Centro de Fortaleza viveu dia de violência e confusão generalizada há 80 anos; relembre
Ânimos exaltados por causa da Segunda Guerra Mundial levaram à destruição de mais de 10 estabelecimentos comerciais.
O ano era 1942. O mundo já vivia imerso nos horrores da Segunda Guerra Mundial, deflagrada em 1939. Fortaleza tinha recebido uma base aérea para aeronaves americanas, no bairro Pici, e havia um crescente sentimento de raiva contra estrangeiros. Esses fatores deram estopim a um “Quebra-Quebra” no Centro da cidade, que terminou com várias lojas depredadas.
Tudo começou no dia 18 de agosto daquele ano, em frente à Coluna da Hora, na Praça do Ferreira, a partir de um grito:
"Estão quebrando a padaria do Espanhol!"
O movimento era reação ao afundamento de cinco navios brasileiros por submarinos alemães, entre os dias 15 e 17 daquele mesmo mês, levando mais de 600 brasileiros à morte. Em Fortaleza, a depredação foi flagrada por fotografias do jovem estudante Thomaz Pompeu Gomes de Matos.
A partir desses registros, o historiador Renato Freire recuperou as memórias da data em sua dissertação de mestrado em História Social, pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
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Aquele 18 de agosto começou melancólico, com a realização de uma missa diurna em homenagem aos mortos nos afundamentos, na Igreja do Patrocínio (na Praça José de Alencar). Houve relatos de “várias mulheres chorando” durante a cerimônia.
Em seguida, um grupo de estudantes se reuniu para protestar em favor da adesão do Brasil à Guerra. Por volta de 10h30, uma passeata saiu da Faculdade de Direito da UFC, onde as aulas haviam sido suspensas, e seguiu rumo à Praça do Ferreira, onde chegou bastante volumosa pela inclusão de outras pessoas ao longo do percurso.
Foi algo que aconteceu em escala nacional devido à política de fabricação de um inimigo que vinha sendo criado pelo Estado Novo desde 1937, que falava de desconfiança com ideologias estrangeiras e de se valorizar o elemento nacional.
A Campanha de Nacionalização do presidente Getúlio Vargas também priorizou a formação de mão de obra brasileira e chegou a proibir o ensino de línguas estrangeiras. Assim, acabou fabricando “inimigos imaginários que não correspondiam necessariamente à verdade”, cujo discurso piorou durante a Guerra.
No dia 18 de agosto, as ruas do Centro viraram cenário de depredações: os alvos eram as empresas pertencentes a estrangeiros nativos dos países inimigos. Assim, foram destruídos:
- as lojas Pernambucanas, da família alemã Lundgren;
- a Fábrica Italiana, do espanhol Rudezindo Nocelo Feijó (entrou na mira por causa do nome);
- a Padaria Italiana, da família italiana Rattacaso;
- o Café Íris, do italiano Francisco Orlando Laprovítera;
- os Armazéns, do italiano Alexandre Papaleo;
- a Casa Veneza, sapataria do italiano Francesco di ngelo;
- a loja A Formosa Cearense, a Tinturaria Italiana, a Tinturaria Modelo e a Casa de Confecções 3 Oitos, todas da família italiana Marino;
- a Casa Cunto, alfaiataria e sapataria da família italiana Cunto;
- o Jardim Japonês, da família Fujita.
Durante os ataques, os revoltosos gritavam frases como “morram Hitler e seus asseclas!”. Contudo, não foram apenas estudantes e simpatizantes que participaram do movimento. Segundo Renato Freire, há relatos da participação de flagelados da seca que, sem recursos, perambulavam pela cidade. O fato é que o grupo multifacetado deixou um rastro de incêndios, depredações e mercadorias roubadas.
Apesar da violência, não houve repressão por parte das forças de segurança. Com a ditadura de Getúlio Vargas, pouco sobre o caso foi narrado em jornais, pelo temor à censura. Tanto é que o álbum de fotografias de Thomaz Pompeu só foi revelado publicamente na década de 1980.
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Consequências do Quebra-Quebra
Finalmente, em 22 de agosto de 1942, o Brasil declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista, uma resposta do presidente Vargas à pressão da população em vários Estados. Até então, ele se mantinha neutro pela presença, no país, de imigrantes italianos, alemães e japoneses.
Depois do Quebra-Quebra, em Fortaleza, os estabelecimentos de propriedade de estrangeiros também começaram a se declarar brasileiros em anúncios nos jornais e condenaram os ataques sofridos pelos navios da Marinha brasileira.
Porém, o caso afetou de forma direta as famílias estrangeiras que viviam na Capital. Em depoimentos colhidos durante a pesquisa, Renato Freire constatou a repercussão negativa daquele dia na vida dos comerciantes e seus descendentes. Em alguns casos, os pais até evitaram contar a história para os filhos.
“A narrativa das famílias é sofrida, é triste. Foi um momento de preocupação e insegurança econômica e emocional, porque eles perderam seus comércios, e tiveram sua vida produtiva impactada. De um dia pro outro, sua fonte de renda foi vilipendiada”, relata.
Paralelos com o hoje
Mas, afinal, o que ficou de lição do Quebra-Quebra de Fortaleza? O historiador crê ser possível fazer uma ligação do clima da época para os dias atuais, quando forças políticas e sociais também criam novos “inimigos” que precisam ser combatidos.
Para Freire e outros pesquisadores, a Segunda Guerra foi o último conflito em que se pode definir com clareza um inimigo comum. Mais de 90 anos depois, no entanto, as guerras se tornaram mais “complexas”.
“Os conflitos sempre se atualizam com disputas de territórios e se vinculam com a formação de estados e identidades: o que é importante para a identidade nacional e qual é o lugar do diferente? Temos um componente muito forte em anos eleitorais, por exemplo, sobre quais são os valores nacionais, e essa era uma discussão muito atiçada na Segunda Guerra”, entende.