Fortaleza teve 'contrato com a lua' por quase 90 anos; entenda

Sistema pioneiro de iluminação pública à base de lampiões dependia das fases do satélite

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Praça do Ferreira na década de 1920, quando os lampiões funcionavam a gás carbônico.
Foto: Arquivo Nirez

Se a energia elétrica hoje parece um recurso comum, não o era na Fortaleza de 170 anos atrás. Naquela época, a iluminação pública dependia de lampiões, mas apenas nas principais vias da cidade. E, mesmo assim, ainda havia cláusulas específicas que dependiam de um “contrato com a lua”.

Assim ficou conhecido, entre jornalistas e cronistas do período, um acordo feito entre a administração municipal e a empresa responsável por acender e apagar os lampiões, diariamente.

Nas noites comuns, os dispositivos permaneceriam ligados das 18h ao amanhecer do dia seguinte, ou até a lua sumir do céu. Porém, em noites de lua cheia, os lampiões deveriam ficar apagados, já que o satélite forneceria luz suficiente. 

No livro “Centro - O ‘coração’ malamado”, que rememora o desenvolvimento do bairro com esse nome, o escritor Raymundo Netto descreve que, até quase a metade do século XIX, as noites eram muito escuras, “como breu”. 

“Os mais pobres se viravam com candeias de azeite ou velas de carnaúba, enquanto aqueles com maiores recursos, além das candeias e das velas, mantinham arandelas, com lâmpadas fraquinhas, penduradas”
Raymundo Netto
Escritor e jornalista

Era comum, segundo os relatos, as pessoas dormirem às 20h e as ruas ficarem desertas. Arquivos de João Nogueira no Instituto do Ceará mostram que o Conselho da Província propôs a iluminação pública em 1834, com a preocupação de que a escuridão favorecesse a ocorrência de crimes.

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A situação só começou a mudar em 1º de março de 1848, quando o coronel português Vitorino Augusto Borges foi contratado para instalar 44 lampiões na cidade, devendo mantê-los “limpos e brilhantes”, na gestão de Casimiro José de Moraes Sarmento. Eles eram à base de azeite de peixe.

30
metros era a distância entre os lampiões, de acordo com João Nogueira. Eles eram implantados em ziguezague e ficavam a 2,40 metros do chão.

“Nas noites de lua, não eram acesos, porque se imaginava que a luz da lua já era suficiente para iluminar aquela pequena vila e não precisava gastar o azeite, que vinha de fora e era um produto oneroso”, explica Patrícia Xavier, coordenadora pedagógica do Museu da Indústria, no Centro, onde está em cartaz a exposição "Eletricidade: história, memória e futuro do patrimônio energético no Ceará".

Mudanças na iluminação

Quase 20 anos depois, em setembro de 1866, o azeite de peixe deu lugar ao gás carbônico. No mesmo período, as praças ganharam preferência em vez das ruas na instalação de mais lampiões. 

Na época, foi criada a função do “acendedor de lampiões” oficial. Francisco, ou “Chico Lampião”, atravessava o Centro carregando uma escada e fósforos e ligava, um a um, os bicos de gás, clareando as ruas. O trabalho, claro, ficava condicionado às fases da lua.

Segundo Patrícia Xavier, a principal diferença era que a chama acesa, como uma vela, emitia uma luz muito oscilante, ao contrário da constância da energia elétrica.

Esta só chegou à Capital cearense em 1912, pela operação da empresa Light, que passou a fornecer energia para alguns comércios e residências e para a alimentação de bondinhos. Anos depois, ela também conseguiu o domínio da iluminação pública.

Legenda: Bondinho elétrico percorrendo o Centro de Fortaleza em 1930.
Foto: Arquivo Nirez

Assim, o “contrato com a lua” só foi rescindido 87 anos após os primeiros lampiões, quando finalmente a eletricidade ganhou espaço na cidade.

Em maio de 1933, ela foi implantada em caráter piloto na Rua Formosa (hoje Barão do Rio Branco). Em dezembro de 1934, chegou à Praça do Ferreira, e, depois, a outras ruas do entorno. Em outubro do ano seguinte, a Companhia de Gás finalizou o fornecimento de luz.

Legenda: Praça do Ferreira em 1936, quando a energia elétrica já havia sido integrada à iluminação pública.
Foto: Arquivo Nirez

Desta forma, a iluminação elétrica se integrou a uma série de modernizações pelas quais a Capital vinha passando, incluindo a substituição da locomoção em burros pelos bondes.

Serviço

Exposição "Eletricidade: história, memória e futuro do patrimônio energético no Ceará"
Onde: Museu da Indústria - Rua Dr. João Moreira, 143 - Centro
Quando: terça-feira a sábado, das 9h às 17h, com entrada até às 16h30 / domingos das 9h às 13h, com entrada até às 12h30
Visitas guiadas: sábados às 10h30 e 13h30 / domingos às 10h30
Grupos maiores de 10 pessoas precisam agendar visita pelo telefone (85) 3201-3901
Entrada gratuita

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