A guerra nunca acaba. Os combates nos quais países se colocam uns contra os outros chegam ao fim, os documentos estabelecem esse marco, mas o horror dos conflitos segue ecoando. Tanto nas sociedades imediatamente atingidas por eles, com gerações mutiladas física e emocionalmente, como em outros agentes que nessas tragédias se inserem ainda que de forma periférica. Descobri, ainda criança, essas permanências.

Sou neta de ex-combatente da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, neste mês, escrevi uma série jornalística sobre os 80 anos do fim do combate, publicada durante dois dias no Diário do Nordeste. Assim como milhares de outras  famílias brasileiras (do Brasil, foram enviados 25.334 combatentes rumo à Itália) e centenas de cearenses (foram 377 pracinhas naturais do Estado), uma das maiores tragédias da história mundial há décadas atravessa a nossa anônima vivência. 

O Diário do Nordeste contou, por meio de um especial com conteúdos publicados na quinta-feira (8) e sexta-feira (9), fatos sobre a participação do Ceará no maior conflito bélico do mundo, cujos efeitos e repercussões mobilizam a história, e a necessidade de preservação desta memória é evidente. Este texto de hoje foi publicado, inicialmente, em uma newsletter especial, destinada aos assinantes do Diário do Nordeste.

Quando meu avô, Antônio Simão do Nascimento, partiu do Ceará rumo à Itália - eu nasceria 44 anos depois -, ele tinha pouco mais de 20 anos, morava em uma comunidade da zona rural de Itapipoca e trabalhava na agricultura. Ao completar 18 anos, sertanejo e com esperanças de acesso a outras vivências tentou ingressar no Exército, mas não foi recebido. 

Anos depois, veio a reviravolta. Após pressões sociais e políticas, e na busca por equilibrar interesses, o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, decidiu em 1942 entrar no conflito ao lado dos países Aliados (grupo que incluía Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos) contra os do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), dominados pelo nazifascismo. Assim, jovens “dispensados” no interior do Ceará passavam a ser necessários. E em uma das missões mais duras e aterrorizantes para a humanidade: ir para guerra.  

A notícia da adesão do Brasil à Guerra correu de cidade em cidade, atravessou fronteiras, ressoou nas comunidades rurais. “o Exército agora buscava os os jovens nascidos em 1921. Naquele momento, os jovens ficaram cientes que poderiam ser chamados a qualquer momento”, relatou meu avô, em um livro escrito à mão por ele mesmo, quando estava prestes a fazer 80 anos. Uma cópia deste escrito foi entregue a cada filho.  

Legenda: Imagem do ex-combatente cearense Antônio Simão do Nascimento na Itália ao fim da Segunda Guerra Mundial
Foto: Acervo pessoal Família Nascimento

A Guerra chegou para ele aos 23 anos e, no correr do meu percurso, entrou em meus pensamentos ainda na infância, justamente, por esse rastro real, palpável e concreto: o meu avô era a história viva! Entendi, desde cedo, que a força invisível da lembrança, repassada por gerações, é elemento capaz de moldar nossa percepção de certos acontecimentos, fenômenos e fatos, e pode, inclusive, aumentar ou reduzir a nossa sensibilidade diante deles.  

Na minha trajetória, antes mesmo da Segunda Guerra entrar porta adentro via ensino escolar formal, eu já tinha visto fotos do meu avô jovenzinho acampando, acocorado próximo a barracas com outros combatentes, trajando farda militar em um país chamado Itália. Já tinha visto certificados que falavam na guerra, cartões postais daquele país - as paredes da casa da família ainda hoje guardam quadros com esses resquícios. Tinha ouvido a sigla FEB (Força Expedicionária Brasileira) ainda que não a decodificasse. 
 
Entendi depois que aquele conjunto de coisas era evidência de que “o vovô foi pra guerra”. Os registros visuais constavam em um álbum quase artesanal organizado por ele mesmo, com fotos enumeradas manualmente. Seu Simão era um homem absolutamente organizado. Eu, inclusive, o ajudei algumas vezes a recuperar as colagens. Na minha família, todo mundo que veio antes de mim, de alguma forma, atualizava e preservava essas lembranças.  

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E se criança eu ainda não tinha exatamente noção do quão grave, horrorizante e amedrontadora é a guerra, uma das imagens que vi no álbum, creio que me introduzia (ainda que inconscientemente) nesse discernimento. A foto do ditador italiano Benito Mussolini, morto, junto a outros líderes fascistas, pendurado de cabeça para baixo. A imagem, clássica e violentíssima, é um marco simbólico da “derrota fascista”. Mussolini morreu em 28 de abril de 1945, dias antes da derrota dos seus aliados nazistas na Segunda Guerra Mundial. 

Eu e a geração de crianças da minha família nessa época (irmã, primos e primas) tínhamos pavor desse registro que, no mundo, é um ícone imagético. Quando folheava o álbum, eu passava rápido por ela. Anos mais tarde, compreendi o peso e a simbologia da mesma. A história oficial, mais uma vez, parecia muito próxima.

Em outro ponto, enquanto discursos oficiais propagaram por anos a ideia de pracinhas esbanjando bravura, aprendi também com meu avô, que foi um homem forte e sensível, um sertanejo esperançoso alçado a combatente, que ousadia e coragem não eram imperativos uniformes naquele momento. Os aspectos trágicos do contexto, naturalmente, acionavam inúmeras dimensões da experiência humana, e medo e tristeza eram constantes.  

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Legenda: Imagens de pracinhas cearenses na Segunda Guerra
Foto: Acervo pessoal Família Nascimento

Meu avô escreveu sobre sua família entrar em “estado de choque” com a convocação. Falou que no dia do embarque para o Rio de Janeiro (e depois para a Itália), na noite de Natal de 1944, houve “tristeza e choro, lamentos e incertezas de quem partia sem saber se um dia voltaria”. No cais do porto, em Fortaleza, “gente empunhava lenços. Muitos choros e gritos”. 

Entendi que falar sobre guerra é, de partida, lembrar de sofrimento e sacrifícios. De dores, tensões e angústias. É atravessar misérias e injustiças. Desalento. No navio, ele partiu junto com outros 5.022 combatentes, e uma tripulação de mais de 1.000 homens. Em cada compartimento, a capacidade era para 150 passageiros, registrou no livro. 

“À noite, não era permitido fumar, nem acender as luzes para não se dar nenhum sinal de que o navio transportava tropas, e assim, evitar que o inimigo, através de espionagem secreta, atacasse com torpedos submarinos ou mesmo com bombardeio aéreo. Muitas vezes, fazia-se treinamentos de abandono  do navio, tomando botes salva-vidas. Na primeira vez, foi um verdadeiro clamor, com corre-corre, sem saber o que realmente estava acontecendo”, consta nos relatos sobre a viagem que durou 17 dias até Nápoles, na Itália. 

Os clamores por comida feitos por crianças e adultos na Itália também eram rememorados reiteradamente no recontar da história da Guerra. No acampamento, junto a outras 5 mil pessoas, meu avô dormia em barracas com até 10 combatentes dentro. O local onde ficou abrigava o centro de treinamento e os serviços de saúde. A alimentação era baseada em conservas enlatadas. 

Os brasileiros enfrentaram um frio de 4 graus negativos, com os nordestinos padecendo mais. Meu avô não chegou a ir para o front da Guerra, mas dentre as diversas missões de retaguarda que realizou, chegou a conduzir um preso desertor de uma localidade para outra.  

Na noite de 28 para o dia 29 de abril de 1945, na região ocupada pelos cearenses, os alemães se entregaram às forças brasileiras. Mas a notícia mais esperada só chegou no dia 8 de maio: o fim da Guerra na Europa. Gritos, agora de esperança e alegria. “Comemoração com martini e vermouth (espécie de vinho), pois não havia cachaça”, apontou. 

Legenda: Imagem do navio que transportou as tropas brasileiras na Segunda Guerra Mundial
Foto: Acervo pessoal Família Nascimento

Outra memória que reverbera como curiosidade é  sobre como as comunicações ocorriam naquele período. Enquanto estavam acampados, registrou por escrito meu avô, “os combatentes só recebiam notícias via carta e também mandavam, mas não podia comunicar o que estava acontecendo exatamente”. 

Os envelopes eram entregues abertos  e a censura só fechava após a revista, recordava ele, e acrescentou: “imagine só as cartas para as namoradas. Os caras sabiam de tudo". Os relatos da Guerra, na família Nascimento, nos fizeram pensar também sobre os amores. As confidências. Os afetos que a Guerra tolhe. Destrói.  

No retorno, outra reflexão. A saída da Itália ocorreu no dia 4 de setembro e a chegada ao Rio foi em 17 de setembro. “Ninguém conseguiu mais dormir. Uns tocavam, outros cantavam, outros dançavam, outros gritavam: o Brasil vem rolando. Era um barulho ensurdecedor. Parecia que aquilo não era verdade. Era um sonho”, registrou meu avô, acionando outra perspectiva: a de celebração humana, de corpos que cobrados a ser rígidos, também experimentam a leveza de comemorar. 

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Legenda: Imagens de pracinhas cearenses na Segunda Guerra
Foto: Acervo pessoal Família Nascimento

As memórias de meu avô reverberam na minha família de várias formas. Seguem sendo recontadas e registradas entre os filhos, netos, bisnetos e nas pessoas amadas que nos circundam. No campo formal, já foi tema de trabalhos acadêmicos, textos, matérias jornalísticas produzidas por filhos e netas e, no movimento mais recente, se tornou um livro. Uma obra organizada pela família e lançada em 2017 a partir do manuscrito deixado por vovô Simão, chamado “Memórias do meu passado”. 

Essa memória, que é dele, é de minha família e de tanta gente que também foi envolvida no combate de envergadura imensurável; é também sua, que se dispôs a ler. Se tornou uma memória compartilhada, justamente porque é tecido costurado pelos registros, sentimentos, escutas e percepções construídos coletivamente. 

Em outro momento, que também não esqueço, testemunhei a perturbação e desconforto de meu avô já idoso - um homem sempre muito sereno - diante das guerras televisionadas, como a do Afeganistão em 2001. Sinal evidente de que as guerras não acabam. 

As lembranças de meu avô abrem portas para entender a humanidade que as guerras corroem, reforçam o repúdio a violência e a crueldade. Ajudam a dimensionar melhor nosso próprio tempo. E mais ainda: demarcam a necessidade da defesa incessante da paz.