ajudou a desenvolver a região da Praia de Iracema num período em que o litoral não era valorizado

Um dos prédios mais conhecidos da Praia de Iracema, em Fortaleza, completa 100 anos em 2025 acumulando vários usos e momentos históricos. Passando de vila familiar a abrigo de soldados norteamericanos durante a Segunda Guerra Mundial e, depois, a reduto da boemia alencarina, o Estoril atravessou o tempo se reinventando e é patrimônio material da cidade – ainda que uma réplica do edifício original.
Para recontar essa história, o Diário do Nordeste consultou arquivos do Mapa Cultural do Ceará, o repositório da Universidade Federal do Ceará (UFC) e o Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc), além de conversar com uma descendente do idealizador do prédio.
Originalmente, a Vila Morena foi construída entre os anos de 1920 a 1925, na Rua dos Tabajaras. Era propriedade do coronel pernambucano José Magalhães Porto, que chegou à capital cearense em 1915 como representante no Nordeste da empresa britânica Rossbach Brazil Company.
Ele decidiu ir contra a vontade dos próprios amigos, que o alertaram sobre os maus odores da então Praia do Peixe e pela distância do centro da cidade. Contudo, o desejo de morar perto das ondas foi maior e, pouco a pouco, o palacete de taipa foi erguido com materiais vindos de diferentes países da Europa, como Alemanha, França e Inglaterra.
O nome do lugar foi uma celebração à esposa de José, Francisca Frota Porto, a quem ele chamava carinhosamente de Morena. Além disso, ele sugeriu que as ruas próximas à Vila tivessem nomes de tribos indígenas que habitaram o Ceará, como Cariris, Guanacés, Potiguaras, Arariús e Tremembés.
“Eles eram muito bem casados, tinham muita união”, recorda a empresária Danielle Barreira Porto, bisneta de José e de Morena, a partir dos relatos compartilhados pela árvore genealógica. “Francisca, que ele chamava de Moreninha, era uma mulher de muita personalidade, e tinha muito um olhar de cuidado”.
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A família diz que aquela foi a primeira casa frente-mar e a primeira com piscina construída em Fortaleza, dando uma nova cara à região, até então habitada por pescadores. Com o tempo, o entorno passou a atrair construções de casas de veraneio da elite cearense.
Algum tempo depois, ainda na década de 1920, o nome da localidade mudou de Praia do Peixe para Praia de Iracema, após iniciativa da jornalista Adília de Albuquerque por meio de um concurso na revista Ceará Ilustrado.
Vila cedida aos Estados Unidos
Em 1945, sem mais servir como moradia para os Magalhães Porto (que a ocuparam até três anos antes), a Vila foi cedida ao United States Office (USO), para funcionar como um cassino de diversões para jovens soldados americanos da base militar montada na cidade, durante a Segunda Guerra.
Além dos jogos e da danceteria, o governo americano chegou a financiar a vinda de peças da Broadway e cantores famosos da época.
O local também irritou a opinião pública conservadora da cidade depois que passou a ser frequentado por mulheres jovens ricas ou de classe média atraídas pelos estrangeiros. Presenças constantes no Estoril, numa época em que havia poucas opções de lazer na cidade, elas foram apelidadas pejorativamente de “coca-colas”, bebida símbolo dos Estados Unidos consumida no clube.
Encontros de palavra e poesia
Com o fim do conflito internacional, em 1948, a Vila Morena foi arrendada pelos lusitanos Antônio Português e João Freire de Almeida e mudou de nome para Estoril – uma homenagem a uma povoação portuguesa na costa a norte de Lisboa.
Passou a funcionar como bar, restaurante e casa de shows, atraindo músicos, intelectuais, artistas e compositores. Em 1952, teve o comando assumido por José Alves Arruda, conhecido como Zé Pequeno, que já trabalhava no local.
No período da Ditadura Militar, também serviu como ponto de encontro para discussão de ideias progressistas e debates políticos, tornando-se ponto de atenção para as rondas repressoras.
Embora tenha sido lugar de preferência da boemia de Fortaleza, a Praia de Iracema viveu um período de decadência até os anos 1980. Só então os governos municipal e estadual deram impulso a processos de requalificação da área, com obras públicas e de incentivos a novos empreendimentos.
Aos poucos, o entorno do Estoril se tornou diferente, dando lugar a boates, restaurantes e pontos comerciais. Ainda assim, o antigo point resistia no imaginário urbano.
Com essa demonstração de força, o edifício foi tombado por meio do projeto de lei n°006/1986, sancionado pela prefeita Maria Luiza Fontenele no mês de setembro. Por sua importância histórica e memorial para a cidade, o imóvel foi desapropriado pela Prefeitura em 1992.
Memórias afetivas
É desses tempos áureos que a memória de Danielle Barreira está fresca. Vê-se menina de novo e sente a brisa da praia no corpo. “Passei parte da infância lá, ia visitar e brincar, era onde tomava banho de mar. Na época em que era locado pro Zé Pequeno, tinha várias piscininhas na praia”, conta.
Segundo ela, o prédio ainda hoje “tem valor afetivo muito grande” para a família. Grande parte dos membros se reuniu numa tarde de março passado no local, em celebração ao centenário da Vila Morena.
“Para nós, é um local de união de uma família tão grande, que moram em vários locais - Estados e até países - diferentes. É um local de reencontro”, resume, disparando: “queria que ainda fosse nossa”.
Proteção duradoura
Porém, apenas a proteção por lei não era suficiente. Em 1994, já bastante deteriorado pela ação do tempo, o prédio original de taipa desabou parcialmente após uma forte chuva. A Prefeitura decidiu construir uma réplica de mesmo estilo, mas com algumas modificações na planta e utilizando concreto armado e alvenaria.
Entre 2008 e 2012, o prédio passou por novas reformas de recuperação estrutural e se tornou um equipamento cultural da Prefeitura de Fortaleza. Além disso, desde 2017, sedia a Secretaria Municipal de Turismo (Setfor). De lá para cá, já recebeu exposições, festivais e outras apresentações artísticas.
Em 2022, a Prefeitura alterou a poligonal de proteção do equipamento, estabelecendo tanto que ele não pode ser demolido quanto seu entorno ganha distintos graus de resguardo, a fim de evitar sua descaracterização.
Segundo Danielle Barreira, o reencontro da família para o centenário “fez nascer várias possibilidades”. No momento, estão em produção um documentário e um livro sobre o local. Outra ideia, ainda em amadurecimento, é montar um pequeno museu com peças históricas dos fundadores.
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