Guerras, dinheiro e ferrovias: como a formação dos bairros reconta a Fortaleza de 299 anos

Uma cidade múltipla. Comemorando 299 anos neste dia 13 de abril, Fortaleza já deixou há tempos a imagem de cidade apartada do desenvolvimento do Ceará. Hoje capital do Estado, referência na Região Nordeste e potência brasileira em áreas como educação e turismo, abrigando 121 bairros e 2,4 milhões de habitantes, ela não teve formação simples. Sua história envolve massacres, trens cheios de algodão e muito investimento.
A construção do território de Fortaleza como é conhecido atualmente passa por interações entre três núcleos simultâneos: o Centro, na região praiana; a Vila de Arronches, atual Parangaba; e a Vila de Messejana. Antes separados, eles tiveram um longo processo de mudanças e reformas até serem unificados num só mapa.
Para montar esse quebra-cabeças, o Diário do Nordeste recorreu a documentos do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico); publicações da Coleção Pajeú, da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor); e repositórios da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e do Observatório das Metrópoles.
Além disso, conversou com Gleudson Passos, doutor em História Social e professor da Uece, e Mariano Júnior, professor de história e autor de materiais didáticos na área.



Esta é a primeira reportagem do especial “Fortaleza, quantas histórias...”, veiculada ao longo do mês de abril, quando se celebram os seus 299 anos. A ideia é contar a história da Capital a partir de aspectos que ajudam a construir a memória da cidade, como a criação dos bairros, a arquitetura, as migrações e os motivos do crescimento da população.
Acompanhe abaixo os principais acontecimentos da cidade em cada século e, em seguida, os detalhes do processo histórico que a criou:
Fortalezas esquecidas
O primeiro colonizador do Ceará, Pero Coelho de Sousa, aporta em 1603 na região correspondente à Barra do Ceará. A primeira tentativa de fixação fracassa. Somente em 1612, o português Martim Soares Moreno inicia o processo de ocupação do litoral a partir da construção do Forte de São Sebastião, na embocadura do Rio Ceará.
O local é próximo a uma aldeia de indígenas potiguara. Apesar de um amistoso contato inicial, eles conflituam com os portugueses por sofrerem massacres e escravidão. Por conta disso, o Forte é transferido pelo holandês Mathias Beck para a atual localização da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, às margens do Riacho Pajeú, em 1649. Cinco anos depois, após mais lutas, o controle das terras é devolvido a Portugal.
Para prevenir novas tensões e controlar os povos nativos, a Coroa mobiliza a organização de aldeamentos em Arronches (Parangaba), Paupina (Messejana) e Soure (Caucaia). Em 1662, tem-se início a retirada de aldeias das proximidades do Forte para terrenos mais afastados, tornando a zona portuária livre para os colonizadores.
Nos aldeamentos, padres jesuítas são enviados para “catequizar” os residentes. Com o tempo, a administração colonial eleva muitos desses locais à condição de vilas, com administrações próprias subordinadas à Coroa. Assim, surge a Vila Nova de Arronches, em 1759, seguida pela Vila Nova de Mecejana, um ano depois. Os termos são homenagens dos colonizadores a municípios de Portugal.



No caso de Messejana, a história já durava quase um século: em 1663, os jesuítas haviam-na batizado de São Sebastião de Paupina. Embora incipiente, com uma pequena capelinha, poucas casas de taipa e algumas ruas, era importante via de escoamento do gado, numa época em que a economia girava em torno do couro e do charque.
Tanto Parangaba quanto Messejana têm origem em trabalhos jesuíticos e em áreas de passagem de mercadorias. Tanto é que, até hoje, você tem grandes feiras nesses bairros. Esse comércio de rua e a devoção religiosa formam os pilares da ocupação desses bairros.
Já o Centro, elevado a Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção em 13 de abril de 1726, não passa de um pequeno aglomerado de casas e pequenos comércios. É apartada, inclusive geograficamente, do comércio dos sertões, cuja principal atividade econômica é a pecuária (que entraria em declínio com as secas dos anos de 1790), e nem se compara a Recife e Salvador, já importantes centros urbanos da Colônia.
Tampouco tem relevância frente a outras vilas do Ceará, como Icó, Sobral, Aracati e Aquiraz. É com esta última, primeira vila reconhecida na província, que a Vila do Forte disputa também a influência política. Porém, um fato favorável à futura capital é a revolta dos indígenas Cariri, oriunda do Rio Grande do Norte.
“Eles saíram arrasando as fazendas, reagindo ao que faziam nas suas terras, e chegaram até Aquiraz. E a população do Aquiraz, que administrava a vila - vereadores, juiz ordinário, capitão-mor -, foi se refugiar em Fortaleza. Foi criado outro pelourinho em Fortaleza”, explica o professor Gleudson Passos.
Cidade de areia
O território cresce às margens do Pajeú. A ocupação tem uma via principal que nasce no Forte e é chamada de Rua Direita dos Mercadores. Ela se liga à Estrada de Messejana e à Estrada do Lagamar, e tem acessos às estradas de Soure e de Arronches.
Em 1810, a planta do inglês Henry Koster descreve uma pequena vila sobre solo de areia, com cerca de 3 mil habitantes. Tem dois núcleos: um centro com certa ordem, à esquerda do Pajeú (bairro do Comércio), e outro ligado à atividade portuária, à direita (bairro do Outeiro). Entre o mar e as barrancas, fica o bairro da Praia. Ao redor deles, negociantes adquirem chácaras e sítios, batizados como Tauape, Aguanambi, Cocó e Jacarecanga.
Nesse período, a Vila funciona como centro captador e exportador do algodão para o mercado externo. É esse produto que impulsiona seu processo de urbanização na primeira metade do século XIX, pois é valorizado no mercado internacional durante a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. “O algodão cearense, mais resistente, passa a ter absorção do mercado inglês, consumido pelas fábricas durante a Revolução Industrial”, detalha Gleudson Passos.



A lavoura algodoeira cobre as serras de Pacatuba, Baturité e Uruburetama, e é escoada pelo mar de Fortaleza. Por isso, a Vila também cresce acompanhando as antigas estradas que dão acesso a ela, como Soure (futura BR-222), Arronches (futura Avenida da Universidade), do Fio, que corta Messejana, e as de Canindé e Baturité.
Além disso, com a autonomia administrativa da Capitania do Ceará em relação a Pernambuco, conquistada em 1799, administradores e governantes passam a habitar na capital. Por isso, ela passa a ganhar mais investimentos. Em 1823, o novo imperador Pedro I eleva por decreto todas as vilas que são capitais à categoria de cidade. Assim, é criada a Fortaleza de Nova Bragança.
Início da urbanização
Nas décadas de 1850 e 1860, as plantas mostram expansões de ruas que se dirigem a sul, leste e oeste. Nesse período, já existem palhoças ladeando as vias, destinadas à moradia de pessoas mais pobres. O plano do arruador português Antônio Simões também revela o desejo de expandir a cidade para além do Pajeú (rumo ao Mucuripe), na área do Outeiro.
Outro fator de impulsão é que muitas famílias abastadas do Centro procuram lugares afastados para adquirir sítios de veraneio ou descanso. Além disso, vem a construção da primeira ferrovia do Ceará, a partir de 1870, ligando Fortaleza a Pacatuba. A novidade ajuda a desenvolver Arronches, que ganha ruas para facilitar a locomoção de pessoas e cargas.
A abertura das primeiras ruas e avenidas e a construção de prédios modernos tira parte dos moradores pobres que viviam em casebres apertados ou cortiços. Eles são empurrados pelo poder público para outras áreas que, no futuro, serão chamadas de favelas. O objetivo era desenvolver áreas específicas: Praia e Centro.
As ferrovias também são ponte para o grande processo migratório de camponeses causado pela grande seca de 1877 e pela epidemia de varíola. Em 1878, os relatos já mostram 13 abarracamentos com milhares de pessoas: Meireles, São Luiz e Aldeota, Pajeú, Boa Esperança, Alto da Pimenta, Benfica, São Sebastião, Tejubana, Alto do Moinho, Lagoa Seca, Jacarecanga, Via-Férrea e Engenheiros.
Com tanta gente, os flagelados são empregados em obras públicas, na construção de calçamentos, estradas e poços, e na limpeza da cidade. Uma das portas de entrada da cidade, Messejana também passa a abrigar retirantes em conjuntos como Palmeira I, Parque Santa Maria, João Paulo II, São Miguel, São Bernardo e Nova Conquista.
Em 1875, uma nova planta mostra expansão para a região sul, porque os trilhos servem como indutores da ocupação do eixo ferroviário por indústrias têxteis. A cidade passa de 15 para 39 ruas, mas o Centro ainda concentra instituições civis, militares e políticas.
Já em 1888, com 50 ruas, a cidade se organiza ao redor de grandes chácaras (sobretudo Jacarecanga e Benfica), mas com maior ocupação das áreas leste, oeste e sudeste. Pela primeira vez, é mapeado o Arraial Moura Brasil, atrás da Praça da Estação e à beira da praia, onde residia uma parcela de trabalhadores pobres.

Prosperidade e Guerra
Após a instalação da República, em 1889, Fortaleza continua se modernizando. Com uma economia orientada pelo comércio marítimo, são iniciadas as obras da Ponte Metálica, entre 1902 e 1906. Em 1909, chegam os primeiros automóveis. Em 1912, a empresa Light & Power Company inicia o fornecimento de energia elétrica para a operação de bondes. Até 1911, mais dois bairros aparecem nos mapas: Porto das Jangadas, embrião da Praia de Iracema, e Alagadiço Grande, no caminho para Caucaia.
O deslocamento da ferrovia para a Av. José Bastos, em 1919, amplia a zona oeste da cidade. A partir da década de 1920, também se inicia a concentração de fábricas no Setor Industrial da Av. Francisco Sá, bem como a construção de vilas para operários. Em 1922, a capital já conta com 81 ruas e delimitações dos bairros Benfica, Fernandes Vieira (Jacarecanga), Praia, Outeiro (Aldeota), Matadouro (Farias Brito) e Tauape.
Fato marcante desse período é a incorporação de Arronches e de Messejana, em 1921, por decisão do presidente da província do Ceará, Justiniano de Serpa. Antes cidades independentes, elas passam a ser oficialmente distritos de Fortaleza. Para o professor Gleudson Passos, o fato não representou uma surpresa.
“Ao longo do tempo, elas conseguem uma expressão local, principalmente em relação às rotas de comércio e feiras que se integravam a outras vilas pelas estradas do gado, mas não chegam a ter arrecadação suficiente para se tornarem cidades”, entende.
O historiador Mariano Júnior complementa: “a anexação está sim vinculada à falta de capacidade de sustento delas de forma independente, mas é óbvio que anexar também significa ampliar território, população, arrecadação de impostos e capilaridade do poder, aumentando a autoridade dos governantes”.
Em 1926, são firmadas as primeiras linhas de ônibus. A original vai da Praça do Ferreira ao Matadouro Modelo, no Jardim América. Outras partem do Centro rumo à Brasil Oiticica, Carlito Pamplona, Jacarecanga, Otávio Bonfim e São Gerardo. Em 1931, inaugura-se o calçamento da estrada que liga a Jacarecanga à Barra do Ceará (hoje Av. Francisco Sá).
Na planta de 1933, surgem loteamentos no Floresta e no São Gerardo. A população mais pobre passa a habitar as proximidades da linha férrea na Jacarecanga e Farias Brito. Na mesma época, há maior ocupação da faixa litorânea com barracos no arraial do Pirambu e nas favelas do Cercado de Zé Padre, Mucuripe e Lagamar.
A burguesia começa a estruturar a Aldeota como espaço de diferenciação social longe de áreas pobres. O Código de Posturas do Município de 1932 passa a induzir a verticalização da zona central ao permitir prédios de dois ou mais pavimentos.
Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, no início de 1943, os Estados Unidos constituem uma base no bairro Pici e um aeroporto no Alto da Balança, conhecido como Cocorote. Em 1947, a Ponte Metálica deixa de funcionar definitivamente e a atividade portuária é transferida para o Mucuripe, atraindo outra área de ocupação. Em 1955, é inaugurada a Usina Termoelétrica do Mucuripe, ao redor da qual se forma o Serviluz, com operários e pescadores.
Contudo, esse processo não é tão organizado. Para a pesquisadora Margarida Andrade, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC e autora do livro “Fortaleza em perspectiva histórica”, a partir dos anos 1930, o poder público perde a capacidade de indução e condução da urbanização, que é capitaneada pela iniciativa privada.
Segundo ela, grandes áreas foram loteadas nos eixos oeste e sudoeste da cidade “em colcha de retalhos”. Assim, a Prefeitura teria deixado “ao sabor dos interesses dos particulares a colagem de novos loteamentos nas áreas envoltórias da cidade, justapostos de forma ‘anárquica’ e não planejada”.



Metrópole extrapola limites
O crescimento vertiginoso da Capital, porém, só se dá após a seca de 1958, quando atrai ainda mais pessoas do interior do Estado. Com uma enorme população sem emprego, a cidade se expande sem planejamento e infraestrutura de serviços, gerando favelas e bairros periféricos. A região da Parangaba, por exemplo, incha e é ocupada desordenadamente.
Nos anos 1960, a especulação imobiliária volta os olhos para a faixa marítima, renegada por décadas. Em sequência, ocorrem a instalação de vários clubes sociais no litoral, a construção em 1963 da Avenida Beira-Mar, a valorização do bairro do Meireles, e a formação dos calçadões da Praia de Iracema, do Futuro e da Leste-Oeste, nos anos 1980.
A região da Barra do Ceará ganha vários conjuntos habitacionais nos anos 1970, como o Polar, dos Bancários e Nova Assunção. Em paralelo, adeptas da verticalização, famílias de classe média sem orçamento para adquirir imóveis na Aldeota passam a buscar áreas como Varjota, Papicu e Praia do Futuro.
Com a instalação de mais linhas de ônibus, a população passa a ter opção de residir em locais mais afastados do Centro, principalmente nas porções oeste e sul da Capital.
O período de 1960 a 1980 é marcado pela política de industrialização da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) via apoios fiscais. Instalam-se as primeiras indústrias incentivadas e conjuntos habitacionais na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), criada em 1973, provocando a expansão migratória para cidades como Caucaia e Maracanaú, em função do trabalho formal e informal.



Veja, abaixo, os anos de reconhecimento oficial da nomenclatura de bairros atuais, conforme o sistema legislativo da Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor):
- 1948 - Carlito Pamplona
- 1951 - Padre Andrade
- 1952 - Amadeu Furtado
- 1956 - Couto Fernandes, Fátima e bairro Ellery
- 1959 - Dias Macedo
- 1963 - Henrique Jorge
- 1965 - Álvaro Weyne
- 1966 - Rodolfo Teófilo
- 1967 - Demócrito Rocha e Dionísio Torres
- 1968 - Luciano Cavalcante, Olavo Oliveira e Manuel Sátiro
- 1970 - Jardim Guanabara
- 1971 - Autran Nunes e Conjunto José Walter
- 1975 - Moura Brasil e Cristo Redentor
- 1976 - Boa Vista/Castelão
- 1977 - João XXIII
- 1978 - Dom Lustosa
- 1981 - Parque Genibaú
- 1982 - Presidente Vargas
- 1983 - Edson Queiroz
- 1988 - Parquelândia
- 2000 - Maraponga
- 2003 - Planalto Ayrton Senna
- 2005 - Bairro de Lourdes
- 2007 - Jardim Iracema, Manuel Dias Branco e José de Alencar
- 2008 - São Bento
- 2009 - Pan-Americano, Bela Vista, Parque Santa Maria, Passaré e Granja Portugal
- 2019 - Novo Mondubim e Aracapé
Desde os anos 1990, a RMF se amplia com a incorporação de novos municípios e modernização de rodovias, portos e aeroportos. Para atrair investimentos, sucessivos Governos decidem abrir, duplicar e ampliar estradas, como a CE-040, CE-060, CE-085, BR-116, BR-222 e BR-020, assim como anéis viários.
Ainda hoje, Fortaleza cresce rumo a bairros do leste e sudeste, como Edson Queiroz, Luciano Cavalcante, Cidade dos Funcionários, Cambeba e Messejana. No entanto, o professor Gleudson Passos aponta desigualdades históricas e sugere tanto mais equidade quanto melhor distribuição dos serviços públicos.
“Nós sabemos que a área leste é mais privilegiada em termos de equipamentos e de segurança, até porque a população de classe média-média, média-alta, está situada nela. Já a região sul e a região oeste sofrem mais com o descaso, com a pouca atenção. Temos permanências de um certo abandono, por parte dos poderes públicos, de áreas mais afastadas, seja do lado relacionado à Parangaba ou do relacionado à Messejana”, avalia.