Referências do conflito são ignoradas

Embora as lembranças da 2ª Guerra estejam presentes na Capital, a população permanece alheia a estas marcas

Escrito por
Thatiany Nascimento - Repórter producaodiario@svm.com.br
Legenda: O Museu do Montese é o único equipamento com acervo da Guerra
Foto: Foto: Tiago Gadelha

"O Brasil 'rolou', até que, na madrugada do dia 17, começamos a avistar as luzes do Rio de Janeiro e ninguém conseguiu mais dormir [...]". O relato registrado em um livro manuscrito pelo ex-combatente cearense Antônio Simão do Nascimento dá conta do clima entre os soldados brasileiros ao retornarem da Segunda Guerra. Festa sem dimensão. Renascimentos. Situações que podem ser revisitadas hoje graças ao registro dos acervos pessoais. Porém, a população permanece alheia a estas memórias. As marcas do combate mundial presentes no Ceará seguem ignoradas.

>'Memórias vivas' da 2ª Guerra defendem necessidade de paz

Bairros, avenidas, monumentos fazem referência ao conflito que contou com um efetivo de 377 cearenses. Restos de equipamentos erguidos em Fortaleza, durante o combate, ampliam a lista de espaços físicos que fazem referência ao maior conflito bélico da história mundial.

Atrelado ao desconhecimento destas referências, há dificuldade de estruturação de "espaços simbólicos" que possam garantir a memória permanente do combate que vitimou fatalmente 451 brasileiros, dentre eles, seis cearenses. "As famílias não têm a devida apropriação desta memória e isso pode acabar se perdendo", afirma o presidente da Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira - Regional Fortaleza, coronel Francisco de Assis e Sousa.

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Na Base Aérea de Fortaleza, na época do conflito, havia um pista de pouso para aviões

Falta de estrutura

A Associação contava com um vasto acervo sobre a participação dos brasileiros no combate, porém, há cerca de três anos, a sede, localizada no bairro Benfica, foi assaltada. A entrada do assaltante provocou danos ao teto do prédio e, com a chuva, os bens foram comprometidos. Desde 2012, o Museu de Montese - nome em referência ao conflito vencido pelos brasileiros nesta região da Itália - funciona de forma tímida em uma sala no Aquartelamento General Tibúrcio (AGT), localizado no Bairro de Fátima.

O local abriga capacetes de soldados, fardamentos, estojos, lanternas, cápsulas de metralhadoras, fotografias, livros e manuais. A ideia, segundo o coronel Assis, é transformar parte do AGT em um complexo de museus que acomode, além de materiais da Segunda Guerra, acervos sobre as Forças Armadas como um todo. "Ainda acredito que os filhos e os netos dos veteranos da FEB (Força Expedicionária Brasileira) podem iniciar esse movimento de preservação", defende.

Segundo o presidente da Associação, a entidade também tem procurado sensibilizar os governos municipal, estadual e federal a fim de conseguir recursos para garantir a preservação integral deste acervo e da "história de tão grande importância".

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Já na Praça da Bandeira, o Obelisco da Vitória foi erguido em 1943

Educação

O conflito que durou de 1939 a 1945, e envolveu mais de 70 países, também provocou mudanças no comportamento da população de Fortaleza. Enquanto soldados brasileiros guerreavam na Itália, na capital cearense - cujo contingente populacional era de 180.185, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), equivalente a 7% do atual contingente - tinha os hábitos alterados. Estabelecimentos comerciais de alemães e italianos situados na cidade foram roubados durante a Segunda Guerra, além da ocorrência de corte de luz à noite para dificultar possíveis ataques dos países inimigos contra a orla marítima brasileira.

"A vida das pessoas em Fortaleza também foi afetada. Havia simulações de ataques na cidade. A qualquer momento seu filho poderia ser chamado. A guerra é uma tensão", ressalta o professor doutor em História e coordenador do Mestrado Acadêmico de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Altemar da Costa Muniz.

Para o historiador, uma das estratégias a serem usadas na conversação desta memória é o estímulo ao estudo do patrimônio vivo, que são os pracinhas. "Eles estão em idade avançada, mas temos que fazer esse registros orais. Incentivar os alunos a conhecerem esses depoimentos", opina.

Atualmente, a Associação dos Veteranos de Guerra estima que há cerca de 40 veteranos cearenses - soldados e praças que foram à Itália - e 60 ex-combatentes - efetivo que ficou no País para defender a orla - vivos.

Acervos pessoais são novas vias de pesquisa

Entrevista Ana Rita Fonteles - Professora do Departamento de História da UFC

Como a manutenção de acervos pessoais pode colaborar para preservação da memória coletiva?

Com as mudanças de perspectiva no campo do fazer histórico, novos sujeitos, temas e problemas se colocaram como possíveis e interessantes para o campo da pesquisa. Os acervos pessoais tornaram-se importantes, por exemplo, para pensar outras dimensões da política que interligassem os espaços público e privado, para pensar práticas de escrita e leitura e etc.

A má conservação das referências físicas pode "apagar" a relevância dos fatos para gerações futuras?

Infelizmente não temos de maneira satisfatória no Brasil o entendimento sobre a importância de manter espaços que se destinem à formação de acervos formados por objetos produzidos por pessoas comuns. Quando esses espaços que permitem a pesquisa pública não existem, a tendência é que pessoas individualmente passem a gerenciar visitas liberando documentos de acordo com sua boa vontade.

A 2ª Guerra estar ligada ao militarismo pode "afastar" a preservação da memória dos civis?

O sucesso da indústria cultural em promover uma memória específica sobre o tema é enorme. Boa parte de nossos alunos confessam que seu interesse pela História foi despertado a partir dessa temática. Não me parece que o militarismo ligado ao tema afasta o público.