Resquícios da II Guerra Mundial: bairro de Fortaleza guarda ‘bunker’ usado por militares americanos

Uma pequena casa com três compartimentos, sendo um minúsculo quarto e banheiro, e o outro um “vão” sem paredes dividido em sala e cozinha. No interior do apertado imóvel de paredes bastante grossas, no qual apenas uma janela, de fato, é aberta, é quase impossível permanecer devido ao calor. Nele moram um casal de adultos e uma criança de 1 ano.
A construção no Campus do Pici, na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, foi edificada há mais de 80 anos com uma finalidade absolutamente diferente do que é usada hoje: ser abrigo de armas, munições e outros equipamentos militares a serem utilizados na Segunda Guerra Mundial.
A estrutura, chamada de “casamatas” ou “bunker”, é um dos últimos resquícios físicos da passagem dos norte-americanos por Fortaleza durante o maior conflito bélico do mundo. A edificação, localizada dentro da área institucional da UFC no Pici, tem resistido ao tempo. Ela pertencia à estrutura de uma base militar norte-americana estruturada no território, com a permissão do Governo Federal, sob a presidência de Getúlio Vargas, por meio de acordos bilaterais na década de 1940.
Na semana em que o mundo relembra os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial - que ocorreu de 1939 a 1945 na Europa - , o Diário do Nordeste resgata esse rastro material do conflito no território do Ceará, bem como aborda as demais referências físicas e simbólicas que a Capital abriga relacionadas ao grande conflito.
Fortaleza, assim como outras cidades do litoral brasileiro, foi considerada área estratégica para pouso de aeronaves e o transporte de armamentos e equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos a países como Inglaterra - que integrava o grupo dos Aliados e estava em combate contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) -, pois eram necessárias pausas para abastecimento. Para isso foram abertas bases militares norte-americanas em alguns locais. Um deles é o Pici e o outro o Cocorote, atual área do Aeroporto Internacional Pinto Martins.
O Diário do Nordeste conta, por meio de um especial com conteúdos publicados na quinta-feira (8) e sexta-feira (9), fatos sobre a participação do Ceará no maior conflito bélico do mundo, cujos efeitos e repercussões mobilizam a história, e a necessidade de preservação desta memória é evidente.
A casamata, que a reportagem visitou esta semana, já não é mais subterrânea, hoje é usada como residência e fica em um local bastante escondido. Situada em uma área remota, nas proximidades do Departamento de Engenharia de Produção UFC e do Laboratório de Hidráulica e Irrigação, a estrutura fica também perto do muro que limita o campus da universidade no encontro com o bairro Pici, na Rua Pernambuco. Mas o acesso é difícil, pois a área é envolvida por vegetação.
A estrutura é habitada pela família da dona de casa Josilene Pereira da Silva desde o final da década de 1940. De acordo com ela, a mãe, Maria do Carmo Vieira, e o pai, Fernando Pereira da Silva, foram morar na edificação no final da década de 1940, depois de terem recebido em doação de um americano.
“A minha mãe era do interior de Iguatu e veio para Fortaleza ainda muito jovem. Aí uma amiga arranjou um emprego para ela na casa de um americano, que é exatamente um dos americanos que tinha vindo para cá para preparar esses bunker para a Segunda Guerra. Aí ela foi trabalhar na casa desse americano que decidiu ficar no Brasil. Lá ela falou que ia casar e ele ofereceu essa estrutura. Colocou ela naqueles jipes verdes e trouxe ela até aqui e ela ficou muito feliz e aceitou”.
Ao redor do banker há outras três casas que abrigam Josilene com as filhas e os demais parentes. “O americano explicou para ela que era um banker”, completa e diz ainda: “de vez em quando aparece algum estudante, pesquisador aqui para ver esse banker”.
A estrutura da casamata foi um pouco modificada por dentro, com a construção de paredes que dividem o quarto e o banheiro, já que o original não tinha divisórias internas. A edificação conta também com três pequenos espaços de entrada e saída de ar: um no teto e dois nas paredes. Mas, com o uso residencial, a família vedou essas passagens para instalar um ar-condicionado já que o espaço tem baixa circulação de ar e é bastante quente.
Por fora, a família também “desenterrou” a casamata, retirando a areia ao redor, na tentativa de gerar mais ventilação.
A família de Josilene, junto a outras, integra um grupo de pessoas que passou a ocupar essas estruturas depois da Segunda Guerra, quando as mesmas foram deixadas por norte-americanos que tinham feito uma base militar no local. No pós-guerra, o território ocupado por essas famílias passou a pertencer ao Departamento de Obras Contra a Secas (Dnocs) e à UFC. Quando o imóvel foi ocupado, a área não era cercada oficialmente pela estrutura da Universidade.
Com o passar dos anos, as definições administrativas e a construção do muro, os moradores passaram a ficar dentro do campus. Essa relação com a instituição já teve momentos de tensão, pois na década de 1990 a UFC tentou a reintegração de posse desse e de outros imóveis, mas não teve êxito na Justiça. Em 2020, uma nova tentativa foi feita, mas o processo não avançou.
Outras casamatas no Pici
O bairro Pici teve ainda outros vestígios das bases norte-americanas do período da grande guerra. Naquela época, na década de 1940, a região que hoje abriga o Pici, Jóquei Clube, Henrique Jorge, dentre outros bairros, era afastada da área mais povoada de Fortaleza e era caracterizada pela existência de grandes sítios, como o antigo “Sítio Pecy”, onde foi estruturas militares, cuja construção começou em 1941 e o uso em 1942.
“Tinha muita vacaria, criação de animais, fruteiras, sítios. Um dos destaques era o sítio Pecy. Toda essa região da Lagoa da Parangaba para cá, nos anos 1920 e 1930 era conhecida como Pici”, destaca o memorialista Leonardo Sampaio, morador do bairro Pici. Ele acrescenta que o Pici manteve essas características “rurais” até o início dos anos de 1970.
No bairro, Leonardo relata que conheceu alguns moradores que habitaram outras casamatas remanescentes com o fim da guerra. “Teve uma época (após o fim da Guerra) que os galpões onde ficavam os equipamentos da base velha (Pici) começaram a ser cedidos para quem trabalhava na base nova no Cocorote. Aí foram chegando os primeiros moradores dentro da base velha do Pici. Eu tinha amizade com essas pessoas”, relembra.
Hoje, relata Leonardo, os galpões - que ficam dentro do campus do Pici - estão bastante descaracterizados, destaca. Ele também recorda que a pista de pouso usada na antiga base também serviu posteriormente para as corridas automobilísticas em Fortaleza, na atual Rua Pernambuco e Rua Alagoas. “Eram as pistas de descida e subida dos aviões”, acrescenta.
Na Rua dos Monarcas havia outras casamatas. “A dona Josefa morava lá com o marido dela. Mas essa casamata, quando a dona Josefa morreu, a família procurou querendo saber se o Estado ou a Prefeitura se interessava, como não houve manifestação, eles venderam. E quem comprou, quebrou a parte que fica a Rua Planalto do Pici, porque ela era toda fechada. Mora uma família, mas está totalmente descaracterizada”, revela.
“Na mesma rua tinha outra, mas foi também toda reformada. Mora uma família há muitos anos. E a outra é essa que fica dentro do campus do Pici”, completa.
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Bases Militares da Segunda Guerra
O grande conflito mundial teve início em 1939, mas “chegou em Fortaleza em 1941”, explica o arquiteto e urbanista, pesquisador dos registros da Segunda Guerra em Fortaleza, Henrique Braga. Oficialmente, o Brasil decidiu em 1942 entrar na Guerra e começou a arregimentar soldados em 1944, que partiram em 1945 para a Itália. Mas, antes disso, a costa brasileira já estava sendo usada pelos Estados Unidos por meio de bases militares.
A Guerra não chegou em Fortaleza como um campo de batalha, um local de combates, mas o Governo dos Estados Unidos tinha montado uma estrutura de logística militar global que previa a construção de bases aéreas ao longo de uma determinada rota. No caso aqui era a rota do Atlântico Sul, e Fortaleza precisava de um aeródromo para auxiliar na chegada e partida de aviões que iriam para os campos de guerras, aviões vendidos pelos Estados Unidos.
A primeira base foi construída em 1941 e passou a ser usada em 1942, pela força aérea dos Estados Unidos. “A construção do Pici foi realizada disfarçada de aeroporto civil, tanto é que naquele período a Paner do Brasil (empresa de aviação) foi contratada para fazer a construção do aeródromo disfarçada de aeroporto. O Pici surgiu dessa ocasião”, afirma.
Já em 1943, explica Henrique, os americanos decidiram que haveria uma grande operação de transporte aéreo militar e acharam que o Pici era insuficiente. Partiram, então, para a construção de uma base militar no Mucuripe. Mas não houve tempo hábil e a opção foi então pela base do Cocorote (atual aeroporto).
“Aquela região se chamava Cocorote porque era alta mesmo. Inclusive tinha o sítio Cocorote”, acrescentou.
A segunda base foi entregue em 1943. “Foi um grande marco da Guerra em Fortaleza”, aponta Henrique. Após o fim do conflito, em 1945, a estrutura do Pici “deixou de ser utilizada” e foi devolvida ao Governo brasileiro. Já a área do Cocorote continuou sendo utilizada, dando lugar, anos depois, ao Aeroporto de Fortaleza.
“Quando a guerra acabou os imóveis que estavam nas bases aéreas foram devolvidos ao Governo brasileiro. O do Pici não foi utilizado como aeroporto. A Força Aérea Brasileira optou por usar da do Cocorote pois estaria melhor estruturada, tanto é que o aeroporto civil de Fortaleza funcionou muitos anos nessas instalações e o Pici foi praticamente abandonado. O terreno do Pici foi dividido entre a UFC e o Dnocs”, relata.
Outras referências à Guerra em Fortaleza
As movimentações geradas pela Guerra também tiveram repercussão na área social e cultural da cidade. Uma delas, o uso por parte dos americanos do prédio do Estoril - que à época não era chamado assim - na Praia de Iracema.
A edificação da década de 1920, cuja entrada é voltada para a Rua dos Tabajaras e as “costas” para o mar, chamado de Vila Morena abrigou um espécie de clube (chamado United States Organization - USO) utilizado por soldados dos Estados Unidos, na época da Segunda Guerra Mundial.
“O USO era uma organização criada para essa finalidade, prover diversão e lazer para os militares americanos em qualquer lugar do mundo em qualquer teatro de operações militares, tinha estruturas assim também em Belém, Natal e Rio de Janeiro”, relata Henrique.
“Fortaleza tem ainda outras referências à Segunda Guerra, como as avenidas dos Expedicionários e a Sargento Hermínio Sampaio (combatente cearense morto na Guerra); os bairros Montese e Monte Castelo (nomes de áreas italianas nas quais os combatentes brasileiros conquistaram vitórias); e o Obelisco da Vitória, no Centro.
O Obelisco é um monumento construído em 1943, com projeto elaborado pelo desenhista Rubens Diniz. A iniciativa para a construção partiu de estudantes da Faculdade de Direito para homenagear os Aliados da Segunda Guerra Mundial.
Na ação mais recente, a 10ª Região Militar irá inaugurar, nesta sexta-feira (9), o Espaço Cultural da FEB e da Artilharia do Ceará, no Forte General Tibúrcio (Av. dos Expedicionários), que irá expor materiais históricos, infográficos e paineis ilustrativos rememorando a presença dos brasileiros no grande combate.